sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Defeitos e virtudes da PEC da Segurança pública

 


Sociólogo Tulio Kahn, especialista em segurança pública, comenta pontos da proposta do governo federal

Tulio Kahnsociólogo e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum

O governo federal reuniu um grupo de autoridades para apresentar sua proposta de PEC para a segurança pública. Por si mesma, a iniciativa de assumir mais responsabilidades sobre a segurança pública e convidar os governadores para discutir a questão deve ser elogiada.

Como toda proposta de mudança nesta esfera, a PEC da segurança tem aspectos positivos e negativos. Em alguns pontos ela propõe medidas radicais – que correm o risco de não serem aprovadas – e em outros, lida com aspectos pouco relevantes do ponto de vista da redução da criminalidade. É preciso esperar para ver o que restará da proposta original quando for debatida e modificada pela sociedade e pelo Congresso, para avaliar seu impacto.

Entre outros pontos, a PEC propõe constitucionalizar o SUSP e os fundos unificados de Segurança e Penitenciário, medida que pode garantir maior segurança institucional a estas regras, evitando que sejam extintos em futuras gestões. Mas a unificação dos fundos nacionais (o FUNAD ficou de fora da PEC) poderia ter sido acompanhada de um incremento considerável no montante, apontando, claro, de onde viriam os recursos, sempre escassos. O problema principal dos fundos nacionais não é contingenciamento de recursos, mas o seu volume insignificante, além da falta de bons projetos.

Assim, estes fundos nacionais robustos seriam a cenoura para que os Estados seguissem as diretrizes nacionais, em vez de propor a obrigatoriedade para os Estados, como sugerido na PEC, item que dificilmente passará no Congresso como está formulado e que tem provocado resistência natural por parte dos governadores e das polícias. Trata-se de um cheque em branco, uma vez que não há como saber o que seriam estas diretrizes nacionais. E um risco, pensando em diretrizes federais como as que já vimos. Esta é a parte “radical” da proposta e que tem a função de transmitir a mensagem de que o governo federal quer fazer alguma coisa, mas a legislação atual não deixa. Ninguém, nem mesmo o governo, acredita na sua viabilidade – mesmo se o governo federal viesse a assumir todos os enormes custos da segurança, o que está longe de fazer (governo federal participa com apenas 1,6% dos gastos em segurança pública, segundo o Anuário FBSP, de 2023).

Do lado menos radical da PEC estão os projetos como unificação de documentos de identidade, padronização de registros policiais, unificação de procedimentos policiais etc. iniciativas que se arrastam pelos corredores do Ministério da Justiça desde a minha época (2002) e nem precisariam de uma PEC para serem levados a cabo. Mas são ideias que continuam pertinentes, de baixo impacto (assim como o policiamento das hidrovias…) e que não devem enfrentar maiores oposições dos Estados ou do Congresso.

Deixando de lado as propostas mais radicais e pouco realizáveis e as propostas de menor impacto, temos um grupo de propostas que são ao mesmo tempo relevantes e politicamente viáveis. Refiro-me aqui, por exemplo, à ideia de ampliar e explicitar as competências da PF/PRF para atuar em defesa do patrimônio federal, nos crimes ambientais, de milícia ou interestaduais, que me parecem o elemento mais relevante do pacote, uma vez que atribuem novas e relevantes tarefas aos órgãos federais. A PRF conta com mais de 12 mil policiais, um orçamento superior à soma dos fundos nacionais (R$ 4,8 bilhões), mas tem funções constitucionais bastante limitadas, que poderiam ser ampliadas. Eu incluiria neste rol de funções algumas atribuições atuais das Forças Armadas sobre a fiscalização de armas e proprietários, que as FAs não têm realizado a contento. Estas novas atribuições exigem mudanças constitucionais e precisarão de apoio no Congresso. Devem enfrentar resistências da bancada da bala e das polícias estaduais, que temem perder poder, mas acredito que possam ser aprovadas, se houver consenso na sociedade sobre sua importância e muita negociação.

Gostaria de me deter sobre o que penso ser um equívoco conceitual da proposta, que assume que o modelo atual de segurança estadual é “efetivo” e tenta emulá-lo em nível federal. Assim, segundo a justificativa da PEC, “cumpre ressaltar que os Estados da Federação e o Distrito Federal atuam na área de segurança pública por meio de duas forças policiais distintas: polícia judiciária e polícia ostensiva… Esse modelo, considerado efetivo nos Estados, merece ser replicado no âmbito federal.” Ouso dizer que não merece.

