quinta-feira, 3 de julho de 2025

Descentralização legislativa em matéria penal

 


Tulio Kahn

A proposta do governador do Paraná, Ratinho Junior, de conferir aos Estados brasileiros autonomia para legislar em matéria penal reacende um debate relevante sobre a organização federativa do país e os limites constitucionais da descentralização legislativa. Trata-se de uma ideia com repercussões importantes para o equilíbrio entre a uniformidade normativa e a autonomia dos entes subnacionais, exigindo uma análise cuidadosa à luz de comparações internacionais, do histórico jurídico-institucional brasileiro e das potenciais consequências práticas dessa descentralização.

A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 22, inciso I, que compete privativamente à União legislar sobre direito penal. Esse dispositivo reflete uma tradição centralizadora que remonta ao período imperial e foi mantida nas constituições republicanas subsequentes. A lógica por trás dessa centralização é garantir a igualdade jurídica entre os cidadãos de diferentes partes do território nacional, além de assegurar segurança jurídica, previsibilidade e coesão no sistema penal. Permitir que os Estados criem suas próprias leis penais implicaria o risco de que uma mesma conduta fosse considerada crime em um Estado e perfeitamente legal em outro, minando os princípios de isonomia e universalidade do direito penal.

Ainda assim, o modelo federativo brasileiro já admite alguma flexibilidade normativa nos campos da segurança pública e da execução penal. Os Estados podem legislar concorrentemente sobre direito penitenciário (art. 24, I) e editar normas administrativas para a organização das polícias civis e militares. Diversas inovações ocorreram nesse espaço de manobra, como os programas de tolerância zero, políticas de mediação de conflitos, centrais de alternativas penais e medidas de contenção da criminalidade local. No entanto, esses arranjos não envolvem a criação de novos tipos penais ou penas, o que permanece como exclusividade da União.

A comparação com outros países federativos é instrutiva. Nos Estados Unidos, os estados possuem códigos penais próprios, o que resulta em grande diversidade normativa. Crimes como homicídio, posse de drogas, furto ou mesmo o aborto podem ser tratados de maneiras substancialmente diferentes conforme a jurisdição. Esse modelo, embora permita maior adaptação local e experimentação, também gera críticas quanto à desigualdade de tratamento, à insegurança jurídica e à complexidade do sistema. Além disso, o país conta com um sistema judicial complexo e recursos materiais significativos para lidar com essas diferenças. Na Alemanha, por outro lado, a legislação penal material é federal, mas a execução penal e certos procedimentos são descentralizados e conduzidos pelos Länder. Esse arranjo permite alguma adaptação local sem comprometer a uniformidade do sistema jurídico penal. O Canadá segue caminho semelhante, com legislação penal unificada e espaço para variações nos programas de justiça restaurativa e na aplicação de penas, respeitando os direitos fundamentais garantidos pela Carta de Direitos e Liberdades.

Esses modelos indicam que há espaço para descentralização em aspectos administrativos, procedimentais ou de execução, mas a legislação penal material permanece, na maior parte dos casos, como competência federal. A razão central está na necessidade de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, assegurando que o poder de punir — expressão máxima da força do Estado — seja exercido de forma equânime e controlada.

No Brasil, não há precedentes constitucionais que autorizem os Estados a legislar sobre matéria penal. Tentativas nesse sentido, como leis estaduais que buscaram proibir o uso de celulares em presídios ou impor sanções a estabelecimentos que vendessem bebidas alcoólicas em determinados horários, foram sistematicamente invalidadas pelo Supremo Tribunal Federal por invadirem a competência da União. Mesmo projetos de lei no Congresso que propunham flexibilizações nessa regra esbarraram em questionamentos sobre a constitucionalidade e os riscos federativos associados.

Os defensores da proposta de Ratinho Junior argumentam que os Estados enfrentam realidades criminais muito distintas, o que justificaria certa liberdade para adaptar suas normas penais. Estados como São Paulo e Paraná, com estruturas de segurança mais robustas, poderiam adotar políticas mais rigorosas, enquanto estados da Amazônia Legal poderiam ter normas específicas para combater crimes ambientais e conflitos fundiários. Sustenta-se ainda que a descentralização favoreceria a inovação e a responsabilização política local, criando incentivos para que os governos estaduais desenvolvessem respostas mais eficazes ao crime. Além disso, a morosidade do Congresso Nacional em reagir a novas formas de criminalidade — como cibercrimes ou novas drogas sintéticas — seria mitigada pela capacidade legislativa estadual mais ágil e sensível às urgências locais.

Entretanto, os argumentos contrários à proposta são numerosos e substanciais. Em primeiro lugar, permitir legislações penais distintas entre os Estados comprometeria o princípio da isonomia, resultando em cidadãos sendo julgados e punidos de maneira desigual por condutas semelhantes. Além disso, tal fragmentação normativa dificultaria a atuação das instituições de segurança pública e do Judiciário em crimes transfronteiriços, que exigem coordenação interestadual. Há ainda o risco de proliferação de legislações populistas, punitivistas e ineficazes, adotadas por pressão midiática ou eleitoral, aprofundando o já grave problema de superlotação carcerária. Ademais, uma mudança como essa exigiria reforma constitucional profunda e abriria precedentes para disputas federativas mais amplas e instabilidades jurídicas significativas.

