segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Crescimento dos homicídios no N e NE: droga, crime organizado ou "contexto"


Decisões humanas não são tomadas no vácuo, mas sempre dentro de um contexto. Isto explica, por exemplo, porque uma lei pode “pegar” num lugar e época e “não pegar” em outros.
Analisemos nesta perspectiva a questão do Estatuto do Desarmamento, lei federal aprovada em 2003 proibindo o porte de arma em todos o país. Passados alguns anos vimos os homicídios caírem em alguns estados – especialmente no Sudeste – e crescerem muito nas regiões Norte e Nordeste.

Como é possível que uma mesma lei, válida em todo território nacional, produza efeitos diferentes em diferentes lugares? Meu argumento nos últimos anos tem se fundamentado na questão do contexto.
Do ponto de vista do “cidadão de bem”, que portava arma para sua proteção pessoal, o Estatuto aumentou o “custo” de andar armado, tornando o porte ilegal crime inafiançável. Dado este aumento no custo, o indivíduo racional faz o cálculo de quando vale a pena continuar a andar armado. A decisão depende do contexto: se a criminalidade está sob controle, a sensação de segurança estável e a polícia na rua fazendo busca e apreensão de armas, é melhor deixar a arma em casa do que se arriscar andando armado. Por outro lado, se a criminalidade está elevada, sinto-me inseguro e percebo uma baixa capacidade de implementação da medida por parte da polícia, a tendência é arriscar e continuar andando armado, pois o risco de ser pego é baixo. O quadro abaixo ilustra esquematicamente a decisão.

Crime e insegurança Probabilidade de captura Decisão “racional”
Alto Baixa Andar armado
Baixo Alta Deixar arma em casa

Existem também as situações ilustradas pelas diagonais, em que a criminalidade é baixa e a probabilidade de captura também é ou a situação contrária, com crime e insegurança altos e probabilidade de captura também. Estas situações ambíguas dificultam uma tomada clara de decisão e nestes casos a propensão individual ao risco pode ser mais decisiva do que o contexto para definir a decisão. Além de contexto e propensão ao risco, dezenas de outros fatores podem influenciar a decisão de andar armado, entre elas as crenças individuais, hábitos, risco profissional, possibilidade de se proteger de outras maneiras, etc. Mas de modo geral o esquema se aplica adequadamente ao dilema individual.

Estas decisões individuais, quando agregadas, conseguem explicar as dinâmicas regionais dos homicídios no Brasil nas últimas décadas? Existem explicações diferentes para o fato de os homicídios terem decrescido no Sudeste e aumentado intensamente no Norte / Nordeste. Como tratamos em artigos anteriores, há quem procure explicar estas diferenças regionais em termos de presença do crime organizado e sua capacidade de regular conflitos, ou ainda pelo grau de crescimento do tráfico de drogas, em especial do crack, pelo país.

Por minha vez, propus em trabalhos anteriores um esquema de interpretação mais complexo, baseado na centralidade da quantidade de armas em circulação e na questão do contexto: num grupo de estados, vimos um crescimento econômico equilibrado nas últimas décadas. A criminalidade patrimonial manteve-se sob controle, assim como a sensação de insegurança da população. A polícia era suficientemente organizada para reprimir o crime e implementar o controle de armas através de buscas e apreensões. Neste contexto 1, a opção racional, como vimos, é deixar a arma em casa. Com menos armas em circulação, observamos neste grupo de estados a queda ou estabilidade dos homicídios.

Por outro lado, no contexto 2, observamos um crescimento econômico acelerado nas últimas décadas, ao que se seguiu um aumento de oportunidades para os crimes patrimoniais. Este aumento da renda pode ter contribuído também para o aumento do consumo de drogas e álcool. O súbito aumento dos roubos fez crescer a sensação de insegurança da população. Ao mesmo tempo, encontramos polícias despreparadas tanto para combater a criminalidade crescente quando para colocar em vigor o Estatuto. Neste contexto 2, a decisão racional foi continuar a andar armado ou comprar uma arma para defesa pessoal. Com o aumento das armas em circulação, vemos no momento seguinte o crescimento dos homicídios, em boa parte interpessoais. Vemos assim contextos diferentes implicando em decisões individuais diferentes e resultados agregados igualmente diferenciados.
Já mostramos algumas evidências deste quebra-cabeças em trabalhos anteriores. Dados mais recentes parecem corroborar esta interpretação. Na tabela abaixo, os Estados estão elencados segundo a variação dos homicídios dolosos, comparando médias do período 2001/2003 com médias do período 2016/2018.

