Tenho a satisfação de ser um dos
sócios fundadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública criado em 2006 e em
especial um dos formatadores do que seria o Anuário de Segurança, que este ano
está especialmente informativo, com mais de 300 páginas e dezenas de tópicos
relevantes.
Todo ano gosto de fazer alguns
comentários sobre os dados, destacando algumas particularidades e dando minhas
interpretações sobre alguns fenômenos retratados. Há muita informação e os
meios de comunicação acabam destacando apenas algumas delas, deixando de fora
muitos aspectos não percebidos.
Já escrevi nestes meses sobre os
efeitos da pandemia sobre os crimes, em especial homicídios e letalidade
policial, de modo que vou remeter os interessados aos artigos anteriores e
seguir adiante com outros pontos.
Nesta edição gostaria de chamar a
atenção para o seguinte:
1 - Racismo no sistema de justiça
criminal. Sim, existe racismo no Brasil e nas polícias, apesar do grande
contingente de policiais negros. (alias, seria interessante incluir no gráfico
os 65% de polícias negros mortos). Mas é simplista comparar o perfil dos mortos
com o perfil demográfico da população. Como muitas pesquisas não enviesadas já
revelaram – por uma série de circunstâncias sociais, econômicas, históricas, geográficas,
etc. – os negros estão proporcionalmente mais envolvidos nos crimes violentos
de rua. Nas pesquisas de vitimização, vítimas negras apontam
desproporcionalmente autores negros e não há que se falar em racismo. Assim, é
preciso achar outro “denominador” para fazer a devida comparação. Este outro
denominador certamente mostrará que ainda existe uma viés contra negros nas
estatísticas de mortes. Mas este viés é menor do que o mostrado. No sistema
prisional, os negros representam atualmente 66,7% da população, mas especula-se
que esta proporção já reflita o racismo existente no sistema de justiça criminal,
de modo que tampouco seria um denominador adequado.
O racismo existe nas polícias,
mas existe principalmente na sociedade, que acirra os fatores de risco de
envolvimento com o crime dos jovens negros do sexo masculino. Atribuir toda a
culpa ao racismo das polícias é camuflar estas formas anteriores e mais
dissimuladas de racismo.
É interessante notar que as
distorções com relação a gênero e idade são ainda maiores que as distorções
raciais, quando analisamos o perfil das mortes. Homens são 50% da população,
mas 99,2% das vítimas de MDIP (confrontos com a polícia). Mas ninguém acusa o
sistema de ser “sexista” ou “jovista”, pois neste caso há um entendimento de
que homens e jovens se envolvem mais com o crime, pois simplesmente existem
mais fatores de risco: cultura, testosterona, empregabilidade, socialização,
etc. No caso das distorções de raça, quase toda a distorção é atribuída ao fator
racismo.
2 - Feminicídios (Tabela T37). O
anuário aponta o crescimento de 7,1% nos feminicídios em 2019 com relação ao
ano anterior. Desde que a categoria foi criada observamos esta tendência de
crescimento, como ilustra o gráfico.
Na mesma linha, é o que está
ocorrendo com a importunação sexual, alterada em 2018 (Lei 13.718 de 24 de
setembro de 2018) e que apresenta um crescimento de 319% de 2018 para 2019,
subindo de 1341 para 8068 casos em um ano! Aqui fica claro o efeito da “adaptação
classificatória”, já visto no passado, por exemplo, com relação aos estupros. Crimes
são fenômenos bastante estáveis: desconfie dos processos, quando diante de
alterações bruscas e intensas.
3 – Estupro de vulneráveis. Um
dado que sempre me chamou a atenção foi a idade extremamente jovem das vítimas
de estupro no Brasil. A classe modal para as meninas é de 13 anos (12% das
vítimas) e para os meninos 4 anos de idade (8%) das vítimas! O problema do
perfil da vítima de estupro é a notificação geral muito baixa, variando entre
7,5% (Pesquisa Nacional de Vitimização / MJ, 2013) e 10% (IPEA, 2014) dos casos,
segundo as últimas pesquisas brasileiras. Mas é provável que a taxa de
subnotificação seja diferente, nos diferentes grupos etários.
No caso dos vulneráveis, é possível
que as famílias constatem os abusos, ou algum professor ou profissional de
saúde. No caso, a notificação é feita por um terceiro e não pela própria
vítima, incapaz de fazê-lo. A notificação de violências interpessoal e autoprovocada
foi criada em 2006, e em 2011 passou a ser compulsória em todos os serviços de
saúde públicos e privados. Desde então, o número total de notificações anuais
de estupro de pessoas do sexo feminino vem aumentando, passando de 10.693 casos
em 2011 para 17.871 em 2015. Novamente uma mudança brusca e intensa. É bastante
provável que a notificação obrigatória tenha aumentado particularmente o
registro de estupro de vulneráveis.
Digamos que, nestes casos, a
notificação chegue supostamente a 40%. Com o envelhecimento da vítima, o
estupro deixa de ser constato por terceiros e a denuncia passa a ser uma ação
própria da vítima. Mas ai entram em jogo os fatores inibidores como medo,
vergonha, dependência financeira, etc. A taxa de notificação deve cair
linearmente com o aumento da idade, ou pelo menos até certa faixa etária,
quando ficaria estabilizada. De modo que a notificação de 7,5% a 10% seria
uma média, maior entre os jovens e menor entre os adultos. O problema é que as pesquisas de vitimização só entrevistam pessoas a partir de 16 anos de idade e não há perguntas sobre
estupros envolvendo membros da família, de modo que é difícil testar este
hipótese.
