Nos últimos quatro anos os meios
de comunicação têm divulgado matérias sobre aumentos crescentes e alarmantes nos
feminicídios. O Brasil seria o 5º pior país do mundo neste tipo de crime. Nosso
argumento aqui é que boa parte deste crescimento é um artifício estatístico. O
problema já é grave o bastante sem que seja preciso exacerbá-lo com a
divulgação de estatísticas duvidosas.
O crime de feminicídio foi criado
em 2015 e antes disso os assassinatos de mulheres eram classificados simplesmente
como homicídios dolosos, independente da motivação, contexto ou relação com o
autor. Com a criação da nova natureza jurídica, os operadores do direito (advogados,
delegados, promotores, juízes) foram progressivamente substituindo a antiga
classificação jurídica pela nova, agora “hedionda”. Trata-se de um fenômeno
comum quando da alteração de um tipo penal, uma vez que o direito não é uma
ciência exata.
O gráfico baixo traz, por
exemplo, a taxa média de estupros no Sudeste entre 2001 e 2019 e mostra claramente
o impacto da mudança de legislação em 2009, quando a definição de estupro foi
ampliada. A média passa de 6,2 em 2008 para 10 em 2009, depois 21 e finalmente
25 por 100 mil em 2012. É difícil saber nestes casos o que se deveu ao aumento
do fenômeno e o que se deve ao processo de aprendizado na aplicação da norma. Seria
preciso retroagir e reclassificar os casos antigos segundo a nova definição
para controlar o efeito do aprendizado. Se pegarmos as estatísticas de atentado
violento ao pudor veremos a tendência inversa, tornando clara a substituição de
uma natureza pela outra. Jornalistas desavisados diriam que houve uma explosão
de estupros no país...
Vimos que feminicídio é crime
hediondo, punido com mais rigor que o homicídio doloso. Se qualificar um crime
como hediondo tinha por finalidade inibi-lo, à primeira vista não foi isso o
que aconteceu, como alguém poderia falaciosamente argumentar. Em São Paulo os
feminicídios cresceram de 40 para 136 casos (240%) entre 2015 e 2018 e em todo
o Brasil o crescimento foi de 168,6% no período, passando de 449 para 1206
casos. Mas como vimos, não é possível saber se tivemos aumento real ou apenas
um aperfeiçoamento progressivo no uso da nova tipologia criminal. Novamente,
seria preciso reclassificar os casos de homicídio de mulheres dos anos
anteriores, para identificar se está ou não ocorrendo aumento desta modalidade
criminal. Nossa hipótese é de está ocorrendo simplesmente uma substituição de
uma classificação jurídica por outra, como no caso dos estupros em 2009.
A tabela abaixo sugere uma
substituição progressiva e linear de homicídios dolosos por feminicídios. No período
2015 a 2018, os homicídios dolosos de mulheres caem -18,4% em São Paulo e -13%
no Brasil como um todo e os feminicídios, como vimos, aumentam respectivamente
240% e 168%. Quando somamos os homicídios dolosos com os feminicídios, a
situação aparenta ser muito mais estável: queda de -1,3% em São Paulo e aumento
de 3,1% no país como um todo.
Feminicídios e Homicídios
femininos – Sudeste e Brasil – 2015 a 2018
Fontes: SSP/SP, ISP RJ, TJRJ,
SINESP
O dado mais interessante surge no
canto inferior direito da tabela, que traz a porcentagem dos feminicídios
dentro dos homicídios dolosos femininos. Em São Paulo era de apenas 7,1% quando
a lei foi criada e passa a 29,5% em 2018. No primeiro semestre de 2019 já chega
a 38%. No Brasil como um todo, os feminicídios representavam 9,7% das mortes de
mulheres em 2015 e representam hoje algo em torno de 30% dos casos (208,9 % de
crescimento).
Fenômenos criminais são bastante
“rotineiros” e padronizados, raramente se movendo nesta velocidade. A
interpretação mais plausível, portanto, é de que presenciamos uma lenta fase de
aprendizado coletivo no que tange à aplicação da norma. A própria criação do novo
tipo penal e as reportagens que se seguiram contribuíram para sensibilizar os
operadores do direito com relação ao fenômeno, antes apenas um subtipo de
motivação dos homicídios.
Possivelmente este aprendizado
ainda se encontra em andamento e esta substituição se aprofundará nos próximos
um ou dois anos, até que se solidifique uma interpretação do que se encaixa ou
não na definição. Segundo o IPEA, 39% dos homicídios de mulheres ocorrem dentro
dos domicílios e creio que a porcentagem de feminicídios dentro dos homicídios
femininos deva se aproximar com o tempo deste patamar. O Mapa da Violência de
2015 estimou que os feminicídios equivalem a 50,3% dos homicídios femininos, o
que nos colocaria ainda mais longe da porcentagem “correta”.
