Um projeto de lei em andamento no
Congresso pretende instituir um Sistema único de Segurança Pública – SUSP. A
expressão é uma analogia ao SUS existente no âmbito da saúde e se popularizou
durante os governos Lula e Dilma, que tentaram sem sucesso dar algum conteúdo
ao trocadilho propagandístico.
Na área de segurança, confesso que
nunca entendi o que quer dizer um sistema único. Temos duas polícias estaduais
e em alguns Estados três, se considerarmos a polícia científica independente. E
bombeiros militares como categoria específica dentro das PMs. Temos também as
Guardas municipais comandadas pelos prefeitos e no nível federal a Polícia
Federal, Polícia Rodoviária e Ferroviária Federal, a ABIN, Senasp, Senad, Depen
e a Força Nacional de Segurança Pública. E agora as Forças Armadas
envolvendo-se em operações GLO e interventores estaduais. Sem falar no setor
prisional e no setor privado de vigilância eletrônica, transporte de valores e
segurança patrimonial. Além de inúmeros outros órgãos que direta ou indiretamente
fazem parte do sistema de justiça criminal ou do mais amplo sistema de
prevenção criminal, como MP, Defensoria, Procuradoria, Ouvidoria, Judiciário,
Secretarias de Justiça e assim por diante.
Em que medida estes órgãos e funções
podem e devem formar um conjunto único e “sistêmico” (outra expressão
valorizada pelos governos petistas) tenho sérias dúvidas. Estamos falando aqui
de níveis de governo e ramos de poder diferentes, cada qual, geralmente, com
suas competências e funções já definidas na Constituição. O Projeto de Lei
pretende criar, extinguir, modificar os órgãos atualmente existentes ou
modificar suas funções e competências? Mudar o pacto federativo e as formas de
financiamento dos diversos órgãos? Fundir instituições? Aparentemente, não pretende
nada tão amplo, como seria necessário para reformar de fato a segurança pública
e merecer os qualificadores “sistema” e “único”.
Já nas disposições preliminares o
projeto indica que segurança é dever da União, Estados e Municípios, porém
“dentro das competências e atribuições legais de cada um”, mostrando que não
veio para mudar muita coisa nesta matéria. Nas disposições gerais (art.3) prevê
que Estados e Municípios são competentes para estabelecer suas respectivas
políticas, “observadas as diretrizes da política nacional”. Mas se no regime
federativo estados e municípios são entes autônomos, como fazer para que sigam
estas diretrizes? Que instrumentos o PL cria para que estas diretrizes não
sejam solenemente ignoradas por Estados e Municípios? Um fundinho nacional de
aproximadamente 400 milhões por ano para todos não parece ter servido de
incentivo para este alinhamento nacional nos últimos 20 anos.
O art. 7º do PL, que fala da composição
do sistema, diz que o SUSP é integrado pelos órgãos mencionados no art. 144 da
Constituição e que estes atuarão nos limites de suas competências. No
art. 144 só estão mencionados as policiais estaduais – PC, PM e bombeiros - e
federais (inclusive a polícia ferroviária federal...) mas estão excluídos
muitos dos órgãos que deveriam fazer parte de um pretenso sistema único de
segurança.
As competências não são alteradas,
inclusive a ultrapassada noção segundo a qual as Guardas são destinadas à
proteção dos bens, serviços e instalações municipais. Nenhuma palavra sobre a
Força Nacional de Segurança Pública ou sobre o Gabinete de Segurança
Institucional. Ou sobre o Coaf e os Gabinetes de Gestão Integrada. Nada
tampouco sobre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) ou Fundo
Nacional Antidrogas. Nada criado depois da constituinte de 1988.
O parágrafo 1 do art. 7º do PL lista os
agentes penitenciários e socioeducativos entre os “integrantes estratégicos” do
SUSP, embora estas categorias não estejam listadas entre os órgãos de segurança
do art. 144. Como se trata de um Projeto de Lei, não é possível alterar, em
suma, nada que seja de ordem constitucional, como órgãos de segurança e suas
competências, pois para tanto seriam necessárias emendas constitucionais.
O PL procura estabelecer parâmetros
para a aferição anual de metas – algo em si louvável – mas sugere que as
atividades periciais sejam aferidas pelo quantitativo de laudos técnicos
expedidos. Como a quantidade de laudos varia com a quantidade de crimes, temos
que serão perícias de excelência precisamente aquelas dos locais com mais
crimes! A polícia ostensiva, por sua vez, terá sua excelência aferida “pela
maior ou menor incidência de infrações penais”, um indicador de resultado
altamente influenciado pela notificação, práticas de atendimento policial e
variáveis socioeconômicas que pouca relação tem com o esforço policial na área.
