As pessoas obedecem às leis pelos
mais variados motivos: 1) por medo da punição terrena 2) medo de castigo divino,
3) por dever moral, posto que justas e legítimas 4) por vergonha da opinião
alheia, 5) por concluir racionalmente que é melhor respeitá-las, 6) por costume
e força da tradição - para lembrar apenas algumas motivações principais. Quando
confrontado com a opção de respeitar ou infringir a lei, é provável que uma
mistura de motivos entre em ação, cada qual apelando à um nível cognitivo e/ou
intuitivo do indivíduo.
A obediência assim é tanto maior
quanto maiores forem, para o indivíduo: o temor de ser identificado e capturado;
a crença na religião e em que nossas ações são vigiadas e recompensadas no
mundo vindouro; a crença humanista interior de que as leis devem ser
respeitadas em nome do bem comum ou que não se deve fazer aos outros aquilo que
não se quer para si mesmo; a importância dada à opinião dos demais, em especial
dos mais próximos; a estimativa racional de que em longo prazo compensa aderir
voluntariamente às normas quando os demais também o fazem; a introjeção dos
valores tradicionais e culturais da comunidade.
Extrapolando do individual para o
nível coletivo, é possível especular que o grau de obediência às leis – ou da
violência e criminalidade - em uma determinada comunidade dependam em parte dos
mesmos fatores que atuam sobre os indivíduos. Em outras palavras, a
desobediência e a criminalidade devem ser maiores onde: a probabilidade de
detecção e punição é baixa; a religiosidade é baixa; o individualismo e
insolidarismo são elevados; não é socialmente vergonhoso infringir as normas; o
cálculo mental sugere que não compensa aderir às normas porque inexistem
incentivos e os demais não o fazem, de modo que a decisão racional é violar a norma;
os valores culturais não reforçam a noção de que as leis e normas sociais devem
ser respeitadas.
Estes fatores “inibitórios”,
explicam tanto o funcionamento mental de um criminoso profissional tentado a
cometer um crime grave quanto o do “cidadão de bem”, quando deparado com as
pequenas contravenções do cotidiano, como dirigir alcoolizado, comprar DVDs e
softwares piratas, sonegar o imposto de renda, furar a fila, subornar o guarda
para não ser multado e outros delitos nossos de cada dia.
Com efeito, diversas pesquisas
criminológicas sugerem que estes mecanismos afetam os níveis de criminalidade
local. Uma área vigiada inibe a criminalidade enquanto uma abandonada a estimula.
Países fortemente religiosos, especialmente islâmicos, tem taxas criminais mais
baixas do que os demais. Comunidades com mais “capital social” são menos
afetadas pelo crime e desordem. Uma polícia que respeita as leis reforça o
sentimento de que as leis são justas e legítimas e uma que viola as leis
reforça a desobediência. Envergonhar
publicamente o infrator – por exemplo, publicando o nome do mau pagador numa
lista de devedores – estimula o cumprimento das normas. As mesmas pessoas que não jogam lixo no Metrô,
onde todos parecem adotar o mesmo padrão, jogam na estação de Trem, onde todo
mundo parece fazer o mesmo. Bairros de ocupação mais antiga tem menos crimes do
que bairros de ocupação mais recente. É fácil encontrar na literatura sobre
fatores de risco e fatores de proteção centenas de exemplos que corroboram
estas conexões entre nível de criminalidade e os fatores inibidores listados.
O problema criminal brasileiro
pode ser explicado em grande parte não só pela insuficiência de recursos,
expansão do tráfico de drogas, abundância de armas, ineficácia do sistema de
justiça criminal ou pelas carências socioeconômicas estruturais do pais – que
certamente são relevantes – mas também pela falência dos fatores inibitórios
aqui arrolados.