Diante desse cenário, parece mais prudente adotar um modelo que preserve a centralização da legislação penal material, mas amplie o espaço para inovação subnacional em políticas de prevenção e repressão. Os Estados poderiam, por exemplo, instituir programas de justiça restaurativa, penas alternativas, mediação penal e sistemas de monitoramento eletrônico mais eficazes, além de experimentar novas tecnologias na prevenção da reincidência e na investigação de delitos. A literatura sobre federalismo penal, como os trabalhos de Sara Sun Beale (2004) e James Q. Whitman (2003), mostra que políticas penais descentralizadas só funcionam adequadamente quando acompanhadas de forte coordenação intergovernamental, sistemas de responsabilização e garantia de direitos fundamentais.

Uma proposta concreta seria a criação de um Marco Nacional de Inovação Penal Subnacional, permitindo que os Estados, por meio de convênios com o Ministério da Justiça e com supervisão do Conselho Nacional de Justiça, desenvolvessem projetos-piloto em políticas criminais, desde que ancorados em evidências empíricas e submetidos à avaliação independente. Isso preservaria a unidade normativa do sistema penal brasileiro ao mesmo tempo que promoveria a experimentação responsável e adaptada às realidades locais.

Assim, a proposta de dar autonomia legislativa penal aos Estados, embora sedutora em termos de resposta rápida à criminalidade, apresenta mais riscos do que benefícios no contexto brasileiro atual. A alternativa mais promissora é fortalecer os espaços de inovação subnacional dentro dos marcos constitucionais existentes, com foco em prevenção, execução penal e reabilitação, sem romper com os fundamentos do Estado de Direito e da federação brasileira.

Referências

·      Esse artigo foi parcialmente escrito com auxílio do ChatGpt

BEALE, Sara Sun. Too Many and Yet Too Few: New Principles to Define the Proper Limits for Federal Criminal Jurisdiction. Hastings Law Journal, v. 46, 2004.

WHITMAN, James Q. Harsh Justice: Criminal Punishment and the Widening Divide Between America and Europe. Oxford University Press, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Informações sobre drogas: BOs servem pra isso?

 


Uma das justificativas do governo federal para a criação da PEC da segurança é a padronização das informações criminais. Não é preciso necessariamente uma PEC para isso, mas antes um grande esforço administrativo, estudos, consulta a operadores e especialistas, para construir alguns consensos mínimos entre os Estados. De todo modo a preocupação é válida e o governo federal avançou muito na construção de uma base nacional de informações criminais nas últimas décadas.

Para alguns tipos de informações – sexo, idade, escolaridade da vítima ou do autor, local e data da ocorrência, tipo de meio utilizado, etc. está padronização não apresenta grandes desafios. Embora até definições aparentemente corriqueiras, como sexo, hoje em dia podem dar margem a várias categorizações e interpretações...

Outras informações, porém, são bem mais difíceis de serem padronizadas e tomo aqui como exemplo as informações sobre drogas. É crucial para qualquer país ter bons dados sobre drogas, como tipos, quantidade, qualidade, preços, rotas, incidência de uso, para que se possam traçar políticas efetivas de prevenção e repressão ao uso e tráfico. Quantidade, qualidade e preço das drogas, em alguns países, são utilizados como indicadores de sucesso da política de controle, supondo-se que o combate eficaz faz diminuir a quantidade de apreensões e simultaneamente piorar a qualidade e aumentar o preço da droga.

Mas montar um bom sistema informacional sobre o tema não é tarefa simples. É preciso pensar antes de tudo em questões filosóficas sobre o que é droga e se estamos incluindo aqui as danosas drogas legais, como remédios, o álcool e o tabaco. O que é droga ilegal, por sua vez, depende também de contexto, época e lugar, como nos recordam os exemplos da ayahuasca, da Lei Seca nos anos 20 e de Freud recomendando cocaína aos pacientes.

Existem ainda as novas drogas sintéticas, muitas delas sequer catalogadas pelos órgãos policiais. Também é preciso lembrar-se de produtos que, embora legais – cola de sapateiro, éter, benzina, etc. podem ser utilizados indevidamente como drogas. E dos insumos utilizados na produção de coca e outras drogas. Assim, estamos diante de uma lista imensa de itens monitoráveis, que vão muito além de maconha, haxixe, cocaína, heroína, crack, oxi, anfetaminas, etc., para mencionar algumas das principais. Em algum momento é preciso jogar as menos comuns numa grande categoria “outras drogas”.

Uma segunda dificuldade é que às vezes o que tem aparência de droga, não é. E o que não tem aparência é, como no caso da transformação da cocaína em selos de papel dissolvíveis, que circulam nos presídios. No momento da apreensão, o policial não tem como afirmar se o objeto é realmente droga e de que droga está se falando. Para isso é preciso enviar o material apreendido para a perícia, cujos laudos determinarão se são drogas e de que tipo.