Melhor teria sido simplesmente sugerir a necessidade de metas e indicadores,
mas deixar a tecnicalidade da mensuração para a regulamentação ordinária.
O art. 15, que trata da regulamentação
dos Fundos de Segurança - dos quais já fui o gestor em 2002 - deixou
simplesmente de fora o Fundo Nacional Antidrogas e não faz qualquer comentário
sobre montantes insuficientes, o problema da inadimplência dos Estados que
impede a contrapartida ou o problema da carência de bons projetos ou do
contingenciamento pelo Ministério da Fazenda, que são os maiores obstáculos ao
financiamento federal da segurança. Na saúde, metade do orçamento vem do
governo federal. E no SUSP, qual será esta porcentagem? Atualmente, os gastos
federais representam somente cerca de 10% dos 80 bilhões anuais investidos por
estados e municípios. No SUS há um piso constitucional estabelecido para cada
nível federativo e repasses de verbas dos Estados para os Municípios. Nada disso
é previsto no projeto do SUSP.
O art. 19 trata dos Conselhos de
Segurança e diz no caput que estes são de natureza deliberativa enquanto o
parágrafo 3º do mesmo artigo afirma que “os
Conselhos terão natureza de colegiado, com competência consultiva”. Em seguida
o art. 20 e seguintes se põem a definir regras e princípios para os Conselhos,
atropelando a autonomia de Estados e Municípios. Chegam ao detalhe de indicar
que os Conselhos sejam compostos, entre outros membros, por um representante da
OAB, MP e Poder Judiciário, entrando em minúcias desnecessárias e equivocadas
sobre qualificações necessárias para deliberar sobre políticas de segurança
pública.
Enquanto o texto se perde em
pormenores sobre indicadores de eficiência, documentos de identificação funcional
e composição dos conselhos, os temas da defesa civil e do sistema penitenciário
são tratados só de passagem pelo PL, assim como as importantes questões do
tráfico de drogas e do crime organizado, quase não mencionadas. (“organizações
criminosas” aparece uma vez e drogas cinco vezes). Por outro lado, o PL reinstitui
no art. 37 o SINESP, que foi criado em
2012…
Não obstante estas inconsistências, o
projeto tem também algumas virtudes e méritos. Como por exemplo, o incentivo à
criação dos Planos de Segurança Pública em todos os níveis e a proibição
eventual de repasses federais aos Estados e Municípios que não formularem seus
planos ou repassarem ao governo federal dados criminais e outras informações de
interesse. Há uma preocupação salutar com a avaliação das políticas e com a
formação e valorização profissional dos operadores da segurança. Avança na
integração entre os diversos órgãos e reforça a necessidade da fiscalização das
ações policiais através de órgãos internos e externos. Incentiva a participação
da sociedade através dos conselhos e permite que a PM lavre boletins de
ocorrência autonomamente. Propõe a criação de um “Sistema Nacional de
Acompanhamento e Avaliação das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social”
– SINAPED e de um “Sistema Integrado de Educação e Valorização Profissional” -
SIEVAP, além do PROVIDA. (deve ser isso que entendem como um projeto “sistêmico...)
Por enquanto não passam de siglas sem rubricas orçamentárias, mas as ideias de
avaliação e valorização profissional estão pelo menos presentes como
preocupações.
Em resumo, o PL pode ser a base para
um futuro bom Plano Nacional de Segurança Pública para o governo federal mas
está longe de criar um sistema integrado e único de segurança pública, como
sugere o nome. Não propõe a unificação das polícias estaduais, com suas duplas
academias, corregedorias, RH, oficinas, hangares e rivalidade. Não unifica as
carreiras policiais, o sistema de ingresso e de progressão. Não unifica os
sistemas de informação nem os orçamentos. Não define o papel das Guardas, nem
das Forças Armadas ou da Força Nacional de Segurança Pública dentro deste
sistema. Cala sobre a questão do ciclo completo de polícia.
Um sistema único digno deste nome só
virá através de emendas constitucionais que pretendam mexer de fato na
estrutura e competências das organizações atuais. Até lá, abusando dos
trocadilhos, só nos resta SUSPirar de decepção, diante de arremedos de projetos
superficiais e que já PRONASCem mortos...