No Brasil a probabilidade de ser
pego e punido pelo sistema de justiça criminal é bastante baixa para a maioria
dos crimes. Mesmo quando pego e punido, são grandes as chances de que a pena
não venha a ser cumprida integralmente. Na esfera religiosa, observamos uma
diminuição na porcentagem daqueles que se declaram fortemente religiosos e um
aumento dos sem religião. Ninguém tem medo da punição divina e mesmo os que
cometem as maiores atrocidades estão certos de que serão perdoados, caso se
arrependam depois com sinceridade e não atrasem o dízimo. De toda forma,
vivemos numa sociedade onde a influência da religião – para o bem ou para o mal
– é cada vez menor. Na dúvida sobre a existência do além e suas recompensas e
castigos, a religião é cada vez menos um freio para a reforçar a obediência dos
indivíduos às normas.
O conceito de bem comum e de que
é moralmente errado, numa perspectiva moral humanista e não religiosa, ofender
a integridade física e a propriedade dos demais, tampouco parece disseminado.
Vivemos antes a guerra de todos contra todos do que o contrato social. É o cada
um por si e D´us contra todos. Não há sentimento de “comunidade” nem “interesse
geral”. Nem noção de Pátria (exceto de chuteiras). Nem de Nação ou de “gerações
futuras”. Somos um “multitutus” e não um “populus”. Os padrões morais são flexíveis
e muitos acham moralmente correto superfaturar, subornar, torturar, sonegar, fraudar,
e mesmo matar, se a pessoa “mereceu” o castigo. Como disse certa vez Marx
(Groucho, não Karl) numa comédia, “esta é a minha lista de princípios, mas se
não estiver de acordo podemos modifica-la”.
Desrespeitar a lei e as normas
vigentes não é motivo de vergonha, mas ao contrário. O seguidor das regras é o
“caxias”, o “careta”, o bundão. O admirado é o malandro e a “malandra”. O
esperto, que sempre se dá bem e leva vantagem em tudo. É o bicheiro e o traficante
e não o policial. Temos o “rouba, mas faz” e o “rouba, mas é de esquerda”. Nas
comunidades, ter passado pela prisão e ser membro de facção é prestígio. As pessoas aqui se suicidam por amor, por
problemas financeiros, por problemas mentais. Mas no Brasil ninguém se mata por
vergonha de ter roubado. Vergonha é ser pobre e para superar a pobreza qualquer
expediente vale. Vale ser funcionário fantasma. Vale receber irregularmente
bolsas, auxílios e pensões. Vale reivindicar auxílios moradia, livros, ternos,
etc. por quem ganha salários acima de dois dígitos. Vale enganar o consumidor. Neste
contexto, porque o criminoso comum deveria se envergonhar dos seus crimes?
Independente do grau de moralidade
coletiva, a estrutura de incentivos, como denominam os economistas, tampouco
contribui para um resultado coletivo satisfatório. Num cruzamento de ruas sem
regras, os carros colidem tanto se os motoristas são egoístas quanto se são
altruístas. Mesmo que ache moralmente
errado, a “escolha racional” é sonegar o imposto, se todos que podem o fazem e
o Estado oferece muito pouco em troca. Por que votar, se o peso do meu voto é
um 1/N e a classe política não me representa? Por que procurar um emprego onde
tenho que trabalhar pesado diariamente para receber salário mínimo se o crime
remunera melhor e a probabilidade de punição é baixa?
Sim, não há dúvida: para resolver
o problema imenso da segurança no Brasil é preciso reformar a polícia, repensar
o pacto federativo, aumentar os recursos para a área, inovar na gestão e na
tecnologia, etc. etc. Mas nem tudo depende do poder público e do sistema de
justiça criminal.
