quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O fim da era dos jovens infratores? Por que as internações juvenis estão caindo no Brasil e no mundo

 

Tulio Kahn[1]

Nos últimos sete anos, o número de adolescentes brasileiros internados em unidades socioeducativas despencou. Segundo dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), compilados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), havia 23.424 adolescentes do sexo masculino em regime de internação em 2018. Em 2024, esse número caiu para 11.506 — uma redução de mais de 50% no período. O dado chama atenção não apenas pela magnitude, mas também pela consistência da tendência. A curva é descendente ano após ano, com pequenas oscilações e uma discreta alta em 2024 (+2% em relação ao ano anterior). O ritmo de queda foi mais acentuado entre 2019 e 2021, coincidindo com o período de pandemia, quando o confinamento social e a redução de atividades presenciais influenciaram praticamente todos os indicadores sociais do país.

 



Essa redução, porém, não é um fenômeno isolado do Brasil. Pesquisas internacionais apontam que o envolvimento de jovens em crimes de rua e delitos violentos vem caindo há mais de duas décadas em diversos países — dos Estados Unidos e do Reino Unido à Finlândia, Alemanha e Canadá. O estudo “The International Youth Crime Drop”, publicado em 2025 por Dirk Oberwittler e Robert Svensson, mostra que a maioria das nações desenvolvidas registrou declínio contínuo nas taxas de crimes juvenis desde meados dos anos 1990. Os autores atribuem essa transformação a uma combinação de fatores sociais, culturais e tecnológicos: mudanças nos hábitos de lazer dos jovens, aumento do tempo gasto em atividades virtuais, melhoria da supervisão familiar e da educação, e reformas nos sistemas de justiça juvenil.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de jovens em centros de detenção caiu cerca de 75% entre 2000 e 2022, segundo o relatório Youth Justice by the Numbers, do Sentencing Project. O mesmo movimento foi observado no Reino Unido, onde o Youth Justice Board aponta uma redução de 70% nas internações desde 2010. Na Finlândia, pesquisas baseadas em delinquência autorrelatada mostram que o percentual de adolescentes envolvidos em furtos ou brigas graves caiu pela metade entre 1995 e 2020. Na Alemanha e na Escandinávia, as prisões e condenações de jovens também se reduziram de forma consistente. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu relatório sobre violência juvenil, destaca ainda que as taxas de homicídio entre pessoas de 15 a 29 anos diminuíram globalmente entre 2000 e 2019, sobretudo em países de renda média e alta.

A pergunta inevitável é: o que está por trás desse fenômeno?

As interpretações são múltiplas. Alguns pesquisadores falam em mudança geracional de valores, com jovens menos inclinados a comportamentos de risco. Outros enfatizam a “revolução digital”: adolescentes passam hoje muito mais tempo em redes sociais, jogos e interações online, o que reduz a exposição a situações de conflito e à vida nas ruas.

Há também o argumento institucional: sistemas de justiça mais humanizados e políticas de alternativas à internação, que priorizam medidas educativas, mediação e justiça restaurativa em lugar do confinamento. E, finalmente, há fatores estruturais: maior escolarização, envelhecimento demográfico e queda geral da criminalidade violenta em boa parte dos países.

No Brasil, o declínio das internações juvenis coincide com mudanças importantes na legislação e na gestão das medidas socioeducativas. Em 2012, foi aprovada a Lei 12.594, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). A norma introduziu princípios de educação, reintegração e responsabilização progressiva, estabelecendo que a internação deve ser usada apenas em último caso e por prazo determinado. Desde então, diversos estados passaram a investir em medidas alternativas, como liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade e acompanhamento psicossocial. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em seu Relatório sobre a Redução de Adolescentes em Medidas Socioeducativas (2024), afirma que parte da queda no número de internações se deve a mudanças institucionais e à aplicação mais ampla de medidas não privativas de liberdade.

Há também fatores sociais e comportamentais que parecem convergir para o mesmo sentido. O Brasil vive, assim como outros países, uma mudança nos hábitos de lazer e sociabilidade dos jovens. A pesquisa TIC Kids Online Brasil, realizada pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e pelo Cetic.br, mostra que 93% das pessoas de 9 a 17 anos usavam a internet em 2023, e 83% tinham perfis em redes sociais. Isso significa que a vida dos adolescentes hoje se passa, em grande medida, no ambiente virtual — onde a interação social é mediada por telas, e não por praças, esquinas ou festas. Embora não haja evidência direta de que isso reduza crimes, a relação é plausível: menos tempo em espaços públicos pode significar menos exposição a conflitos e delitos de rua.

