Fim das saidinhas é a saída para reduzir o crime?
Tulio Kahn
Projeto recente aprovado por ampla maioria dos deputados altera as regras para a concessão do benefício da saída temporária aos presos, vedando esta possibilidade. O projeto ainda vai para análise do Senado, mas em razão do apelo popular da medida e do contexto eleitoral, tem chances de ser aprovado, como foi na Câmara.
A saída temporária já é bastante
limitada e pode ser concedida a presos em regime semiaberto, que tenham bom
comportamento, tenham cumprimento mínimo de um sexto da pena, se o condenado
for réu primário, e um quarto da pena, se reincidente, e de compatibilidade do
benefício com os objetivos da pena.
Trabalhei no sistema
penitenciário de São Paulo entre 1997 e 1999 e sempre me surpreendeu, como
observador das estatísticas que em média apenas 8% dos presos não voltavam no
prazo previsto. Ou seja, 92% retornavam, mesmo com as péssimas condições de
cumprimento da pena. O motivo é que os presos que conseguiam o benefício já se
encontravam em geral em fase avançada do cumprimento da pena e em regime mais
brando. O não retorno implicaria na perda do benefício e retorno ao regime
fechado. Especulo que quanto mais próximo ao final da pena, maior seja a taxa
de retorno e sendo verdadeira a hipótese, uma alternativa seria simplesmente
exigir um cumprimento mínimo de pena maior.
Qual é a lógica subjacente às
saídas temporárias? A pena de prisão tem diversos objetivos e entre os
principais está, principalmente, a reintegração do preso à sociedade. E o
entendimento é de que é melhor para esta futura reintegração – pois mais cedo
ou mais tarde eles serão libertos – é que o indivíduo mantenha alguns vínculos
com a sociedade, família, amigos e que estes vínculos sirvam como obstáculos
contra a reincidência.
Existem evidências de que os condenados a
regimes mais brandos, por exemplo, a medidas restritivas de direito, tem taxas
de reincidência menores dos que os que foram condenados à prisão em regime
fechado. Sendo corretos os dados (não é uma pesquisa fácil de ser feita, pois
existem muitas diferenças iniciais entre os dois grupos), é vantajoso para a
sociedade a manutenção destes vínculos entre os beneficiados e a sociedade:
sim, alguns cometem crimes durante as saídas e outros não retornam. Mas numa
análise de custo benefício, reduzir a reincidência em longo prazo parece
compensar os “custos” da liberação.
Outra questão é saber se todos os
que atendem aos requisitos formais devem ter automaticamente o benefício ou se
é preciso uma avaliação individualizada.
A individualização da pena, afinal, é
outro princípio da política penal. Nos anos 90 em São Paulo, ainda vigorava a
regra de que tanto para a progressão da pena quanto para a concessão de benefícios
como as saídas temporárias, os presos deveriam ser avaliados pelas equipes
técnicas de classificação. Estas equipes são formadas por psicólogos,
assistentes sociais e funcionários dos estabelecimentos e coletam informações sobre
a personalidade do preso, seu comportamento, faltas disciplinares, saúde
mental, entre outras. Não tenho condições de opinar sobre a validade dos
instrumentos utilizados para a classificação, mas a priori confio muito mais
num parecer técnico emitido por estas equipes multidisciplinares, baseado na
análise individualizada de cada preso, do que simplesmente num atestado de bom
comportamento assinado pelo diretor do presídio.
Antigamente, os estados dispunham
inclusive de um Centro de Observação Criminológica (COC), que tinha por
finalidade avaliar o perfil do preso desde o momento inicial de execução da
pena. Mesmo tendo cometido um tipo específico de crime, os graus de
periculosidade são bastante diferentes: uma coisa é um indivíduo que sob influência
de álcool, mata alguém numa briga de trânsito e outra é um matador profissional
ou um psicopata serial. Os COCs hoje, não passam de estabelecimentos penais
comuns, com muito pouca “observação”. Os presos são distribuídos pelo sistema
não em função de sua periculosidade, mas antes em função do pertencimento a
determinada facção criminosa...