O que o governo percebe como mérito talvez seja justamente o cerne do problema de segurança brasileiro. O modelo de duas polícias (com duas “meias polícias” ou quatro quartos de polícias, se considerarmos as divisões de castas dentro de cada uma delas) é apontado por quase todos os especialistas em segurança como um fracasso em comparação com o modelo de polícia única e de ciclo completo – O que pensam os especialistas, 2017 e 2019. As polícias estaduais competem entre si, não compartilham informações, têm estruturas redobradas e conflito de competências, não investigam nem previnem crimes, são impregnadas pela corrupção e violência sistêmicas etc. Pelo menos alguma parte destas mazelas é responsabilidade da inexistência de uma polícia única de ciclo completo.

A maioria dos policiais também percebe o problema e é favorável à polícia e carreira únicas e aprovam a ideia de poder alternar entre atividades judiciárias e ostensivas. Na pesquisa com especialistas – incluindo policiais civis e militares – realizada em 2017, 31,5% dos entrevistados se disse fortemente a favor da unificação e 28,7% a favor, somando os favoráveis à medida 60,2% (Kahn, Apontamentos para a reforma da segurança pública no Brasil, 2018). Corroborando as pesquisas feitas com especialistas e com a população sobre o tema, a maioria absoluta (70%) dos 5.600 policiais entrevistados em pesquisa sobre modelo de polícia de 2019, apoiou a unificação das policiais estaduais. Apenas 8% disseram que as polícias deveriam ser totalmente separadas ou ficar como está atualmente. Finalmente, 21% afirmaram que deveria existir maior integração entre as polícias. Parece haver um consenso de que existe pouca integração e em torno do desejo da unificação, quando analisamos o total da amostra (Kahn, Tulio, Seis teses equivocadas sobre a criminalidade brasileira e outros escritos, 2019).

Opinião sobre a unificação e alternativas

                                                    Fonte: Pesquisa Unificação das Polícias / Fundação Espaço Democrático

O governo federal pode aproveitar a oportunidade para criar uma polícia federal única de ciclo completo – juntando numa mesma força a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Penal Federal. A Força Nacional de Segurança Pública teve sua existência ignorada na PEC, o que é uma evidência de que poderia ser tranquilamente extinta, assim como a Polícia Ferroviária Federal, caso esse novo modelo de polícia federal venha a ser criado.

Nesta força federal unificada de ciclo completo, gerenciada por um Ministério da Segurança exclusivo, adotar-se-ia o ingresso único por baixo, com ascensão aos postos superiores apenas mediante cursos e concursos para progressão, extinguindo-se a carreira dos delegados bacharéis, tal como se dá atualmente na PRF. O projeto ainda está em discussão no governo e será debatido no Congresso e pela sociedade. Creio que uma mudança nesta direção seria um legado estruturante da atual gestão (cujo ministro, gosto de lembrar, foi meu professor).

Essa polícia federal unificada poderia ser o modelo para eventualmente ser reproduzido nas polícias estaduais algum dia – desconstitucionalizando-se o modelo bipartido atual, engessado no art. 144, ao invés de trocar o nome da PRF para POF. Se a intenção é criar um sistema único e integrar as organizações policiais, o governo federal poderia começar integrando as suas próprias polícias.

O País precisa de mudanças impactantes na área da segurança. Temos visto algumas poucas, desde que o governo federal passou a se dedicar com maior intensidade ao tema. Exemplos de mudanças estruturantes na segurança em âmbito nacional foram, na minha seleção pessoal:

1) A criação da Senasp, em 1997.

2) A criação do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Plano Nacional de Segurança Pública, em 2000.

3) A criação do Estatuto do Desarmamento em 2003.

4) A criação do SUSP, sua forma de financiamento via loteria e a criação do Ministério da Segurança, em 2018 – infelizmente de pouca duração.

5) A abolição da legislação bolsonarista sobre armas, em 2022.

A PEC da Segurança de 2024 é ousada em vários aspectos e pode servir de base para discutir temas importantes. Contribui em maior ou menor medida para a criação e aperfeiçoamento das medidas 2, 3 e 4, o que me garante algum crédito, acredito, como razoável formulador de políticas públicas de segurança estruturantes. Ficam aí algumas sugestões para o aperfeiçoamento da proposta federal.

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