quarta-feira, 23 de julho de 2025

Melhorias no sistema prisional diminuem o crime?

Não obstante a percepção generalizada de piora da segurança pública na última década, existem diversos indicadores criminais que apresentam melhoria, principalmente  a partir de 2017, como homicídios, roubos de veículos, roubos de carga e a instituições financeiras, entre outros.

É difícil estimar qual o papel direto da melhoria das condições carcerárias sobre a queda da criminalidade, mas em si mesmas estas melhorias são positivas, contribuindo por exemplo para a melhora no clima dentro das prisões, diminuindo a motivação para rebeliões, aumentando a probabilidade de ressocialização , diminuindo o poder das facções criminais, entre outros objetivos relevantes. A criação do Depen e do Fundo Nacional Penitenciário no final dos anos 90 foram marcos importantes neste processo de melhora das condições de cumprimento da pena. Com o Depen vimos a retomada dos “censos” penitenciários nacionais, - que respondi pelo primeira vez em 1997 como assessor da SAP e posteriormente contribui para o aperfeiçoamento do questionário e aplicação da pesquisa.

Os indicadores abaixo foram extraídos do SISDEPEN e permitem analisar a evolução de alguns indicadores entre 2016 e 2024, no que tange a melhorias físicas e aos serviços prestados pelas cerca de 1500 unidades prisionais do pais.

Ao observar os dados de “Existe” ao longo de 2016/2 a 2024/2, percebe-se um fortalecimento consistente de serviços de saúde nas unidades prisionais. A presença de consultório médico saltou de 51,1 % para 66,5 %, enquanto o consultório odontológico subiu de 46,3 % para 54,5 %. A farmácia, que em 2016/2 existia em apenas 45,6 % dos estabelecimentos, em 2024/2 já alcançava 58,1 %, e o atendimento clínico multiprofissional mais que acompanhou essa curva, de 31,4 % para 47,5 %. Esses avanços refletem maior investimento em saúde do preso, sobretudo após 2019, quando as taxas de existência desses serviços cresceram de forma mais acentuada.

Na esfera educacional e de reforço social, o progresso também é nítido. A sala de aula aumentou de 58,6 % para 70,8 %, e a biblioteca, que iniciava em 43,8 %, alcançou impressionantes 71,7 %, elevando significativamente as oportunidades de leitura e estudos formais. As salas de professores também cresceram, de 30,6 % para 38,4 %, no período. A introdução e ampliação de laboratórios de informática — de meros 15,1 % para 28,3 % — e de oficinas de trabalho — de 36,7 % para 44,7 % — apontam para uma estratégia de ressocialização cada vez mais orientada a habilidades práticas e digitais, preparatória para o pós-prisão.

Quanto às condições regimentais, os números já partiam elevados, com 79,3 % de unidades possuindo regimento interno em 2016/2 e estabilizando em torno de 90 % a partir de 2020. Os espaços destinados a visitação íntima e coletiva passaram de 31,9 % e 44,0 % para 36,7 % e 60,5 %, respectivamente. Esse incremento em infraestrutura de convivência e disciplina evidencia um esforço para equilibrar segurança, disciplina e dignidade, ainda que o ritmo de expansão de áreas de visita íntima tenha sido mais lento do que o das demais melhorias.

Ao longo de oito anos, houve um avanço generalizado na oferta de infraestrutura e serviços nas unidades prisionais. Em 2016/2, cerca de 28,6 % das unidades não dispunham de sala de atendimento para serviço social, percentual que caiu para 19,2 % em 2024/2, revelando maior atenção ao suporte psicossocial. De modo semelhante, a ausência de salas para psicólogo diminuiu de 33,6 % para 24,6 %, e a falta de espaço para atendimento jurídico reduziu-se de 19,4 % para 14,0 %, o que evidencia progressos constantes na assistência ao preso.

O avanço mais expressivo deu-se, porém, na sala de videoconferência: o índice de unidades sem esse recurso, que beirava 91 % em 2016, despencou para apenas 19,2 % em 2024/2, demonstrando forte investimento em tecnologia e na comunicação remota entre detentos, tribunal e familiares. Paralelamente, a acessibilidade para pessoas com deficiência, antes ausente em cerca de 84,6 % das unidades, melhorou para 71,7 %, embora ainda indique a necessidade de aceleração das adaptações físicas. Já a assistência jurídica gratuita permanece raríssima, sem redução significativa desde os 80,6 % de 2016, o que revela uma lacuna crônica no acesso à defesa técnica.