Paralelamente, o Brasil atravessa uma transição demográfica acelerada. A população jovem (de 10 a 19 anos) representa hoje uma fatia menor do total do que há 20 anos. Segundo o IBGE, a idade mediana do brasileiro subiu de 29 anos em 2010 para 35 em 2022. Há, portanto, menos adolescentes em proporção à população, o que naturalmente reduz o contingente potencial de envolvidos em infrações. Outro ponto importante é a mudança educacional. Nos últimos 15 anos, o Brasil registrou avanços discretos, mas consistentes, em indicadores de escolarização. A taxa de distorção idade-série no ensino médio caiu de 22,2% em 2022 para 19,5% em 2023 (INEP). A frequência escolar entre jovens de 15 a 17 anos também aumentou, e programas de transferência de renda e ampliação do ensino médio integral contribuíram para manter adolescentes mais tempo na escola.

A literatura criminológica é unânime em reconhecer a educação como um fator protetivo contra o envolvimento em atividades ilegais. Jovens que permanecem mais tempo na escola têm menos disponibilidade temporal e maior inserção em redes sociais institucionalizadas. Há, ainda, a melhoria gradual da supervisão familiar. A mesma pesquisa TIC Kids Online revela que 61% dos responsáveis afirmam supervisionar o uso de celulares e internet dos filhos, impondo regras e restrições. Esse dado pode parecer trivial, mas traduz um movimento mais amplo de controle social informal, que inclui maior presença dos pais e percepção de risco nas ruas.

Enquanto o número de adolescentes internados cai, o Atlas da Violência 2024, produzido pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostra que o país registrou em 2023 a menor taxa de homicídios dos últimos 11 anos: 21,2 por 100 mil habitantes. O recorte por faixa etária confirma que também há redução de homicídios entre jovens, embora o Brasil ainda ostente índices elevados em comparação internacional. Esse ambiente menos violento tende a se refletir em menor recrutamento juvenil para práticas criminosas, especialmente em periferias urbanas. Com menos homicídios e menos oportunidades no mercado ilícito, há também menos motivos para o jovem ingressar ou permanecer no ciclo infracional.

As evidências, embora fragmentadas, compõem um quadro coerente. O Brasil parece reproduzir, com algum atraso e peculiaridades, a tendência internacional de declínio do crime juvenil e da punição severa de adolescentes infratores.

Mas há também novos desafios. O deslocamento da vida juvenil para o ambiente virtual abre espaço para outras formas de risco — crimes cibernéticos, exploração sexual online, fraudes e cyberbullying. O “declínio da delinquência de rua” não significa o fim da delinquência juvenil; apenas sua transformação. O dado de 2024 — leve alta de 2% nas internações — serve como alerta. Pode ser apenas uma oscilação, mas também pode indicar saturação da tendência de queda. Fatores econômicos, aumento da desigualdade e o enfraquecimento de políticas de prevenção social podem reverter parte dos ganhos recentes.

O desafio, segundo o próprio CNJ, é consolidar o paradigma da socioeducação, garantindo que as medidas alternativas não sejam vistas como “impunidade”, mas como responsabilização inteligente, que evita o estigma e reduz a reincidência. Em paralelo, é preciso compreender que a redução do encarceramento juvenil é apenas um sintoma de mudanças mais amplas na juventude brasileira — mudanças culturais, tecnológicas e institucionais que alteram profundamente a forma como o país lida com seus adolescentes.

Referências

  • Conselho Nacional de Justiça (2024). Relatório sobre a Redução de Adolescentes em Medidas Socioeducativas (2013–2022).
  • IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024). Atlas da Violência 2024.
  • Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) / Cetic.br (2023). TIC Kids Online Brasil 2023.
  • Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo Escolar 2023 / Indicadores Educacionais.
  • Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Projeções da População 2024.
  • Oberwittler, D.; Svensson, R. (2025). The International Youth Crime Drop: Evidence and Explanations. Max Planck Institute for the Study of Crime, Security and Law.
  • Sentencing Project (2024). Youth Justice by the Numbers.
  • World Health Organization (2023). Youth Violence Fact Sheet.

