Pela regra anterior, para
justificar a posse de uma arma de fogo, um cidadão precisava atender aos
requisitos estabelecidos no Estatuto e, além disso, justificar a necessidade
efetiva de uma arma junto à Polícia Federal, no seu caso específico. Assim, por
exemplo, era a situação de uma testemunha ameaçada pelo crime organizado, um
fazendeiro na fronteira com territórios onde atuam grupos terroristas, um
motorista que faz entregas frequentes de mercadorias visadas em comunidades
dominadas pelo tráfico, etc.
Era preciso juntar evidências
deste risco particular – cujas situações são as mais variadas e não se pode
listar numa norma jurídica - e cabia ao Delegado aceitar ou não as
justificativas apresentadas. Embora implique numa dose de subjetividade por
parte de quem decide, tratava-se de avaliar um risco individual. Se bem
documentado e instruído, a posse era concedida e nestes anos milhares de
pedidos foram aprovados pela Polícia Federal, com base na análise de cada caso
em particular.
O decreto presidencial
flexibilizou a posse de armas de fogo para diversas categorias de pessoas e
situações genéricas, sob o pressuposto de que se considera presente a efetiva
necessidade. Em outras palavras, para pessoas e situações que pretensamente
estão mais expostas aos riscos e que precisariam de uma arma para se defender.
É o caso dos agentes públicos que
fazem parte do sistema de justiça criminal, dos residentes em área rural, dos
residentes em áreas urbanas com “elevados índices de violência”, assim
consideradas aquelas localizadas em unidades federativas com taxas de
homicídios superiores a 10:100 mil, além dos proprietários de estabelecimentos
comerciais e industriais e colecionadores, atiradores e caçadores.
Estes critérios, desnecessário
dizer, estão longe de ser “objetivos “ e estão calcados em duas falácias. A
primeira é de que a arma diminui o risco de seu proprietário, tema sobre o qual
existe ampla literatura sugerindo o contrário. A segunda é a que chamamos nas
ciências sociais de ”falácia ecológica”. [1]
Em linhas gerais, é um erro formal de inferência na interpretação de dados
estatísticos, onde inferências a respeito de indivíduos são deduzidas de
inferências sobre o grupo a que estes indivíduos pertencem. Em outras palavras,
não se pode inferir que o risco individual de morte por homicídio seja alto
apenas com base na taxa de homicídio agregada em nível estadual.
Com efeito, o risco pessoal de
homicídios varia segundo um grande número de fatores. Homicídios são
concentrados no espaço o que significa que dentro do estado existem municípios
com altas e baixas taxas de homicídio e dentro das cidades, bairros com
elevadas e baixas taxas de homicídio. O risco varia também fortemente com a
idade e o gênero, sendo maiores para jovens do sexo masculino e menores para
mulheres idosas. São maiores para não brancos do que para brancos, para pobres
do que para ricos. O estilo de vida também afeta o risco, como o consumo de
álcool e drogas, estar casado ou tipo de emprego.
Se for para levar a sério o
conceito probabilístico de risco e justificar a efetiva necessidade com base
nele, a implicação seria que a posse de armas deveria ser garantida apenas aos
jovens não brancos do sexo masculino, pobres e moradores da periferia dos
grandes centros urbanos. O risco de morte por homicídios de homens mais velhos
e brancos, residentes nas áreas nobres das cidades, - que são os que clamam
pela legítima defesa - é bastante menor e raramente alcançaria a taxa de 10 por
100 mil, mesmo nos Estados mais violentos.
O mesmo se pode argumentar com
relação à “área rural” ou proprietário de estabelecimento comercial ou
industrial. Regra geral, áreas rurais são menos violentas do que áreas urbanas
e existe uma variedade enorme de situações diferentes encobertas sobre a
categoria “área rural”. Uma fazendo na divisa com a Venezuela tem o mesmo risco
e necessidade de um sítio de veraneio em Atibaia? De uma fazenda de cocos no
litoral da Bahia? Em todas existe a efetiva necessidade? Ou em todos os
estabelecimentos comerciais ou empresariais? Imagino que os autores do decreto
tinham em mente aqui o risco de roubo e não o de homicídio. Se for este o caso,
deveriam ter utilizado como critério de corte a taxa de roubo e não a taxa de
homicídios. E mesmo utilizando taxa de roubo como indicador, as ressalvas são
as mesmas: depende da localização, do perfil do indivíduo, estilo de vida e
dezenas de outras variáveis.
