A quarentena e o distanciamento
social em razão da epidemia do coronavirus afetam profundamente diversas
dimensões da nossa vida em sociedade. Com a criminalidade não é diferente e
diversos criminólogos, antes mesmo da divulgação dos dados, já previram de
antemão o que poderia acontecer com algumas modalidades de crime.
Embora a adesão ao distanciamento
tenha variado de local para local, o número de pessoas e veículos nas ruas caiu
drasticamente, ocorrendo o inverso nas residências, farmácias e supermercados.
Trata-se talvez do maior “experimento natural” de todos os tempos e uma
oportunidade para o teste de diversas teorias e hipóteses criminológicas.
A teoria do “crime como atividade
de rotina” de Felson e Cohen tem sido bastante lembrada neste momento, pois
esta postula, de modo geral, que mudanças nas rotinas das pessoas explicam em
parte a variação na criminalidade: para que um crime (de contato) aconteça é
preciso que autor e vítima se encontrem em determinado momento no tempo e local
no espaço, na ausência de mecanismos de vigilância. (Cohen, Lawrence E.; Felson, Marcus (1979). "Social Change and
Crime Rate Trends: A Routine Activity Approach". American Sociological Review. 44 (4): 588–608).
Assim, por exemplo, a expectativa
é que durante uma quarentena os arrombamentos residenciais diminuam, pois há
mais pessoas em casa vigiando a propriedade, enquanto os arrombamentos
comerciais aumentam. Como as pessoas estão mais tempo em casa e na internet, é
possível prever o aumento da violência doméstica e das fraudes virtuais. Por
outro lado, devem cair os furtos e roubos de automóveis, com o menor número de
veículos em circulação. O crime organizado pode absorver o prejuízo por um
tempo – como outras “empresas” – ou pode migrar para outras modalidades de
crime, trocando, por exemplo, o tráfico de drogas pelo roubo de carga, que
continua circulando. Já exploramos num artigo anterior algumas destas possíveis
mudanças. https://tuliokahn.blogspot.com/2020/03/coronavirus-e-seguranca-publica.html
Os dados criminais de março
começam a ser divulgados por alguns Estados e já é possível colocar a prova
algumas conjecturas iniciais. Neste artigo analisamos brevemente alguns tipos
de crimes disponibilizados pelas secretarias estaduais de segurança de São
Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Distrito Federal.
Infelizmente, como sempre, o SINESP, sistema estatístico de criminalidade
federal, traz ainda dados de 2019, inviabilizando uma análise mais precisa do
fenômeno atual.
A avaliação do impacto do
fenômeno, apesar da mudança brusca nas rotinas, não é tão simples como parece.
De fato, tenho participado de um grupo de debates com alguns dos principais
criminólogos da atualidade (entre eles, o próprio Felson !) sobre a melhor
maneira de capturar os efeitos da pandemia na criminalidade.
Alguns jornais tem já comparado
os dados de março com fevereiro de 2020, numa comparação temerária, pois não
leva em conta a sazonalidade e tendência dos fenômenos criminais. Mais correto
seria comparar março de 2020 com 2019, para contornar o problema da sazonalidade.
Mas este cuidado talvez não seja o suficiente, pois não leva em consideração a
tendência anterior nem outros incidentes que podem ter ocorrido na série
histórica de crimes, como “pulsos”, “quebras de nível” e outros. Assim, alguns
colegas (eu, Ned Levine, Mathews Ashby, Vania Ceccato) têm recomendado a
necessidade de “controles”, ou seja, levar em consideração a tendência esperada,
antes de fazer a comparação com os dados mais atuais.
Existem alguns diferentes métodos
para fazer esta modelagem das séries históricas e não vou me aprofundar nisso –
técnicas como ARIMA, SARIMA, sazonal simples, aditivo de Winters, etc – e o
leitor interessado pode facilmente encontrar referencias a estas técnicas na
internet. Qualquer que seja a técnica utilizada na modelagem, no final obtemos
um “número esperado de crimes” para março de 2020. De modo que podemos comparar
o número observado em março de 2020 com este número previsto e que já leva em
consideração as tendências anteriores da série de dados.