Semelhante problema encontramos na mensuração do peso, já que é preciso vários tipos de balanças para estimar corretamente o peso da mercadoria apreendida. É a perícia que estima corretamente o peso, algo que necessita de precisão, ainda mais agora que a quantidade objetiva da droga apreendida pode determinar a decisão da justiça -  conjuntamente a outros elementos – para classificar o caso como uso ou tráfico[1]. O Boletim de Ocorrência das polícias traz geralmente apenas estimativas imprecisas do tipo e da quantidade de droga.

Na tabela abaixo vemos exemplos de como a apreensão de drogas costuma a ser registrada nos boletins de ocorrência. A nomenclatura do objeto apreendido muda conforme o tipo de droga e segundo variações regionais usadas pelo tráfico: balinhas, buchas, trouxinhas, etc. As unidades de medida, como discutido, são às vezes bastante imprecisas, do tipo, “uma porção“. Descreve-se também o objeto apreendido pela forma de acondicionamento, tal como “caixas”, “potes” e outros. A descrição é do tipo “2 buchas de maconha”, “3 invólucros pequenos com haxixe”, “Quatro papelotes de cocaína”, uma porção de heroína”,  e por ai afora.

Exemplos de descrição de drogas apreendidas

NOMENCLATURA

UNIDADE

ACONDICIONAMENTO

BALINHAS

G / GRAMAS

AMPOLA

BARRAS / BARRINHAS

GRANDE

CAIXAS

BOMBINHAS

KG / KILOS

EMBALAGEM / EMBRULHO

BUCHA

MAIORES

FRASCOS

CARTELA

MÉDIO / MEDIANO

INVÓLUCRO

CIGARROS

MENORES

PACOTE

COMPRIMIDOS

PÉ / PÉS / MUDAS

PAPEL ALUMÍNIO / FILME

PAPELOTE

PEDAÇO

POTES

PEDRA

PEQUENO

RECIPIENTE

PETECA

PORÇÃO / PORÇÕES

SACO ZIP LOCK

PINOS

VÁRIAS

SACOLA

SACOLÉ

TUBO PLÁSTICO

SAQUINHOS / SACOLETES

VASILHA

TABLETE

TIJOLO

TROUXA / TROUXINHA

 

Mas quanto pesa um papelote de cocaína? Ou uma pedra de crack? Existem variações regionais ou os criminosos criaram um sistema para padronizar pesos e medidas, antecipando-se ao MJ? Como determinar qual o tamanho (e peso, portanto) de uma caixa, um pacote ou pote, uma vez que há uma infinidade de possibilidades no mercado de invólucros?

Resolvido o problema da pesagem de forma mais ou menos precisa, temos os problemas interpretativos, como já discutimos com relação a outros indicadores na área de segurança. A distribuição dos pesos é bastante assimétrica, com poucos casos envolvendo apreensões gigantescas e uma grande quantidade de casos envolvendo pequenas quantidades de drogas.

São Paulo é um dos poucos estados que estima e divulga entre as estatísticas de produtividade a quantidade de drogas apreendidas pelas polícias em cada ocorrência, em gramas, por tipo de droga.

Como é possível observar na tabela, a média é altamente inflacionada pela existência de algumas dezenas de grandes apreensões. Nestes casos é preciso usar a mediana ou algum estimador de média que exclua os casos extremos, como M de Huber. Usar a média é produzir uma visão bastante equivocada do problema. Em média, cada ocorrência envolvendo cocaína implicou na apreensão de aproximadamente 1 quilo da droga...enquanto a mediana nos mostra 29 g e o M de Huber 35 g.

Quantidade apreendida por natureza da droga, São Paulo, 2024

NATUREZA_APURADA

Média

Mediana

Estimador M de Hubera

QTDE (GRAMAS)

COCAÍNA

1018.91

29.00

35.36

CRACK

201.72

14.00

16.81

MACONHA

2984.01

38.00

48.50

OUTROS

895.34

17.00

21.78

SSP-SP

A base de São Paulo com 130.795 BOs permite inferir, por exemplo, que no ano passado 57,3% das apreensões de cocaína envolveram até 40 gramas de drogas apreendidas, ocorrendo o mesmo com 75,2% das apreensões de crack, 51,1% das apreensões de maconha e 65,5% das apreensões de outras drogas. Em suma, muitos casos com pouca droga e poucos com muita. Trata-se de informação relevante do ponto de vista da política pública, quando se procura estabelecer critérios “objetivos” para a distinção entre usuários e traficantes.

É possível e desejável, portanto melhorar este sistema de registro das polícias estaduais– começando pela criação de preenchimento com máscaras (permitindo apenas campos numéricos para descrever quantidades) e tabelas pré-definidas de preenchimento, ao invés de usar campos abertos, que admitem quaisquer variações das mesmas palavras. Estabelecer uma média ou mediana de quanto pesa em gramas um cigarro de maconha ou um pino de cocaína. Coletar junto aos suspeitos dados sobre o valor das drogas.

Mas ao final é preciso se perguntar se não estamos pedindo ao BO informações além das que ele pode fornecer com um mínimo de qualidade. Vale a pena investir no refinamento desta coleta ou é melhor buscar estas informações em outras fontes, como laudos e estudos específicos?

Muitas informações sobre crimes são obtidas apenas depois que a investigação tem início, com a coleta de provas, dados periciais, oitiva de testemunhas. É o caso da “motivação” dos homicídios, que quando (raramente) aparece, é só nas etapas finais. Do uso de álcool ou drogas pelas vítimas e suspeitos, coletados nos laudos toxicológicos. Da “causa mortis”, em mortes dúbias. BO não é fonte boa para estas informações.