As estatísticas mostram um risco
probabilístico médio e não são suficientes para caracterizar os riscos
individuais. O critério estatístico, apesar da aparente objetividade, é tão ou
ainda mais subjetivo do que a fórmula anterior. A rigor, me parece que a
análise de um processo individual onde um cidadão apresenta suas
justificativas, inclusive as taxas de criminalidade local, é muito mais
objetivo que o modelo atual, que pressupõe equivocadamente que todos os membros
de determinada categoria ou local são expostos aos mesmos riscos e tenham as
mesmas necessidades.
Pensemos num outro contexto onde
probabilidades estatísticas e direitos individuais estão em conflito. As
polícias tem o perfil estatístico dos grupos mais frequentemente envolvidos em
crimes violentos contra o patrimônio: jovens, desempregados, pobres, não
brancos, moradores de periferia, etc. Com base neste “profile” estatístico, é
legitimo conduzir buscas individuais nas ruas? A sociedade entende que não,
pois se trata de uma probabilidade e basear revistas pessoais com base nelas
fere direitos fundamentais. Só a suspeita fundamentada é que justifica, em tese,
que alguém seja parado e revistado pela polícia. (suspeita fundamentada =
efetiva necessidade). Existem também estudos estatísticos precisos que mostram
que perfil de presos tem maior probabilidade de reincidir. Temos o direito de
impedir que todos os indivíduos com aquele perfil sejam soltos, mesmo sabendo
que a probabilidade de reincidência é elevada? Novamente, a sociedade entende
que não, pois a probabilidade nunca é de 100% e estaríamos ferindo direitos
individuais. Se não podemos ferir direitos individuais com base em critérios
probabilísticos, podemos garantir “direitos individuais” com base nestes mesmos
critérios?
A inconsistência dos critérios
estabelecidos pelo Decreto deriva de questões mais profundas. A argumentação dos
defensores da flexibilização sempre foi de ordem filosófica e moral: acham que
todos devem ter o direito a legitima defesa e às armas, por princípio. Não
interessa se do ponto de vista coletivo o resultado é desastroso e se a medida
traz externalidades. E caíram na armadilha de tentar justificar a medida
tomando por base o conceito de risco, que é probabilístico e não serve bem para
justificar direitos individuais. Estas contradições talvez expliquem em parte a
precariedade técnica do Decreto.
O fato é que com a flexibilização
do Estatuto e o aumento da quantidade de armas em circulação, teremos um
aumento do risco coletivo: é alta a probabilidade de crescimento dos suicídios,
feminicídios e acidentes com armas de fogo, sem falar no aumento de armas para
o mercado ilegal, onde serão utilizadas nos roubos e latrocínios. E sabemos
disso porque os crimes e eventos
relacionados a armas caíram – ou subiram menos do que o previsto –
depois do Estatuto. Dizer que as elevadas taxas de homicídio atuais provam que
o Estatuto não funcionou é outra falácia de inferência, pois é preciso pensar
contrafactualmente. Existe o conceito de direito de defesa coletiva? Se
existisse, deveríamos invoca-lo para sustar o Decreto, pois ele ameaça este
direito.
Mas os defensores da legítima
defesa não estão preocupados com pesquisas e estatísticas, ou com o fato de
estratégias individuais gerarem frequentemente desastres coletivos. Estão, na
melhor dar hipóteses, preocupados com direitos, questões filosóficas e os
perigos do comunismo. Na pior das hipóteses, em devolver recursos aos
patrocinadores de suas campanhas eleitorais.
[1] An
ecological fallacy (or ecological inference fallacy)[1] is a formal fallacy in
the interpretation of statistical data where inferences about the nature of
individuals are deduced from inferences about the group to which those
individuals belong. Ecological fallacy sometimes refers to the fallacy of
division, which is not a statistical issue. The four common statistical
ecological fallacies are: confusion between ecological correlations and
individual correlations, confusion between group average and total average,
Simpson's paradox, and confusion between higher average and higher likelihood.