“A montanha pariu um rato”
Horácio, poeta romano
O Congresso abriga 594 parlamentares
e cerca de 21 mil servidores. Mesmo assim, a capacidade de pensar o problema da
segurança pública e elaborar saídas para a crise tem se relevado limitada. A pauta
está concentrada em alguns poucos temas de baixa relevância e boa parte da
atuação congressual está voltada à defesa dos interesses das categorias policiais.
Vejamos os dados.
Segundo estudo de Carneiro
cobrindo o período 1999 a 2006, tiveram origem no Executivo 82,4% das
iniciativas de legislação na área criminal. A agenda do Executivo era não só
maior quantitativamente como também mais variada do que a do Legislativo,
centrada preponderantemente na mudança da Lei Penal. (Carneiro, 2010). Em 2015,
44% das normas relativas à segurança aprovadas pelo Congresso tiveram origem no
Poder Executivo (Angeli, 2016). Uma hipótese é que este baixo desempenho quantitativo
e qualitativo do Legislativo na segurança tenha alguma relação com o perfil dos
parlamentares eleitos e que se interessam pelo tema.
Entre 1999 e 2006, Carneiro
identificou porcentagens entre 8 e 11% de deputados oriundos da área de
segurança. As classificações diferem entre uma pesquisa e outra, de modo que
não é possível afirmar se a bancada da segurança cresceu ou diminuiu nas
últimas legislaturas. De todo modo, o conceito de “bancada da segurança” está
mais ligado ao tipo de pauta e atuação parlamentar do que à formação
profissional prévia do eleito. Ao todo, a atual legislatura conta com 19
deputados oriundos das forças de segurança e vários deles estão na lista dos mais
votados em seus estados de origem. Radialistas e apresentadores de TV engrossam
esta bancada dedicada ao tema. (Angeli, 2015 e 2016). Este grupo forma a
conhecida “bancada da bala”, como ficou popularmente conhecida na imprensa, por
conta do recebimento de recursos da indústria de armas nas campanhas e defesa
dos interesses do setor no Congresso.
O debate sobre segurança é bastante
concentrado neste reduzido, porém ativo grupo. Cerca de 20 deputados foram responsáveis
pela apresentação de 42% das propostas em 2015 e 2016. No Senado, 11 senadores
foram responsáveis por 69% das propostas em 2015 e 6 senadores responsáveis por
57% das propostas em 2016. (Angeli, 2016 e 2017)
Análises dos projetos
apresentados sugerem uma produção legislativa marcada pelo corporativismo, defesa
de interesses privados e respostas espasmódicas à crise específicas, quase
sempre na linha da criminalização de condutas e aumento de penas. As análises
não são comparáveis, pois cada autor utilizou metodologias diferentes para listar
os projetos e classifica-los por temas. Apesar das diferenças, algumas
similitudes emergem.
Na pesquisa realizada em 2010, cobrindo
o período entre a 50º e 52º legislaturas, Carneiro identificou 153 projetos apresentados
na área de segurança e política criminal (Carneiro, 2010). Analisando os temas
principais, 24% tratava de orçamento para segurança, 15% de alterações nos
códigos de processo penal, 15% propunham novas modalidades de crimes, 13,7% da
criação de cargos e salários, 11,1% do aumento de penas privativas de
liberdade.
Em 2013, analisei 775 projetos que
continham a expressão “segurança pública”, levantamento que mostrou a
preocupação desproporcional com a investigação de casos destacados pela mídia
(17,9%), recursos para o setor (5,3%), segurança das instituições bancárias
(4,9%) e medidas de endurecimento penal (Kahn, 2013).
Ricardo (Ricardo, Baird e
Pollachi, 2014) analisou 35 proposições aprovadas na 54º legislatura (2011 a
2014), e classificou 43% delas como “instituições policiais”, item que
compreende a “criação de cargos, concessão de benefícios, e disciplinamento de
carreiras e competências”. Dentro desta categoria abrangente, por sua vez, 75% seriam
de natureza claramente corporativa. A categoria “política criminal” representa
20% das proposições e engloba a “tipificação de crimes, aumento de penas e
alterações no processo penal”. (Ricardo e outros, 2014) Quanto à origem, 66% das
proposições aprovadas foram de iniciativa do Executivo.