Por fim, observam-se ganhos importantes nas atividades laborais e educacionais. A proporção de unidades sem laborterapia recuou de 33,0 % para 14,8 %, e a ausência de atividades educacionais diminuiu de 41,8 % para 17,3 %, apontando para expansão de oficinas e cursos de ensino. Em suma, o sistema prisional avançou de forma notável na infraestrutura tecnológica e nos programas de reabilitação e ensino.

O sistema prisional vem caminhando numa direção de maior humanização e enfoque na ressocialização. O crescimento consistente da disponibilidade de consultórios médico e odontológico, farmácia e atendimento clínico multiprofissional indica um reconhecimento crescente de que a atenção à saúde mental e física do preso não é apenas uma questão de direitos humanos, mas também uma estratégia de redução de comportamentos violentos e surtos epidêmicos dentro das unidades. Consequentemente, investimentos em equipes de saúde e em medicamentos, embora onerosos, devem gerar economia a médio prazo, ao reduzir internações de emergência, surtos de doenças transmissíveis e litigiosidade interna.

No âmbito educacional e ocupacional, o avanço na oferta de salas de aula, laboratórios de informática, oficinas e bibliotecas reflete um compromisso maior com a formação profissional dos reeducandos. Isso tende a ampliar as oportunidades de trabalho formal após o cumprimento da pena, contribuindo para a diminuição da reincidência. A construção dessas estruturas requer planejamento orçamentário contínuo e parcerias com órgãos de ensino e empresas, mas os benefícios sociais — como a quebra do ciclo de pobreza e crime nas comunidades de origem — podem superar largamente o custo inicial.

A consolidação de regimentos internos e a expansão de espaços de convivência e visita íntima demonstram que a segurança e a disciplina podem conviver com a dignidade e o vínculo familiar. Unidades mais regimentadas e, ao mesmo tempo, mais acolhedoras têm menor potencial para tumultos e rebeliões, gerando ambiente mais estável tanto para agentes quanto para presos. As consequências práticas são a redução de gastos com contingentes extras de segurança e a melhoria do clima de trabalho dos servidores, o que, em última análise, torna o sistema penitenciário melhor para todos.

Embora investir em presídio não seja uma política popular, a melhora das condições de cumprimento da pena traz uma série de benefícios intrínsecos e pode ser uma das muitas explicações para a queda da criminalidade violenta de rua no país a partir de 2017.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Cobrança por serviços policiais

 


Tulio Kahn

A proposta legislativa em tramitação no estado do Paraná, que visa obrigar condenados definitivamente pela Justiça a arcarem com os custos da atuação policial em seus casos, reabre um debate complexo sobre os limites da responsabilização penal e os fundamentos do financiamento do sistema de justiça criminal. O projeto estabelece que os valores pagos pelo condenado, que englobariam despesas com diligências, captura e investigação policial, seriam revertidos a um fundo destinado à própria segurança pública. Tal iniciativa, ainda que inédita nos moldes amplos sugeridos, encontra ecos parciais em experiências internacionais, especialmente no contexto de países com sistemas federativos e modelos penais descentralizados.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a cobrança de taxas e custas judiciais de condenados é amplamente praticada, sob a justificativa de que o usuário do sistema deve arcar com parte dos seus custos. Os chamados court costs e criminal fees são impostos em muitos estados para cobrir serviços como perícias, assistência jurídica e manutenção do sistema judicial. Em algumas jurisdições, essas cobranças se estendem até mesmo a custos administrativos de prisão e liberdade condicional. Contudo, é importante observar que essas taxas raramente incluem diretamente os custos da investigação policial, uma vez que esta é considerada uma função essencial do Estado, financiada por meio de impostos e destinada à coletividade. A Suprema Corte de Michigan, por exemplo, tem permitido a cobrança de determinadas taxas desde que haja autorização legislativa clara e critérios objetivos para sua imposição, evitando o que seria uma delegação inconstitucional de poder de tributar, como analisado por entidades como o Mackinac Center for Public Policy.