Devemos atentar também para estes
fatores inibitórios individuais. A probabilidade de punição terrena pode ser
aumentada pela melhoria da investigação policial, mas também se a comunidade
denunciar os criminosos e colaborar com as investigações. Ou vigiar e fiscalizar
o que acontece na vizinhança. As igrejas e templos talvez possam ser menos condescendentes
e alertar que o pagamento do dízimo e orações não são garantia suficiente da
absolvição eterna. Tanto quanto me lembro das aulas de barmitzvá, “Não Matarás”
era um mandamento e não uma cláusula de adesão condicional para a qual existiria
um jeitinho no final.
Mesmo para os que não acreditam
numa religião, é possível reforçar uma ética humanista de que existem limites
morais que devem ser respeitados e que os direitos de cada um esbarram nos
direitos dos demais. São crenças que deveriam ser reforçadas pelas famílias,
escolas, meios de comunicação, partidos e todas as instituições com alguma
responsabilidade na formação cidadã. Não dá para exigir uma polícia cidadã ou
comunitária se não tivermos antes cidadãos ou comunidade.
As instituições como família,
Igreja ou escolas, foram criadas, entre outros motivos, para impor limites às
nossas vontades individuais: para nos lembrar que existem as gerações futuras,
os interesses e direitos coletivos, os “outros”, os direitos-deveres cívicos
como votar, atendar ao serviço militar e pagar impostos. Aparentemente todas vem
falhando na sua missão de reforçar nos indivíduos valores como honestidade,
trabalho, responsabilidade, postergação de desejos imediatos, solidariedade e
outros valores necessários para o convívio em sociedade. Não se trata de um
lamurio conservador sobre a decadência dos valores, mas de lembrar que em algum
momento, em algum nível, estas instituições devem repassar adiante estes
conceitos. Quanto mais estas instituições cumprirem este papel, menor a
necessidade do sistema de justiça criminal para relembrá-las.
Uma mudança na estrutura de
incentivos estimula os comportamentos desejados. Se o Estado quer que o
indivíduo pague impostos, é preciso cobrar de todos com justiça e equidade e oferecer
serviços de qualidade em contrapartida. Se o objetivo é reforçar a participação
política, é preciso garantir que as regras eleitorais ofereçam candidaturas que
representem os anseios do eleitorado e que os eleitos consigam colocar em
prática a agenda prometida. Impostos indiretos são uma estratégia de Estados incompetentes
que oferecem pouco retorno ao cidadão e voto obrigatório é desnecessário em
países onde a população sente que seu voto faz alguma diferença. Do mesmo modo,
se o objetivo é diminuir o crime, incentivos também são necessários para
contrabalançar a tentadora alternativa do mundo do crime: o crime não compensa
- mas somente quando existem empregos suficientes e que pagam o necessário para
que o indivíduo leve uma vida minimamente digna e honesta, numa sociedade sem
abismos sociais como os brasileiros. Com tantos incentivos perversos, as opções
pela sonegação, absenteísmo ou pela ilegalidade podem ser escolhas erradas, mas
não de todo irracionais.
Finalmente, para reduzir a
criminalidade, é preciso que voltemos a ter vergonha na cara neste país! Ministros,
parlamentares, presidentes e ex-presidentes sequer ficam ruborizados ao contarem
mentiras deslavadas publicamente, indício fisiológico de alguma noção de ética
no indivíduo. Mesmo entre os ladrões existe uma “ética”, ainda que peculiar: o
reconhecimento de que “a casa caiu” quando pego, de que “sangue se lava com
sangue”, que estupradores e delatores são desprezíveis, que a palavra dada tem
valor de contrato, etc. Há algo de muito errado num país quando ladrões e
assassinos demostram ter mais ética e vergonha na cara do que algumas
lideranças políticas. Pode-se tentar qualquer reforma do art. 144 da
Constituição, que trata da segurança pública, mas todas estarão fadadas ao insucesso
se o parágrafo primeiro não instituir, antes de qualquer coisa, que “É preciso
tomar vergonha na cara. Revogam-se todas as disposições em contrário”.
- Tyler, Tom. R. Why People Obaey
the Law. Princeton University Press, 2006