Sempre insisti que o poder
público faz pouco uso de dados e algoritmos para a tomada de decisões e muitos
sistemas prisionais mundo afora fazem uso destes dados, testes psicológicos
padronizados, entrevistas qualitativas, etc. para priorizar proteção a vítimas,
conceder benefícios, que chamados atender prioritariamente e outras decisões de
política criminal. Mas é preciso ter em mente que se tratam de critérios
probabilísticos! Ou seja, embora acertem na maioria das vezes, eles podem
falhar em casos específicos. O dilema então é decidir se confiamos mesmo nestes
instrumentos e avaliações ou se partimos do suposto que, por serem
probabilísticos, todos os presos que tem direito formal ao benefício, devem
usufruir deste direito. É sempre uma decisão difícil, pois se corre o risco do
cometimento de injustiças. Estas injustiças talvez sejam um custo a pagar em
nome de um benefício geral. Trata-se de um problema ético e nestes casos a
ciência tem pouco a oferecer e cada sociedade e época tem que optar pelo que
considera o mal menor.
O fato é que, em função do
crescimento desenfreado da população prisional nas últimas décadas e da
precariedade material das equipes de classificação (o estado brasileiro sempre
prefere investir mais em repressão do que em prevenção e pesquisa) , os
pareceres das esquipes técnicas de classificação passaram a ser praticamente
desconsiderados para as progressões e concessões de benefícios. E passou a
prevalecer a ótica de que bastava o atendimento aos requisitos formais da lei. É
preciso uma investigação mais acurada, mas as taxas de não retorno (8%) não
parecem ter aumentado consideravelmente no sistema prisional, apesar desta
mudança de postura nos anos 90, o que é um indício talvez de que os laudos
técnicos não tenham a validade que se espera.
A proposta de monitorar os
indultados através das tornozeleiras eletrônicas não é ruim, mas esbarramos ai
mais uma vez na escassez material, pois a quantidade de beneficiados é muito
grande em alguns estados. Novamente aqui, talvez seja possível estabelecer
algum critério de priorização, colocando as tornozeleiras naqueles indivíduos
de maior “risco”. Hoje em dia, como os crimes são georeferenciados e é possível
até cruzar a trajetória das tornozeleiras com os pontos criminais e verificar
se algum dos indultados estava no horário e local em que um crime foi
registrado.
O problema deste projeto de lei,
como sempre, é o contexto em que está sendo discutido e as motivações
subjacentes, mas afeitas ao populismo penal e com base em poucas evidências
criminológicas. A situação ideal, penso eu, seria a previsão de uma fase de
transição. É preciso primeiro reconstruir as equipes técnicas de classificação
e os centros de observação criminológica, contratar os especialistas,
modernizar e avaliar os instrumentos utilizados, testar a validade dos laudos. Avaliar,
por exemplo, se as taxas de não retorno são menores quando existe o laudo
criminológico, em comparação com as concessões baseadas apenas nos requisitos
formais. Somente depois desta recomposição e avaliações seria recomendável
abandonar o regime atual, de concessão quase automatizada.
Mas como usualmente fazem, nossos
legisladores querem mudar a realidade na base da penada e dos princípios
abstratos do direito. Vamos adjetivar um crime como “hediondo” e num passe de
mágica o problema está resolvido! Pesquisas e avaliações empíricas são
demoradas e custosas e não fazem parte da nossa cultura criminológica. Os
custos da inação, contudo, são quase sempre muito maiores. Se recuperar e
reintegrar o preso é caro, imaginem o custo de não fazê-lo.
No caso brasileiro, não é preciso
imaginar. O caos no sistema prisional e os elevados índices de criminalidade no
país são o resultado, em parte, do abandono da ciência e da pesquisa
criminológica.