Na Alemanha, adota-se o princípio de que o condenado deve reembolsar determinadas despesas do processo, como honorários de defensores públicos e custas processuais, mas não os custos da investigação policial. A lógica adotada no direito penal alemão reconhece a natureza pública e indelegável da atividade policial e a considera parte do dever geral do Estado de manter a ordem e proteger os direitos fundamentais. Similarmente, no Canadá e na Irlanda, embora haja mecanismos de recuperação de ativos criminosos — como o confisco de bens por meio do Criminal Assets Bureau irlandês — não se impõe ao réu o pagamento direto das despesas operacionais da polícia, sendo os valores arrecadados revertidos para o erário público e não para fundos corporativos das agências responsáveis.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece a gratuidade da jurisdição penal e protege o condenado contra penas que extrapolem a privação de liberdade. A imposição de encargos financeiros ao condenado, especialmente quando relacionados a serviços estatais prestados de forma obrigatória e unilateral, suscita dúvidas constitucionais relevantes. A dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1º, III), e os princípios da isonomia e da vedação de penas cruéis ou desproporcionais (art. 5º, incisos III e XLVII), seriam diretamente tensionados por uma legislação que impusesse a condenados financeiramente vulneráveis o ônus de custear ações estatais que não foram voluntariamente solicitadas, mas sim exercidas como parte do dever do Estado de investigar e punir crimes. Além disso, a exigência de lei específica para a criação ou majoração de tributos (art. 150, I) também representa um obstáculo jurídico, já que a cobrança poderia ser interpretada como uma taxa disfarçada de pena, em evidente desvio de finalidade.

Ainda que se reconheça a racionalidade aparente da proposta, baseada na ideia de que o autor de um crime deve assumir os custos que impôs à sociedade, os riscos de se instituir uma medida como essa são significativos. Há o perigo concreto de se aprofundar a criminalização da pobreza, com indivíduos sem recursos acumulando dívidas impagáveis com o Estado, o que dificultaria ainda mais sua reintegração social. A medida poderia, inclusive, reforçar ciclos de reincidência, já que o endividamento do ex-presidiário comprometeria sua capacidade de recomeço. Além disso, há o risco de induzir os órgãos de persecução penal a aumentarem o custo das investigações ou multiplicarem diligências como forma de arrecadação, comprometendo a imparcialidade e a racionalidade da ação estatal.

Por outro lado, defensores da proposta argumentam que ela promoveria justiça distributiva, responsabilizando o autor do crime pelos danos econômicos causados à coletividade. Além disso, os recursos obtidos poderiam financiar melhorias nas corporações policiais, modernizando equipamentos, treinamentos e condições de trabalho. Trata-se, segundo essa visão, de um incentivo à eficiência do sistema penal e um desestímulo à prática criminosa, ao associar custos concretos à violação da norma penal.

No entanto, mesmo que se considere legítimo o objetivo de melhorar o financiamento das instituições de segurança pública, parece mais adequado buscar alternativas que não comprometam princípios constitucionais fundamentais. Entre essas alternativas, destaca-se o fortalecimento dos mecanismos de recuperação de ativos obtidos de forma ilícita, com a reversão dos valores para fundos públicos de segurança, conforme já previsto na legislação brasileira sobre lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito. Outra possibilidade seria a ampliação do uso de penas patrimoniais em substituição à pena privativa de liberdade, nos casos em que o crime permitir tal substituição, desde que respeitados os princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva.

Em conclusão, a proposta legislativa paranaense representa uma inovação que, embora motivada por preocupações legítimas com a sustentabilidade fiscal da segurança pública, suscita sérias objeções jurídicas e éticas. A atividade policial deve permanecer como função essencial do Estado, custeada por toda a sociedade e exercida de forma equitativa. A responsabilização do condenado deve ser proporcional, razoável e orientada pela proteção de seus direitos fundamentais, não sendo compatível com mecanismos que possam aprofundar desigualdades sociais ou comprometer a natureza pública da repressão estatal. Para que políticas de responsabilização financeira possam ser discutidas de maneira construtiva, é necessário que estejam ancoradas em estudos empíricos, comparações internacionais robustas e, sobretudo, no respeito ao arcabouço constitucional vigente.

Referências

·      Este artigo foi escrito com auxílio do Chagpt

·     
BEALE, Sara Sun. Too Many and Yet Too Few: New Principles to Define the Proper Limits for Federal Criminal Jurisdiction. Hastings Law Journal, v. 46, 2004.
MACKINAC CENTER FOR PUBLIC POLICY. Is it Constitutional to Require Criminal Defendants to Fund Their Own Prosecution?
Disponível em: https://www.mackinac.org/is-it-constitutional-to-require-criminal-defendants-to-fund-their-own-prosecution.
Brennan Center for Justice. The Steep Costs of Criminal Justice Fees and Fines. Disponível em: https://www.brennancenter.org/our-work/research-reports/steep-costs-criminal-justice-fees-and-fines.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
WHITMAN, James Q. Harsh Justice: Criminal Punishment and the Widening Divide Between America and Europe. Oxford University Press, 2003.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

 

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