Nas demais colunas da tabela vemos: presença do PCC no Estado (segundo a classificação de Manso e Dias); variação do valor adicionado do PIB entre 2002 e 2015; variação do roubo de veículos entre os períodos 2001/2003 e 2016/2018; % dos entrevistados na pesquisa de Vitimização Senasp de 2014 que avaliam que a criminalidade aumentou no Estado; variação nas médias de homicídio doloso e tráfico, ambos comparando os períodos 2001/2003 com 2016/2018





Como sugerem os dados, no contexto 1 temos um grupo de dezoito estados onde os homicídios aumentaram de 40 a 600% desde o início dos anos 2000. Destes, 15 tiveram crescimento acentuado do PIB no período. Não por acaso, as variações nos roubos de veículos foram maiores neste grupo, o que deve ter contribuído para o aumento acima da média na sensação de insegurança, como sugerem os dados da pesquisa de vitimização de 2014. Mostramos alhures que a polícia era mais desorganizada nestes estados (orçamento menor, menos policiais por habitantes, menor taxa de prisões, etc.) e que a armas em circulação, medidas indiretamente pelas % de suicídios ou homicídios cometidos com armas, parecem ter aumentado. Este é o contexto onde a decisão de andar ou não armado teve que ser tomada. E a decisão parece ter sido manter ou adquirir arma, como mostra o crescimento dos homicídios. Santa Catarina parece ser um ponto fora da curva neste primeiro grupo, pois teve baixo crescimento econômico. Mesmo assim, roubo de veículos e sensação de insegurança cresceram acima da média no Estado, o que pode explicar a variação dos homicídios. Rio Grande do Sul e Minas Gerais estão na parte inferior da lista do contexto 1 e poderiam talvez ter sido classificadas no contexto 2: o crescimento econômico foi baixo, assim como a variação nos roubos de veículos e a sensação de insegurança tem nível intermediário. Ambos tiveram crescimento moderado dos homicídios na década.

No contexto 2 temos um grupo de 9 Estados com quedas ou crescimentos pequenos dos homicídios dolosos. Com exceção do MS, o crescimento do PIB foi mais moderado aqui. A maioria teve crescimento abaixo da média no roubo de veículos, que chega a cair em SP no período. Em consequência da estabilidade do crime patrimonial, a sensação de insegurança mensurada em 2014 fica abaixo da média. Note-se que há um estado nordestino no grupo, PE, em contraste com a tendência regional. Uma política de segurança bem-sucedida pode ter contribuído ali para contrabalançar os efeitos do crescimento da renda e dos crimes patrimoniais. Outra “exceção” seria Rondônia, mas note-se como o estado parece confirmar a teoria: apesar de ficar no Norte, o crescimento econômico foi baixo, assim como o roubo de veículos e insegurança. Em consequência, vemos uma ligeira queda nos homicídios. Estas tendências encontraram um sistema de justiça criminal mais preparado para controlar o crime e impor o Estatuto. Neste contexto, as armas ficaram em casa e os homicídios caíram ou cresceram a taxas reduzidas.

É preciso de mais e melhores dados para corroborar a hipótese do contexto, mas ela parece explicar melhor as evidências encontradas do que as hipóteses do crescimento do tráfico de drogas ou da expansão do crime organizado. Como sempre nestes casos, estamos falando de fenômenos multicausais e é possível que as três hipóteses tenham alguma validade, em alguma medida e que exista uma interação entre elas. O que não significa que sejam todas igualmente relevantes. Um diagnóstico preciso é necessário pois de cada um decorrem diferentes políticas públicas para conter o crescimento dos homicídios no Norte/ Nordeste.

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