Talvez um próximo passo para a obtenção deste tipo de informação, seja integrar as bases de Boletins de Ocorrência com as bases de laudos da Polícia Científica, de Inquéritos do Ministério Público, de sentenças  da Justiça, de execuções da pena do sistema Carcerário. Nos anos 80 em São Paulo – quando computadores, softwares e programadores eram caríssimos e exclusivos de algumas poucas instituições - como a Prodesp -, o sistema de informações criminais nasceu integrando as informações destes diversos órgãos, apesar da cultura de supressão de informações interinstitucional.

O barateamento de computadores, programas e programadores teve como externalidade negativa a separações das bases de dados do sistema de justiça criminal. São poucos os Estados onde é possível acompanhar um suspeito de crime do momento em que ele é abordado pela Polícia Militar até o momento em que cumpriu sua pena no sistema prisional ou é atendido em um programa para egressos. Neste percurso um individuo percorre diversas bases de dados – chamados do Copom, Boletim de Ocorrência, laudos da Polícia Técnica, base fotográfica, base de DNA, Inquérito no MP, decisões da Justiça, bases do sistema penitenciário, base do programa de egressos, etc. O pulo do gato está em conseguir unir estas diversas bases.

Estas inciativas não são incompatíveis e é possível ao mesmo tempo aperfeiçoar o sistema de coleta das polícias, integrar as bases policiais com as bases dos outros órgãos do sistema de justiça e financiar pesquisas ad hoc sobre temas de interesse não cobertos adequadamente pelos dados administrativos. É preciso saber pedir de cada fonte, com suas características próprias, aquilo que elas podem oferecer!

O registro policial traz sempre o dado do “calor da hora”, muitas vezes impreciso, pelas condições em que são coletados. Seja para fins de investigação ou para traçar boas políticas públicas para a prevenção e repressão às drogas, é preciso complementa-los com dados coletados “no frio dos anos”.

 



[1] Outro imbróglio é definir que quantidade de droga corresponde a cada suspeito numa ocorrência. Suponhamos 1 quilo de maconha apreendido num veículo com 4 suspeitos. Atribuímos este quilo a cada suspeito? Apenas ao proprietário do veículo? Ao motorista? Dividimos por 4, ficando cada um responsável por 250g? Aceitamos a versão dos suspeitos, que colocarão a responsabilidade no menor?

quarta-feira, 26 de março de 2025

O STF como formulador de políticas pública: o caso das Guardas Municipais

 

 

O STF como formulador de políticas pública: o caso das Guardas Municipais

Tulio Kahn e Bruno Moreira Kowalski

As responsabilidades sobre as áreas de educação e saúde são de competência compartilhada das esferas federal, estadual e municipal. Estas competências são reguladas pela Constituição e legislações infraconstitucionais diversas, com a Lei do SUS.

Assim, apesar de algumas zonas cinzentas, as leis definem de maneira geral que o município cuida da Educação Infantil e do Ensino Fundamental 1. O Ensino Médio é prioridade do governo estadual, que também gere o Ensino Fundamental 2. A União, por sua vez, fica com função de coordenação financeira e técnica desse arranjo, ao mesmo tempo em que conduz as universidades federais. As competências as vezes são concorrentes e nada impede que os Estados criem suas próprias universidades, mas as responsabilidades básicas são bem divididas entre os entes federativos.

Na área da saúde, por exemplo, cabe ao município a administração da saúde básica, a atenção primária. Já o governo do estado fica com a tarefa de gerenciar os leitos e internamentos nos hospitais, além de comandar os atendimentos especializados. Cabe aos municípios o dever de aplicar no mínimo 15% de sua receita na área de saúde e ele é responsável pelo  atendimento inicial da população. O município administra as UPAS, o SAMU e demais serviços de saúde da cidade e conduz as campanhas de vacinação. Cuida da fiscalização sanitária e da vigilância epidemiológica. Os papéis de cada um são claros e detalhados, para que não haja superposição de trabalho nem desperdício de recursos.

Na área da segurança pública, porém - apesar de tentativas como a do SUSP (Sistema único de Segurança Pública), inspirado no SUS – não existem obrigações e responsabilidades claras para os municípios, estados e governo federal. A lei diz apenas que os municípios que quiserem, podem criar Guardas Municipais, mas não obriga os municípios a fazerem. Trata-se de uma capacidade, não de uma obrigação. Tampouco os municípios são compelidos a investirem uma porcentagem fixa do orçamento em segurança pública, como ocorre com a saúde ou educação. Não recebem também, obrigatoriamente, parcelas de recursos federais ou estaduais para investir em segurança. O SUSP sempre foi mais uma inspiração do que uma realidade.

Apesar desta falta de clareza na distribuição de funções na área de segurança e das competências das Guardas, segundo a MUNIC, a quantidade de cidades brasileiras com guarda municipal aumentou de 15,5% em 2009 para 19,4% em 2014. Cresceu para 21,3% em 2020 e finalmente 34% na pesquisa de 2023. (MUNIC, IBGE, vários anos)

Mas o que diz afinal a Constituição e a legislação infraconstitucional sobre o papel dos municípios na segurança pública e as competências das guardas municipais?