 



[1] Este artigo foi escrito com ajuda do ChatGPT.  O processo de escrita que desenvolvi funciona da seguinte maneira:  para cada tema crio um novo projeto e  alimento o LLM com dados e textos sobre o tema de interesse. Em seguido, faço vários questionamentos sobre o material, buscando lacunas, hipóteses, referencias teóricas, etc. Ao final do processo, que pode levar dias, peço para o Chat resumir os principais pontos da discussão, destacando questões que considero relevantes. Faço finalmente uma revisão do texto, retirando ou mudando parágrafos e expressões. O processo  de escrita com estas novas ferramentas mudou radicalmente: cabe ao “autor” alimentar o sistema com dados e fontes confiáveis, fazer as perguntas certas, orientar o caminho da conversa e ter bom senso para avaliar e editar partes do texto sugerido. O processo é parecido com o de um orientador acadêmico ( o co-autor) que ajuda seu orientado (LLM) na redação do artigo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O Dólar Digital do Crime: como o USDT virou a nova fronteira da lavagem de dinheiro

 Nos últimos anos, o Brasil assistiu ao nascimento de uma nova fronteira financeira: o mercado de criptomoedas deixou de ser um território de poucos especialistas para se transformar em uma engrenagem importante da economia digital. Segundo dados da Receita Federal do Brasil, que desde 2019 coleta informações detalhadas sobre operações com criptoativos por meio da Instrução Normativa n.º 1.888, o país registra milhões de transações mensais. Mas, por trás desse crescimento acelerado, há uma transformação silenciosa — e preocupante — no modo como o dinheiro circula fora do sistema bancário tradicional.

Os dados mais recentes revelam um cenário dividido entre moedas com papéis distintos. O BRZ, stablecoin lastreada em reais, é a mais usada em número de operações e serve como moeda doméstica, movimentando pequenas quantias entre investidores, traders e plataformas nacionais. Já o USDT, o chamado Tether, atrelado ao dólar, domina em valor total movimentado. Ele se tornou o “dólar digital” do mundo cripto, usado tanto por investidores legítimos quanto por redes criminosas para enviar valores para fora do país sem passar por bancos. O BUSD, emitido pela Binance, aparece com o maior valor médio por operação, indicando que é o preferido em transações de grande porte e perfil

 institucional.



Essa especialização das moedas digitais mostra que o mercado brasileiro amadureceu, mas também revela brechas. A Instrução Normativa da Receita obriga exchanges brasileiras a informar todas as operações realizadas em suas plataformas e impõe o mesmo dever a pessoas físicas e jurídicas que utilizem corretoras estrangeiras ou façam transações diretas entre si, sempre que o volume mensal ultrapassar trinta mil reais. Com base nessas declarações, é possível mapear o tamanho e o ritmo do mercado. No entanto, as próprias regras deixam espaços onde a luz do Estado não chega. Transações menores que o limite de trinta mil reais, operações em exchanges estrangeiras sem integração com autoridades brasileiras, negociações diretas entre usuários e movimentações em plataformas descentralizadas continuam a escapar do monitoramento.

O problema não está apenas nas falhas da norma, mas na natureza das novas tecnologias. As transações on-chain, feitas diretamente na blockchain, podem saltar entre redes, passar por serviços que misturam fundos, utilizar moedas com camadas de privacidade e nunca tocar uma corretora domiciliada no país. Quando isso acontece, desaparece o elo que permitiria o rastreamento automático. As autoridades só conseguem seguir o rastro quando os valores retornam a exchanges reguladas ou são convertidos em moeda nacional.

Foi nesse vácuo que o crime organizado encontrou um terreno fértil. Durante anos, o Bitcoin foi o ativo preferido de hackers, doleiros e esquemas de pirâmide. Mas à medida que as ferramentas de rastreamento se aprimoraram e as corretoras passaram a exigir identificação de clientes, o Bitcoin deixou de oferecer o anonimato desejado. O trono foi tomado pelo USDT, a stablecoin que vale um dólar e circula livremente em redes como Ethereum, BNB Chain e, sobretudo, Tron. Relatórios recentes da Chainalysis e da TRM Labs mostram que as stablecoins já representam mais de 60% do volume de transações ilícitas no mundo, e o USDT lidera com ampla vantagem.