O Global Study on Homicide divulgado
em 2018 pela UNODC permite comparar a porcentagem de feminicídios dentro do
total de homicídios femininos. Segundo o estudo da UNODC, em todo o mundo os
“feminicídios” representam 58% das mortes de mulheres, porcentagem puxada pela
África, Ásia e Oceania. Nas Américas, a proporção é de 46%. Isto ocorre porque
nos países Latino Americanos há um grande número de morte de mulheres
relacionadas ao tráfico, roubos e outras circunstancias não domésticas. Esta
porcentagem varia em função da motivação local dos homicídios, se mais
interpessoais ou ligados à dinâmica criminal. Estando corretas estas
estimativas da UNODC, significa que provavelmente ainda estamos no período de
aprendizado e que os registros de feminicídio no país devem crescer.
Mas o argumento mais convincente
em favor da hipótese da substituição em detrimento da hipótese do aumento está
na análise de outros crimes contra as mulheres, que estão em queda. A tabela
abaixo trás os dados de lesão corporal dolosa, maus tratos e ameaças contra
mulheres em São Paulo, também para o período 2015 a 2018. Lesões caíram -1,2%
no período, maus tratos – 9,4 e ameaças -2,6%.
Crimes contra mulheres
Ano
|
LCD
|
Maus Tratos
|
Ameaça
|
2018
|
50688
|
356
|
57296
|
2017
|
50665
|
329
|
57508
|
2016
|
52336
|
352
|
58963
|
2015
|
51331
|
393
|
58826
|
|
|
|
|
Variação
|
- 1,25
|
- 9,41
|
- 2,60
|
Fonte: SSP/SP
Não é impossível que isso
aconteça, mas diria que é bastante implausível que estejamos vendo ao mesmo tempo
uma explosão real de feminicídios, ao mesmo tempo em que vemos uma queda de
lesões, maus tratos e ameaças, pelo menos no caso de SP. A única explicação
seria que as agressões se tornaram mais letais (por exemplo, com uso de armas
de fogo), mas não há evidências sobre isso. A flexibilização das armas de fogo
poderia provocar este efeito sobre os feminicídios, mas felizmente a sociedade ainda
tem resistido às investidas do governo federal.
E como estamos falando de padrões
criminais, em que situação estamos em termos comparativos? Somos de fato o 5º
pais mais “feminicida”? É difícil responder, pois os países adotam definições
diferentes de feminicídio. A maioria dos casos, todavia, se enquadraria nos
casos de homicídios domésticos, cometidos por parceiros íntimos ou familiares.
(que não coincide com a definição jurídica brasileira, mas é uma boa
aproximação). Esta é a definição operacional adota pela UNODC, que reconhece
algum grau de subjetividade nas diferentes definições de feminicídio.
Segundo o Global Study on Homicide
da UNODC de 2018, a taxa média mundial de “feminicídios” é de 1,3 por 100 mil
mulheres, tomando os números de 2017. No mesmo ano, a taxa para o Brasil foi de
1,05: 100 mil, ligeiramente menor, portanto, do que a média mundial. A média
brasileira é menor do que a Africana (3,1) e das Américas (1,6), mas maior do
que a Europeia (0,7:100 mil) ou Asiática (0,9). Assim, comparando pela taxa por
cem mil mulheres, ainda que a definição adotada pela UNODC seja diferente da
brasileira, não parece ser correta a estimativa de que somos o 5º pior país do
mundo, pelo menos em termos de risco relativo, se estamos falando de
feminicídio. O engano vem do mal uso do Mapa da Violência de 2015, que fala em
taxa de homicídio feminino (4,8 por 100 mil em 2013), comparando com 83 países,
e não em feminicídio, até porque a
legislação tinha acabado de ser aprovada e não existiam estatísticas sobre
feminicídio no Brasil.
Não se trata de diminuir a
relevância do problema, mas de colocar os números em seu devido lugar. Há
indícios de que não estamos vivendo uma explosão de feminicídios, mas antes uma
mudança progressiva no sistema de classificação. E que a incidência de
feminicídios no Brasil, ao menos no momento, é próxima do padrão mundial. Estatísticas
equivocadas podem levar a políticas equivocadas. É preciso deixar os números “assentarem”.
Já são graves o suficiente e nada impede que avancemos, sem histerias
coletivas, na solução do problema.