Em seu art. 144, a CF estabelece que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares. Não há menção às Guardas Municipais! Assim como não há menção à Polícia Técnico científica, à Força Nacional de Segurança Pública ou à Polícia Penal.

E com relação às funções das Guardas, o que diz a Carta? de acordo com o §8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Observe-se a limitação clara à proteção dos bens, serviços e instalações municipais, como praças, escolas, postos de saúde, etc. geridos pelo município.

A Constituição estabelece ainda, em seu Art. 30, que “Compete aos municípios: I – Legislar sobre assuntos de interesse local; II – Suplementar a legislação federal e estadual no que couber.”, reconhecendo, portanto que os municípios podem legislar sobre segurança, claramente um assunto de interesse local.

Apesar desta limitação de competências, na prática as Guardas exercem muitas outras atividades. Já em 2009, na primeira edição da MUNIC IBGE, a pesquisa, respondida pelas prefeituras, identificou entre as funções exercidas pelas guardas, estavam: "Segurança e/ou proteção do prefeito e/ou outras autoridades",   “Ronda escolar",  "Proteção de bens, serviços e instalações do município", "Posto de guarda", "Patrulhamento ostensivo a pé, motorizado ou montado", "Atividades da defesa civil", "Atendimento de ocorrências policiais",              “Proteção ambiental", “Auxílio no ordenamento do trânsito", "Controle e fiscalização de comércio de ambulantes", "Auxílio à Polícia Militar",  “Ações educativas junto à população", “Auxílio à Polícia Civil", "Patrulhamento de vias públicas", "Auxílio ao público", “Auxílio no atendimento ao Conselho Tutelar", "Segurança em eventos/comemorações", "Atendimentos sociais (partos, assistência social, dentre outros)",  "Serviços administrativos",              “Assistência ao Judiciário" e "Programas sociais de prevenção ao crime e violência", entre outras atividades.

Essa emulação das atividades da PM não é acidental uma vez que é frequente que policiais militares e civis aposentados sejam convidados para gerir as secretarias municipais de segurança ou Guardas, acabando por reproduzir o sistema com o qual estão familiarizados.

Nas últimas décadas, em razão do crescimento da violência, novas legislações – como o Estatuto das Guardas de 2014  e a Lei do SUSP de 2018 -   e de incentivos financeiros do governo federal, os municípios vêm aumentando sua presença na segurança, criando estruturas e instituições, como Secretarias Municipais de Segurança, Guardas Municipais, Fundo Municipal de Segurança, Conselho Consultivo Municipal, Conselhos de Segurança nos bairros, Planos Municipais de Segurança Pública, etc.

Em contraste com prefeituras preocupadas apenas em militarizar e armar as Guardas há também aquelas onde existe um esforço de integrar as demais pastas municipais numa perspectiva preventiva, pensando as ações de segurança em conjunto com o serviço social, esportes, educação, iluminação pública, limpeza e assim por diante. Às vezes são os próprios prefeitos que reúnem periodicamente todos os envolvidos para monitorar os resultados, alocar recursos e cobrar ações. As prefeituras têm também investido bastante em tecnologias como câmeras de monitoramento, centrais de despacho de viaturas, leitores óticos de placas, aplicativos de celular, drones, georeferenciamento criminal, sistemas de registros de ocorrências digitalizados e outros equipamentos e recursos tecnológicos. Os municípios podem atuar também na segurança através de mudanças na legislação, regulamentando poluição sonora, venda de álcool, segurança de grandes eventos ou impondo regras aos estabelecimentos semi-publicos, como clubes e shoppings centers.

Existem assim diversas alternativas para a atuação dos municípios na segurança, que não se limitam ao policiamento ostensivo e as operações policiais. O fato é que pouco a pouco a legislação foi ampliando esse papel das Guardas para além do previsto na Constituição, o que gerou uma série de controvérsias sobre prisões, revistas, entrada e busca em domicílios e outras ações das Guardas que foram contestadas na Justiça. Exemplos desta ampliação encontram-se no Estatuto das Guardas e na Lei do Susp, cujos aspectos principais destacamos abaixo.

Atribuições da Guarda pela lei nº 13.022/2014

O Estatuto diz que o município pode criar uma Guarda Municipal, que tem como principal função proteger o patrimônio público da cidade. Mas desde a aprovação da lei nº 13.022/2014 às atribuições da Guarda Municipal passaram a ir muito além do que simplesmente proteger o patrimônio público. Função principal, como se infere, não é o mesmo que função exclusiva.

Segundo o Art. 5º do Estatuto, São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais:

I - zelar pelos bens, equipamentos e prédios públicos do Município; II - prevenir e inibir, pela presença e vigilância, bem como coibir, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais; III - atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais; IV - colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social; V - colaborar com a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem, atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas; VI - exercer as competências de trânsito que lhes forem conferidas, nas vias e logradouros municipais, nos termos da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), ou de forma concorrente, mediante convênio celebrado com órgão de trânsito estadual ou municipal; VII - proteger o patrimônio ecológico, histórico, cultural, arquitetônico e ambiental do Município, inclusive adotando medidas educativas e preventivas.