A preferência tem explicação simples. O Tether oferece estabilidade cambial, liquidez global e custo de transação quase nulo. Ele é aceito em praticamente todas as exchanges e pode ser convertido em reais por meio de plataformas P2P ou mesas OTC em questão de minutos. Na rede Tron, as taxas são tão baixas que grandes quantias podem ser divididas em dezenas de transferências pequenas, dificultando a identificação de padrões suspeitos. O resultado é um sistema eficiente e barato para movimentar recursos entre países, inclusive para atividades ilegais.

No Brasil, as autoridades já identificaram o uso crescente do USDT em operações de câmbio paralelo, pirâmides financeiras e lavagem de dinheiro ligada ao tráfico e ao contrabando. O ativo não é ilegal, mas sua estrutura descentralizada permite que criminosos se aproveitem da falta de controle sobre o fluxo internacional de valores. O BRZ, por outro lado, tem um papel mais local e transparente: por ser lastreado em reais e supervisionado por empresas nacionais, ele funciona como uma ponte entre o sistema bancário e o mundo cripto. Ainda assim, também pode servir de etapa intermediária para mascarar a origem de recursos antes que sejam convertidos em stablecoins internacionais.

O BUSD, que opera sob regulamentação americana, aparece como o ativo das grandes transações. Ele é usado por empresas, fundos e arbitradores que buscam liquidez em dólar sem recorrer ao sistema financeiro tradicional. A concentração de valores altos em poucas operações faz dele um instrumento eficiente para a movimentação de grandes somas, inclusive aquelas que não deveriam atravessar fronteiras sem registro.

Essas três moedas — BRZ, USDT e BUSD — criaram um ecossistema complementar. O BRZ movimenta recursos dentro do país, o USDT exporta capital e o BUSD serve como via de liquidação internacional. Para quem opera dentro da lei, esse sistema é sinônimo de agilidade e integração global. Para quem atua à margem, é a combinação perfeita para lavar dinheiro, evadir divisas e ocultar patrimônio com rapidez e discrição.

Apesar de o Brasil estar à frente de muitos países no monitoramento de criptoativos, as brechas persistem. O limite de trinta mil reais ainda é alto para um mercado digital onde é possível fracionar valores em centenas de pequenas transferências. As operações com exchanges estrangeiras continuam difíceis de rastrear, e as mesas OTC, muitas vezes usadas por investidores legítimos, funcionam sem padronização de controles. Além disso, moedas com foco em privacidade e plataformas descentralizadas escapam completamente das obrigações de reporte.

Especialistas sugerem ajustes simples, mas urgentes: reduzir o limite de reporte, regular formalmente as OTCs, exigir padrões de identificação mais rigorosos e fortalecer a cooperação internacional. Outra medida essencial é integrar os dados das blockchains com informações bancárias e de pagamentos instantâneos, cruzando as duas pontas do sistema financeiro. Só assim será possível acompanhar o dinheiro que entra e sai do universo cripto.

O avanço das criptomoedas é, sem dúvida, uma das maiores inovações financeiras deste século. Elas democratizaram investimentos, abriram caminho para a tokenização de ativos e colocaram o Brasil entre os maiores mercados do mundo. Mas essa mesma tecnologia, quando somada a brechas legais e à lentidão regulatória, também oferece uma nova ferramenta para o crime organizado. O desafio das autoridades é equilibrar vigilância e inovação, garantir transparência sem matar o potencial econômico do setor e impedir que o dólar digital se torne o próximo veículo da economia subterrânea.

Como observou um relatório recente da revista The Economist, o Tether se transformou em “a moeda dos lavadores de dinheiro modernos”. No Brasil, os números da Receita Federal e a ascensão das stablecoins confirmam a tendência: o crime está se sofisticando e aprendendo a falar a língua do blockchain. E, se o país não avançar na regulação e na cooperação internacional, o rastro desse dinheiro pode continuar correndo solto — visível na tela, mas invisível para a lei.

Fontes: Receita Federal do Brasil (IN RFB n.º 1.888/2019), Chainalysis Crypto Crime Report 2024, TRM Labs (Financial Crime in the Blockchain Era, 2024), The Economist (1843 Magazine, 2025), Investopedia (2024), Interpol (Digital Currencies and Organized Crime Briefing, 2023), Cointelegraph (2024).

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