A tabela abaixo (infelizmente
ainda em inglês) traz os números observados de casos em março de 2019,
fevereiro e março de 2020. E os números previstos de casos, em fevereiro e
março de 2020. Traz ainda, na sequencia, a diferença absoluta entre o número
observado e previsto em março de 2020. Temos então os dados necessários para
construir as últimas três colunas: diferença percentual entre observado e
previsto em março de 2020, diferença percentual entre março de 2020 e março de
2019 e finalmente, diferença percentual entre março de 2020 e o mês anterior.
As três colunas mostram que as
alterações foram grandes e na direção predita: queda da apreensão de armas e
drogas, refletindo a diminuição da circulação destes produtos. Queda nos crimes
patrimoniais, como furtos e roubos. Aumento dos homicídios dolosos, sem
detalhes ainda sobre a natureza destes homicídios, se interpessoais ou não.
Podem se tratar de crimes interpessoais ou disputas entre gangues, aproveitando
a queda na vigilância natural, como parece estar ocorrendo no Ceará. Finalmente, queda nos estupros e nas lesões
corporais dolosas, crimes que não sabíamos ao certo se aumentariam ou
diminuiriam, uma vez que boa parte deles é de natureza doméstica ou
interpessoal. É preciso tomar cuidado com relação a estes dois últimos, pois
apesar das secretarias de segurança terem aumentado a possibilidade de registro
on-line de ocorrências, é possível que a convivência com o agressor tenha
inibido a notificação de muitos casos.
Impacto da quarentena na
criminalidade: crimes e estados selecionados
Felson tem em parte razão ao
argumentar que se trata de um experimento natural tão intenso que talvez nem
precisemos de controles e métodos estatísticos sofisticados para capturar os
efeitos, bastando comparar períodos iguais e alguma aritmética básica. De fato,
a comparação fevereiro com março de 2020 na última coluna capta em parte os
efeitos da quarentena, mas ele tende a atenuá-los, uma vez que não leva em
conta a sazonalidade e tradicionalmente março tem mais crimes do que fevereiro,
um mês mais curto e de férias.
A comparação março 20 com março
19 (penúltima coluna) controla pela sazonalidade e produz resultados em geral
muito parecidos com a comparação previsto/observado (ante penúltima coluna).
Mas como ela não leva em consideração a tendência, há algumas discrepâncias
entre elas. Veja se por exemplo o caso dos homicídios: temos uma tendência de
crescimento dos homicídios no país desde o segundo semestre do ano passado. O
número esperado de casos, portanto, é bem maior do que o observado, não apenas
por conta dos efeitos da quarentena, mas também por conta da tendência
anterior.
Observe-se particularmente o caso
do Distrito Federal. Comparado com o ano anterior, há uma queda de -6,4% nos
homicídios. Mas se levarmos em conta a comparação com o número de casos
esperados, há um aumento de 15,8% nos homicídios, acompanhando o que aconteceu
em Minas, Rio e São Paulo. A interpretação é totalmente diferente. Acontece o
mesmo com o roubo de carros no Rio Grande do Sul: a comparação com o mesmo
período do ano anterior sugere uma queda de 10,3% durante a quarentena. Mas
quando levamos em conta a tendência anterior e o número previsto de casos, sugere-se
que houve um aumento de roubo de carros no Estado durante a quarentena.
Existem outros casos dúbios que o
método da modelagem e da comparação entre o observado e o esperado ajuda a
esclarecer. É o caso dos estupros, roubos e roubos de carga em São Paulo, cuja
queda parece ser mais acentuada durante a quarentena do que sugere a simples
comparação com o mesmo período do ano anterior.
Só quando tivermos passado a
quarentena e dados de mais meses,
modalidades de crimes e Estados, conseguiremos ter uma visão mais abrangente de
qual foi o impacto da epidemia sobre a criminalidade. E a partir dai, deveremos
ter o impacto da forte recessão e desemprego sobre a criminalidade, já
observada em outras recessões do passado.
Como sempre, é importante termos
as ferramentas e os métodos corretos para conseguir interpretar corretamente o
que está acontecendo. Como no combate contra a COVID, sem os dados e
indicadores certos, não conseguimos entender e controlar a epidemia, seja na
saúde, seja na segurança pública.