Como assinalamos em negrito, a lei de 2014 enfatizava a limitação desta atuação aos bens, serviços e instalações municipais. A lei nº 13.022/2014 estabelece ainda uma série de outras atividades para as Guardas, mas sem mencionar o policiamento ostensivo – e suas implicações lógicas como o poder de parar e revistar pessoas. São antes atividade preventivas e administrativas tais como:

VIII - cooperar com os demais órgãos de defesa civil em suas atividades; IX - interagir com a sociedade civil para discussão de soluções de problemas e projetos locais voltados à melhoria das condições de segurança das comunidades; X - estabelecer parcerias com os órgãos estaduais e da União, ou de Municípios vizinhos, por meio da celebração de convênios ou consórcios, com vistas ao desenvolvimento de ações preventivas integradas; XI - articular-se com os órgãos municipais de políticas sociais, visando à adoção de ações interdisciplinares de segurança no Município; XII - integrar-se com os demais órgãos de poder de polícia administrativa, visando a contribuir para a normatização e a fiscalização das posturas e ordenamento urbano municipal; XIII - garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas; XIV - encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário; XV - contribuir no estudo de impacto na segurança local, conforme plano diretor municipal, por ocasião da construção de empreendimentos de grande porte; XVI - desenvolver ações de prevenção primária à violência, isoladamente ou em conjunto com os demais órgãos da própria municipalidade, de outros Municípios ou das esferas estadual e federal; XVII - auxiliar na segurança de grandes eventos e na proteção de autoridades e dignitários; e XVIII - atuar mediante ações preventivas na segurança escolar, zelando pelo entorno e participando de ações educativas com o corpo discente e docente das unidades de ensino municipal, de forma a colaborar com a implantação da cultura de paz na comunidade local.

Outra etapa importante nesse processo de ampliação de competências das Guardas Municipais foi a LEI Nº 13.675, DE 11 DE JUNHO DE 2018 – ou Lei do SUSP, onde a palavra Município aparece 20 vezes no texto. Assim, no  Art. 2º, le-se que “A segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, compreendendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Munícipios, no âmbito das competências e atribuições legais de cada um.” As Guardas aparecem como integrantes operacionais do sistema único (art. 9) e os Municípios como integrantes estratégicos.

As operações policiais ostensivas da Guarda são admissíveis nesta lei (inclusive as investigativas e de inteligência!), desde que planejadas em equipe e “no limite de suas competências”  e ainda, segundo o Art. 16., os órgãos integrantes do Susp poderão atuar em vias urbanas, rodovias, terminais rodoviários, ferrovias e hidrovias federais, estaduais, distrital ou municipais, portos e aeroportos, no âmbito das respectivas competências, em efetiva integração com o órgão cujo local de atuação esteja sob sua circunscrição. Já não fica clara aqui a limitação aos bens, serviços e equipamentos municipais nesta atuação das Guardas.

Estas discrepâncias entre o que diz a Constituição e o que dizem posteriormente o Estatuto e a Lei do Susp geraram entendimentos diferentes sobre as competências das Guardas,  de modo que alguns casos foram parar na Justiça, obrigando os tribunais a se manifestar diante de casos concretos. Ainda em 2014, ano de criação do Estatuto, a Feneme (Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais) entrou com uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal) alegando que a lei 13.022/2014 fez com que as guardas municipais invadissem a competência das polícias e deixassem de ser apenas um serviço de vigilância do patrimônio municipal. Em maio do mesmo ano, o ministro Gilmar Mendes negou a continuidade do processo com a justificativa de que a Feneme não tinha legitimidade para propor uma ADI, ação que deve ser aberta por “confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”, sem entrar no mérito da questão.

Em 2016, após ação movida pelo Ministério Público contra a Prefeitura de Araçatuba (SP), a Justiça de São Paulo decidiu em primeira e segunda instâncias que a Guarda Municipal da cidade não poderia revistar cidadãos, entendendo que tal atuação extrapolaria o escopo previsto em lei. Segundo consta no processo, a ação foi movida depois que o então comandante da Guarda Municipal de Araçatuba disse à imprensa que faria revistas e citou justamente a lei 13.022/2014 como suposto respaldo para esse tipo de abordagem. Conforme a interpretação do STJ dada na ocasião, “A guarda municipal, por não estar entre os órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da CF, não pode exercer atribuições das polícias civis e militares. A sua atuação da guarda municipal deve se limitar à proteção de bens, serviços e instalações do município. STJ. 6ª Turma. REsp 1977119-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 16/08/2022 (Info 746).

Uma mudança importante ocorreu em agosto de 2023, quando o STF estabeleceu que “Guardas Municipais são órgãos de segurança pública”, argumentando em favor da não taxatividade do rol do artigo 144. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes destacou que as guardas municipais têm entre suas atribuições o poder-dever de prevenir, inibir e coibir infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais. "Trata-se de atividade típica de segurança pública exercida na tutela do patrimônio municipal", ressaltou.