Se ela for correta, é preciso
tomar bastante cuidado com o dado de perfil das vítimas e dos casos (idade,
local, relacionamento com o autor, instrumentos utilizados, dias e horários,
etc.), pois os registros de estupro provavelmente sobre representam os vulneráveis e
sub-representam os adultos.
4 – O anuário traz este ano um rico acervo
de dados sobre a participação dos policiais e militares nas eleições. É preciso
ficar atento aos gráficos e tabelas, pois os anos de 2010, 2014 e 2018 tratam
de eleições estaduais e federais enquanto os anos de 2012, 2016 e 2020 dizem
respeito à eleições municipais. E o que é válido para um tipo de eleição não
necessariamente é válido para outra. Com relação ao fenômeno do crescimento das
candidaturas policiais, note-se, por exemplo, que nas eleições de 2012 tivemos
7486 candidatos, (4249 PM), menos, portanto do que nestas próximas eleições,
onde temos 7258 candidatos (3910 PM). De modo que não se trata apenas de uma
onda “conservadora” recente, quando examinamos o histórico de participações de policiais e militares na política.
Os policiais e militares, segundo
calcula o Anuário, são nada menos do que 3,8% do eleitorado, incluindo os
aposentados. Novamente aqui é interessante separar o tipo de eleições: nos anos
de eleições estaduais estão acima da média (5,1% dos candidatos em 2018), mas
nos anos de eleições municipais estão abaixo da média (1,3% em 2020). O motivo
é óbvio: as policias são forças estaduais e há muito mais interesse dos
policiais em participar das eleições estaduais e federais do que nas
municipais. Nas Assembleias Legislativas estaduais e federal podem criar leis que afetem
a segurança e a carreira dos policiais, seus eleitores.
5 – armas de fogo. Sempre é
importante reforçar a relação entre disponibilidade de armas e homicídios, como
acabo de fazer em artigo recente, onde analiso um painel estadual de dados
entre 2015 e 2017. Note-se na tabela abaixo que a apreensão de armas pelas
polícias – uma variável substituta para a quantidade de armas em circulação –
aumenta 79% no Norte desde o Estatuto e 8,2% no NE, enquanto cai nas demais
Regiões. Não por acaso, as mesmas tendências regionais observadas nos
homicídios...
Taxas
de Armas de fogo apreendidas, por Região, por 100 mil habitantes |
||||||||
Brasil
e Unidades da Federação – 2013-2019 |
||||||||
Brasil
e Regiões |
Armas de fogo apreendidas - Taxas (1) |
|||||||
2013 |
2014 |
2015 |
2016 |
2017 |
2018 |
2019 |
Var. (%) |
|
Brasil |
55,5 |
53,7 |
57,4 |
58,5 |
56,8 |
52,3 |
52,1 |
-6,1 |
Norte |
34,7 |
23,6 |
24,8 |
37,2 |
33,6 |
42,2 |
62,2 |
79,3 |
Nordeste |
43,4 |
43,0 |
49,8 |
46,3 |
49,7 |
49,2 |
46,9 |
8,2 |
Centro-Oeste |
56,6 |
60,9 |
78,2 |
99,0 |
79,3 |
36,9 |
32,6 |
-42,4 |
Sudeste |
64,5 |
61,9 |
62,1 |
62,2 |
58,6 |
54,9 |
55,3 |
-14,3 |
Sul |
64,4 |
64,5 |
66,5 |
62,3 |
67,5 |
64,8 |
59,9 |
-7,0 |
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; MP-AC;
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. |
||||||||
(1) Por 100 mil habitantes. |
Desde 2019 a compra de armas
pelos CACs aumentaram 120%, até agosto de 2020. Novamente, não é coincidência o
crescimento dos homicídios nos pais a partir do segundo semestre de 2019, após dois
anos de queda.
Existem dezenas de outros dados e
temas de interesse no Anuário e não é possível, infelizmente, abordá-los aqui.
O Anuário é um exemplo de como as evidências podem ser úteis para
compreendermos os fenômenos criminais e a partir desta compreensão traçar
políticas públicas mais eficientes e justas. Sem dados, como alguém já
observou, “você é apenas mais um idiota com uma opinião.” Há quem continue
sendo idiota, mesmo com dados em mãos, pois é preciso também saber analisa-los,
o que não é tarefa fácil. Idiotas com alguns dados nas mãos são ainda mais
perigosos, como vimos nas posições de alguns governos com relação ao COVID
-19.
De todo modo, o Anuário, já em sua 14º edição, ressalta a importância de coletar e publicar com transparência as informações, como faz o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O governo federal, diga-se de passagem, também tem feito um esforço no sentido de disponibilizar os dados do SINESP, a pesquisa Perfil das Polícias (que teve início em 2002 e não em 2004, assim como o então “SINEP”, ao contrário do que reza a lenda), do Infopen e outras bases nacionais.
Com acesso aos dados, podemos formular e testar hipóteses, estejam elas certas ou erradas. Sem dados, ficamos no escuro e não há debate possível.