De acordo com as pesquisas do Sou
da Paz, na Câmara dos Deputados em 2015 foram apresentados 695 Pls sobre
segurança. Cerca de 20% das proposições versavam sobre aumento de pena e 20%
sobre criminalização de novas condutas. Em 2016 estes temas voltam a encabeçar
a lista. Temas ligados à defesa das polícias apareceram em quarto lugar em 2015,
com 9% das propostas. Em 2016, a porcentagem de propostas tratando de temas de
interesse policial cresce para 15%, subindo para a terceira posição.
São geralmente propostas de
benefícios, programas assistenciais aos policiais e suas famílias, regulamentação
de adicionais ou gratificações, anistia a policiais grevistas, seguros, promoções,
etc. Por outro lado, apenas 3% dos projetos poderiam ser classificados como “programas
de segurança” propriamente ditos em 2015 e 4,5% em 2016.
Nas PECs da Câmara dos Deputados,
a defesa dos interesses policiais corporativos representou 36% das matérias
tratadas em 2015 e 33,3% em 2016. No Senado, metade das PECs de 2015 versava
sobre temas de interesse policial. Os temas corporativos ocuparam também 1/3
das discussões na Comissão de Segurança Pública e Justiça Criminal em 2016. (Angeli,
2015 e 2016)
Os estudos citados parecem
coincidir na identificação da tendência do Congresso a se concentrar, pelos
menos desde os anos 90, nas mudanças legislativas pontuais, relacionadas
principalmente ao aumento de penas, tipificação de novos crimes, aumento de
recursos e matérias de interesse profissional das categorias policiais. O
Executivo, em razão da necessidade concreta de gerir a máquina federal, pauta a
maioria das iniciativas aprovadas. Mudanças mais profundas no sistema de
justiça criminal são evitadas tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo e o medo
das corporações de perderem influência e recursos explica em parte este
imobilismo.
Seria injusto afirmar que nada de
relevante foi produzido no Legislativo nestes anos. Mas em linhas gerais, a
produção deixa a desejar, comparada ao tamanho do problema criminal brasileiro
e aos custos do Congresso para os cofres públicos Poderíamos repetir o poeta
romano Horácio quando diz “Parturient montes, nascetur mus”, ou “a montanha
pariu um rato”, numa alusão a grandes expectativas e resultados frustrantes.
Nosso dilema é o seguinte: quanto
mais piora a segurança pública e a sensação de insegurança no país, maiores as
chances de eleição dos candidatos vinculados as instituições de segurança ou
comunicadores de massa que pregam a “linha dura” com os criminosos. E quando
maior a bancada com este perfil, menos avançam as propostas estruturantes para
a segurança, piorando a situação. No caso brasileiro, a montanha pariu
Bolsonaro.
É legítimo defender as polícias e
alguém deve fazê-lo. Mas defender a polícia significa às vezes ousar criticá-la
e propor mudanças profundas no sistema de justiça criminal. E segurança pública
envolve muito mais do que polícias.
Bibliografia
·
Angeli, Fellipe. O papel do legislativo na
segurança pública. Análise da atuação do Congresso Nacional em 2015. Instituto
Sou da Paz, São Paulo, 2016.
·
Angeli, Fellipe. O papel do legislativo na
segurança pública. Análise da atuação do Congresso Nacional em 2016. Instituto
Sou da Paz, São Paulo, 2017.
·
Kahn, Tulio. Uma radiografia das atividades do
Congresso com relação à segurança pública. Espaço Democrático, 2013.
·
Piquet Carneiro, Leandro e outros. O Poder
Ausente. O Congresso Nacional e a Segurança Pública no Brasil. Núcleo de
Pesquisa em Políticas Públicas, USP, 2010.
·
Ricardo, Carolina; Baird, Marcello Fragano e
Pollachi, Natália. Congresso Nacional e segurança pública: a produção
legislativa na 54ª legislatura (2011-2014). Anuário Brasileiro de Segurança
Pública 2014, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo, 2015.
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