Posteriormente, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a guarda municipal, apesar de integrar o sistema de segurança pública – conforme afirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 995, em agosto último –, não possui as funções ostensivas típicas da Polícia Militar nem as investigativas próprias da Polícia Civil. Assim, em regra, estão fora de suas atribuições atividades como a investigação de suspeitos de crimes que não tenham relação com bens, serviços e instalações do município. A Terceira Seção do STJ definiu que, “salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal[5] se, além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários. https://www.dizerodireito.com.br/2023/11/as-guardas-municipais-sao.html

A evolução mais recente da questão veio recentemente (fevereiro de 2025) quando o STF julgou uma ação de 2004 em que o TJ-SP contestava uma lei municipal de São Paulo, que atribuía à Guarda a capacidade de fazer policiamento preventivo e comunitário, ainda que limitado aos bens e serviços municipais - Tema 656 referente à lei 13.866/04 do município de São Paulo. Em 20/2 mês fomos surpreendidos pelo STF com uma tese de repercussão geral que vai além do que a Guarda Municipal de São Paulo pretendia originalmente, praticamente liberando o policiamento ostensivo (e) comunitário para as guardas, independente da limitação aos bens, equipamentos e serviços municipais.

 

 

 

A tese aprovada pela maioria do STF é a seguinte:

“É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas guardas municipais, inclusive o policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstas no artigo 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso 7º, da Constituição Federal. Conforme o artigo 144, parágrafo 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional”, 

Observe-se que em parecer enviado ao Supremo, o MPF enfatizou a necessidade de deixar de fora das atribuições das guardas municipais as atividades que extrapolassem a proteção dos bens, serviços e instalações municipais – como as de policiamento ostensivo fora desse contexto, mas  não foi esse o entendimento da maioria dos ministros. https://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr2/2025/stf-decide-que-guardas-municipais-estao-impedidas-de-desempenhar-atividade-de-policia-judiciaria

A nova tese provocou um reboliço, mobilizando prefeitos, que querem chamar suas Guardas de policiais municipais, foi comemorada pelas entidades das Guardas – que já fazem de fato policiamento há décadas – e contestada pelas entidades vinculadas às Policiais Militares, que já anunciaram que pretendem recorrer à Justiça para que se esclareçam os termos da decisão.

Confirmada a interpretação, muitas outras mudanças precisarão ser feitas no que tange à seleção, treinamento, armamento, manuais de procedimento, fiscalização, responsabilização e diversos outros aspectos. É possível dizer que são poucas hoje as Guardas que tem condições de assumir estas novas responsabilidades. Ao mesmo tempo, o ganho de novas atribuições propriamente policiais, se fará, infelizmente, em detrimento de alternativas e políticas de segurança de caráter preventivo. Há quem pense que o fato de não poder fazer policiamento ostensivo, revistas, buscas ou mesmo, como antigamente, portar armas, não era uma limitação, mas antes uma vantagem – que dava as guardas uma identidade diferenciada, uma imagem mais amigável e maior legitimidade para o apaziguamento dos conflitos sociais.

O fato é que, a escalada nacional da violência e da sensação de insegurança parece estar contribuindo para moldar uma interpretação cada vez mais abrangente do papel das Guardas na segurança, processo que como vimos se acelerou nas últimas décadas. Segurança pública é uma das principais preocupações da população e esse contexto ajuda a entender a decisão do STF, baseada no princípio jurídico da eficiência.

O STF como formulador de políticas públicas e o princípio da eficiência

Vimos que, em julgamento precedente sobre a matéria, por ocasião da aqui já citada ADPF 995, a Suprema Corte já reconhecia expressamente as Guardas Municipais como integrantes do Sistema de Segurança Pública. E para sanar qualquer dúvida quanto a isso, o Ministério da Justiça incluiu na PEC da segurança a proposta para explicitar as Guardas no rol das forças de segurança.

Naquela oportunidade, o STF analisava, a pedido da Associação dos Guardas Municipais do Brasil, interpretações que se verificavam em diferentes Tribunais do país em torno da Lei Federal 13.675/18, a qual disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp).

Foi relator para a matéria o ministro Alexandre de Moraes, promotor público de formação e ex-secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo; operador do Direito, portanto, com larga experiência na matéria apreciada pela Suprema Corte. A ação promovida pela Associação foi julgada totalmente procedente, por maioria para, “nos termos do artigo 144, §8º da CF, CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO aos artigos 4º da Lei 13.022/14 e artigo 9º da 13.675/18 DECLARANDO INCONSTITUCIONAL todas as interpretações judiciais que excluam as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública.”

Na tramitação da ação, a Presidência da República defendeu a improcedência do pedido formulado pela Associação, “tendo em vista que a Constituição Federal prevê as guardas municipais no § 8º do art. 144, não as incluindo no rol taxativo dos órgãos de segurança pública.” A Advocacia Geral da União defendeu, na mesma linha, que “o rol previsto pelos incisos I a VI do artigo 144 da Constituição Federal é exaustivo, o que inviabiliza a conclusão de que as guardas municipais integram os órgãos de segurança pública.”

No voto que conduziu o julgamento, o relator Min. Alexandre de Moraes fez um retrospecto de diversas decisões judiciais que iam de encontro à ação proposta pela Associação, inclusive as decisões aqui referidas oriundas do Superior Tribunal de Justiça. Esta jurisprudência caminhava no sentido de proibir a extensão do rol de atribuições da Guarda Municipal, com expressa referência ao dispositivo constitucional que as excluiu do rol de órgãos encarregados da segurança pública.

