Como
saber se uma pessoa é quem ela diz que é? Esta é uma dificuldade antiga
enfrentada pelos policiais em todo lugar e umas das primeiras questões que as
polícias procuraram responder usando métodos científicos. Quase todos os
grandes departamentos de polícia do mundo tem o seu “instituto de
identificação”: alguns apenas para emitir carteiras de identidade e outros
envolvidos de fato na investigação de crimes.
As
primeiras iniciativas surgiram na Paris do século 19 com Bertilhon, que
colocava em fichas as medidas antropométricas dos criminosos, num sistema que
ficou conhecido como bertilhonagem em homenagem ao seu criador, mencionado nas
estórias de Sherlock Holmes. Media-se o tamanho e forma da orelha, nariz, da
testa, separação entre os olhos, cor e tipo de cabelo e uma série de outras
medidas que em conjunto, comprovavam com grande probabilidade a identidade de
uma pessoa, mesmo que ela tentasse se disfarçar e se apresentar com outros
nomes. O sistema de consulta era manual, exigia alguma habilidade para tomar as
medidas do indivíduo e ainda que pequena, existia uma probabilidade não
desprezível de erro. Além disso, como muitas características eram registradas
simultaneamente, não havia um modo único de organizar as fichas e recuperar as
informações posteriormente. O indivíduo precisava ser preso e medido
detalhadamente mais uma vez, para que a comparação fosse feita. (Não deixa de
ser curioso observar que os modernos sistemas de reconhecimento facial sejam
uma versão aprimorada da bertilhonagem).
Anos
depois a bertilhonagem foi substituída pela identificação pelas digitais,
sistema logo adotado pioneiramente na vizinha Argentina e que tinha uma grande
vantagem sobre a anterior: além do grau de certeza, bastava coletar em campo
amostras das digitais dos suspeitos para estabelecer a identidade, mesmo sem a
presença física do criminoso para fazer a comparação. Assim era possível não
apenas identificar com segurança uma pessoa como também vinculá-la à cena do
crime. O método é utilizado até hoje pelas polícias, que apenas trocaram
as fichas em papel com as impressões em tinta pelas fichas digitalizadas.
Basta as vezes um pedaço diminuto da impressão digital. Em alguns países, em
questão de minutos é possível parar um suspeito na rua, coletar suas impressões
através de um periférico portátil, enviá-las para uma unidade central que tem a
base dos procurados, checar a identidade do abordado e retornar a informação ao
policial em campo. A identidade é estabelecida com grande precisão (nunca é
100%), mesmo que o suspeito tenha dúzias de carteiras de identidade no bolso.
Os
métodos de identificação evoluíram e hoje a identificação é feita de diversas
maneiras: voz, DNA, biometria, palmas das mãos, forma de caminhar e em alguns
automóveis sofisticados até pelo jeito que o motorista senta no banco do
veículo. Algoritmos matemáticos conseguem gerar um número identificador único
para cada indivíduo, garantindo cada vez mais precisão nos métodos de
identificação.
Os
métodos avançaram também na medida em que cresceram as fraudes financeiras. Os
sistemas estão mais acessíveis e disseminados e hoje qualquer portaria de
edifício ou caixa eletrônico dispõe de identificação biométrica para confirmar
a identidade do usuário. Os elementos necessários continuam basicamente os
mesmos: um “cadastro” prévio que permita a comparação, uma fonte (impressão
digital, fotografia, saliva, íris, etc.) e um mecanismo de coleta. Isto é
válido para o que quer que se queira identificar: pessoas, projéteis, armas,
placas, etc.
Enquanto
as tecnologias avançam no setor privado, no setor de segurança pública
brasileiro os avanços no setor de identificação são lentos e erráticos. Nosso
“Infoseg” conta com cadastros de procurados nos Estados (sem fotos), veículos,
condutores e armas, mas não é possível coletar amostras em campo e enviar para
checagem em tempo real. Basta que o suspeito tenha uma carteira de identidade
falsificada em nome de alguém não procurado para escapar de uma abordagem
policial. Cada Estado produz suas próprias carteiras de identidade e não existe
um RG nacional, de modo que um indivíduo mal intencionado pode ter 27 números
de identidade, sem que seja possível verificar se possui uma anterior.
O
projeto da Carteira nacional de identidade nunca saiu do papel. A Polícia
Federal tenta há anos construir uma base de impressões digitalizadas (AFIS) mas
até hoje o projeto é capenga: aguarda-se o cadastramento digital dos eleitores
pelo TSE, que largou na frente no processo de digitalização das impressões.
Existem pequenos bancos de DNA ou balísticos (IBIS) em alguns Estados, mas que
não são integrados numa base nacional. Mesmo dentro de um Estado é frequente
que uma polícia não tenha acesso aos bancos da outra. Não existe sequer um
banco nacional com fotografias dos criminosos, nos moldes do Fotocrim paulista.
O leitor óptico de placas (LAP) funciona ainda como protótipo, em algumas
rodovias federais.
Isto
explica em parte por que temos um dos menores índices de esclarecimento
criminal do planeta. Por que um carro com boletim de roubo circula livremente
pelas estradas, pagando devidamente todos os pedágios. Por que não é possível
ligar um projétil encontrado no local de um crime a uma arma ou proprietário.
Por que não é possível incriminar um estuprador serial pelas dezenas de casos
cometidos, apesar de ter espalhado seu sêmen por ai (eles não temem a AIDS,
raramente usam preservativos). Por que um criminoso procurado é parado inúmeras
vezes pela polícia e sai caminhando tranquilamente depois de apresentar um RG
que até um adolescente consegue forjar para entrar no cinema (sim, sou do tempo
em que um inspetor de menores verificava a entrada dos filmes impróprios,
ausência que também explica em parte o aumento da criminalidade no país).
Não
se trata apenas de mais impunidade. Quanto menos baseada na coleta de
evidências, maior a possibilidade de erros judiciais e estamos cheios de casos
anedóticos de presos erroneamente por falhas de identificação. Os abusos
policiais para a obtenção de confissões estão também inversamente relacionados
com a capacidade de investigação das polícias.
Imagine
um cenário em que um “drone” com uma câmera de alta resolução faz uma ronda
pela cidade (baseada nas coordenadas dos hot spots criminais). Do alto, ele
registra por alguns segundos o rosto de cada transeunte, sem que ele perceba.
Envia a imagem remotamente para um banco central de procurados e, confirmada a
identidade de algum suspeito, envia um alerta para a viatura mais próxima.
Ainda é um cenário de Minority Repport, mas a tecnologia necessária para isto
já existe.
Fico
aqui imaginando em que ponto estará o Brasil quando esta tecnologia já estiver
sendo usada em outros países: se segurança pública não for tratada como
prioridade, provavelmente medindo narizes e torturando suspeitos para que
confessem crimes e que são de fato quem afirmam ser. Como na piada do
campeonato internacional de eficiência entre as polícias em que um coelho é
solto e a disputa consiste em ver que o pega antes. Os vencedores são os
policiais brasileiros, que torturam um porquinho até que ele grite: “eu
sou o coelho, eu sou o coelho”. Cômico, se não fosse trágico...