Ao decidir pela ampliação do rol previsto no art. 144 da CF, o relator do acórdão, seguido pela maioria, iniciou as suas ponderações apontando a presença constitucional do princípio da eficiência. Segundo se decidiu, o combate à crescente criminalidade reclamaria por parte dos agentes públicos a aplicação de políticas eficientes, no que se incluiria o aumento do rol de órgãos de segurança para nele também incluir as Guardas Municipais. O argumento da eficiência era conclamado pelo relator e consequentemente pelo próprio STF como justificativa para conferir às guardas municipais poderes mais amplos em nome do combate à criminalidade.

Sem nenhum espanto, a Corte se valia de um argumento sem dúvida pragmático para justificar uma interpretação mais alargada do dispositivo constitucional.

O pragmatismo como pressuposto da interpretação do princípio fica bastante evidente no trecho em que o relator destaca: “Esse mínimo exigido para a satisfação da eficiência pelo Poder Público adquire contornos mais dramáticos quando a questão a ser tratada é a segurança pública, em virtude de estar em jogo a vida, a dignidade, a honra, a incolumidade física e o patrimônio dos indivíduos.”

A orientação da decisão com base em um argumento prático fica ainda mais clara no seguinte trecho do acórdão: “A eficiência na prestação da atividade de segurança pública é garantia essencial para a estabilidade democrática no País, devendo, portanto, caracterizar-se pelo direcionamento da atividade e dos serviços públicos à efetividade do bem comum, eficácia e busca da qualidade.”

Diversos dados de realidade, como estatísticas sobre a atuação das Guardas Municipais foram utilizados pelo STF, não para condenar possíveis atuações fora do escopo constitucional, mas, pelo contrário, para justificar a sua inclusão dentro do rol de órgãos de segurança pública. Para além destes dados, foram destacados pelo STF no julgamento desta ADPF inúmeras outras decisões que, paulatinamente, atribuíam às Guardas papel que não se limitava a proteção de bens e patrimônio público. O Supremo reconhecia, então, que a ampliação do rol de atividades das Guaras Municipais já vinha sendo verificada ao longo do tempo a partir de decisões do próprio Supremo, como, por exemplo, em casos envolvendo infrações de trânsito.

Na prática, portanto, desde o julgamento da ADPF 995, às Guardas Municipais foram atribuídas competências para atuação mais amplas que rol previsto no art. 144 da CF, reconhecido pela Suprema Corte como não taxativo.

Parece-nos bastante claro que a decisão do STF na ADPF 995, agora reforçada pelo julgamento do RE 608588 (Tema 656), foi construída a partir de fundamentos que não se prendem exclusivamente ao texto constitucional. E nisso parece não haver qualquer espanto. A Suprema Corte é, além de guardiã da Constituição Federal, uma Corte política, no sentido de que a ela são atribuídas competências que, sob a roupagem de interpretação constitucional, significam a interferência clara em políticas públicas.

Aqui, esta função fica bastante evidente quando, atuando verdadeiramente como legislador positivo, o Supremo se vale de interpretação ampliativa para atribuir às Guardas Municipais funções que nem a Constituição Federal, nem as leis de regência, parecem lhe atribuir. Como se viu no julgamento pretérito sobre a matéria (ADPF 995), questões de fato relacionadas ao tema da segurança pública foram expressamente consideradas na ratio da decisão.

Essa racionalidade aparece de maneira clara na própria ementa do julgado, quando a Suprema Corte conclui: “É evidente a necessidade de união de esforços para o combate à criminalidade organizada e violenta, não se justificando, nos dias atuais da realidade brasileira, a atuação separada e estanque de cada uma das Polícias Federal, Civis e Militares e das Guardas Municipais; pois todas fazem parte do Sistema Único de Segurança Pública.”

Tais argumentos vêm à tona agora por ocasião do julgamento do recurso extraordinário aqui referido. Uma vez mais, o Supremo adota interpretação ampliativa do texto constitucional para reforçar as atribuições da Guarda Municipal anteriormente já definidas. Considerações em torno da criminalidade compõem o fundamento da decisão, o que significa dizer que o STF, a pretexto de tão só interpretar a Constituição Federal, participa de algum modo da própria formulação das políticas de segurança pública, permitindo que os Municípios passem a desempenhar papel mais presente no combate ao crime.

Tanto isso é verdade que, em diversos municípios de São Paulo, o próprio nome da Guarda Municipal foi alterado para Polícia Municipal, a revelar o princípio de uma profunda alteração que se avizinha e que certamente ainda vai gerar bastante controvérsia. Evidência disso é que, segundo noticia a imprensa, a Justiça de São Paulo já derrubou até o momento quatorze leis municipais que promoviam esta mudança de nomenclatura.

Este é apenas um pequeno exemplo de como o tema será doravante tratado e é revelador de como a decisão do STF sobre a matéria é um exemplo definitivo sobre como suas decisões ultrapassam a mera interpretação normativa para alcançar, de modo direto, a formulação de políticas públicas.  

 

 

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