O rompimento entre o PCC e o
Comando Vermelho em 2016 produziu uma série de episódios sangrentos tanto no
interior das prisões como nas ruas de algumas grandes cidades brasileiras.
Entre outros, tivemos os confrontos no Rio Grande do Norte e Roraima em 2016 e
no ano seguinte as perturbações ainda maiores no Acre, Amazonas e Ceará. Estes
episódios levaram alguns especialistas e interpretar o crescimento dos
homicídios no Norte e Nordeste como fruto da guerra entre as facções. (Manso e
Dias, 2018, A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil.)
Com efeito, se analisarmos os gráficos
das séries históricas de homicídio dos Estados das últimas décadas, é possível
discernir diversos “pulsos”, ou seja, alterações intensas e transitórias nas
séries de homicídios. Todavia, os gráficos nos mostram também que além dos
pulsos existem tendências anteriores de crescimento na maior parte destes
estados. (os gráficos completos que serviram de base a este artigo podem ser
consultados no anexo)
Claro que não é apenas durante
estes eventos dramáticos que ocorrem mortes decorrentes da briga entre facções
criminais, que são recorrentes. Assim
mesmo, é digno de nota que o impacto real das mortes durante estes eventos
transitórios no total dos homicídios é diminuto. Colocando os números em perspectiva,
se tomarmos a quantidade de homicídios nos Estados entre 2004 e 2018, estes “pulsos”
representam em média apenas 1% do total de mortes. Cerca de 3 mil mortes num
universo de 300 mil. Vamos supor que o número de mortes real seja o dobro do número
aqui estimado. Ainda assim estaríamos falando em algo em torno de 2% dos
homicídios.
Para estimar este impacto tomamos
nos gráficos a média de homicídios no período anterior e comparamos com a média
de homicídios durantes os eventos. O mais sangrento deles teve lugar no Ceará,
onde os confrontos entre facções que durou vários meses em 2017 provocaram
cerca de 500 homicídios, além do número esperado.
Curiosamente, existem outros “pulsos”
nas séries históricas que tem impactos superiores ao das brigas entre facções
criminosas. Em São Paulo, em 2012, uma política de segurança de enfrentamento
desastrosa produziu cerca de 400 mortes “adicionais”, revertendo momentaneamente
uma tendência de queda que vinha desde de 2000. Impactos ainda maiores nas
séries de homicídios podem ser encontrados, todavia, durante episódios de
greves das polícias - especialmente greves mais prolongadas, envolvendo a Polícia
Militar.
Uma greve policial em Santa
Catarina em 2007 parece ter provocado um aumento de aproximadamente 600 mortos
no Estado naquele ano. A greve em Pernambuco em 2017 cerca de 1000 mortos a
mais e no mesmo ano, no Espírito Santo, algo em torno de 120 mortes acima da
média habitual. Muitas destas mortes durante as greves policiais podem ter sido
também praticadas pelas facções criminais, aproveitando para acertar contas
passadas num momento de menor risco.
Em todo caso, não deixa de ser
interessante observar que para os Estados, o impacto das greves policiais sobre
a série de homicídios é tão grande ou mesmo maior do que o impacto das brigas
entre facções. Em alguns anos, elas são um fator explicativo para o crescimento
do número de homicídios e de crimes em geral, pois tem um impacto ainda maior sobre
os crimes patrimoniais.
Eventos transitórios como brigas
de facções e greves policiais, mesmo que intensos, não explicam, contudo, o
grosso das 63 mil mortes anuais no país. Como insistimos há alguns anos, tendências
seculares e águas mais profundas explicam as tendências históricas de longo
prazo dos homicídios. Conjuntura econômica e águas mais rasas – como políticas
de segurança - explicam outra parte deste quadro.
Uma hipótese alternativa, já
repetida e detalhada em outros artigos – é que o crescimento dos homicídios, principalmente
no N e NE, foi fruto indesejado do crescimento rápido da economia e da renda,
que aumentou crimes patrimoniais, insegurança, armas em circulação e
homicídios, num contexto de despreparo institucional do sistema de justiça
criminal (contexto 1). A queda dos homicídios em alguns estados, especialmente
do Sudeste, reflete um contexto diferente de crescimento econômico equilibrado,
estabilidade dos crimes patrimoniais e da sensação de insegurança, num contexto
de melhora de eficiência do sistema de justiça criminal e diminuição de armas
em circulação. (Contexto 2)
Este padrão ajuda a entender a conjuntura
criminal atual? Acreditamos que sim.
Passado o momento mais crítico da
crise econômica de 2014, começamos a assistir nos anos seguintes diversos estados
(doze) com quedas, por exemplo, nos roubos de veículos, invertendo a tendência
de crescimento anterior. A melhora da conjuntura econômica pode explicar em
parte esta inversão de tendência. Com a queda nos roubos, temos (em hipótese),
uma queda na sensação de insegurança e na quantidade de armas em circulação,
ajudando a diminuir os homicídios. Este padrão explicaria razoavelmente bem os
movimentos de queda dos roubos e homicídios simultaneamente em AL, DF, GO, MG,
PB, PR, RJ, RS, SC e SP. Note-se a presença de dois estados Nordestinos no
grupo, formado basicamente por estados do Sul e Sudeste, pertencentes ao contexto
1.
Num outro extremo temos a
continuidade do contexto 2 em outros Estados, com crescimento histórico e linear
tanto do crime patrimonial quanto dos homicídios, como nos casos dos Estados de
AC, PA, RN, TO e AM. A maioria da região Norte, com exceção do RN. Enquanto os
Estados do Nordeste parecem ter acordado para a explosão dos homicídios e
procurado traçar novas políticas de segurança, o Norte parece ainda inerte.
Estado
|
HD
|
DESDE
|
RV
|
DESDE
|
AL
|
CAI
|
2014
|
CAI
|
2016
|
DF
|
CAI
|
2014
|
CAI
|
2016
|
GO
|
CAI
|
2015
|
CAI
|
2016
|
MG
|
CAI
|
2016
|
CAI
|
2017
|
PB
|
CAI
|
2015
|
CAI
|
2016
|
PR
|
CAI
|
2008
|
CAI
|
2016
|
RJ
|
CAI
|
2004
|
CAI
|
2018
|
RS
|
CAI
|
2017
|
CAI
|
2015
|
SC
|
CAI
|
2018
|
CAI
|
2016
|
SP
|
CAI
|
2003
|
CAI
|
2014
|
AP
|
CAI
|
2016
|
NI
|
|
CE
|
CAI
|
2017
|
SOBE
|
2004
|
ES
|
CAI
|
2010
|
SOBE
|
2004
|
PE
|
CAI
|
2017
|
SOBE
|
2004
|
PI
|
CAI
|
2016
|
SOBE
|
2004
|
SE
|
CAI
|
2017
|
SOBE
|
2004
|
MT*
|
CAI
|
2015
|
SOBE
|
2011
|
MA*
|
CAI
|
2015
|
SOBE
|
2004
|
BA*
|
ESTÁVEL
|
2014
|
CAI
|
2015
|
RO
|
ESTÁVEL
|
CAI
|
2016
|
|
MS
|
ESTÁVEL
|
ESTÁVEL
|
||
RR
|
ESTÁVEL
|
SOBE
|
2014
|
|
AC
|
SOBE
|
2004
|
SOBE
|
2007
|
PA
|
SOBE
|
2004
|
SOBE
|
2004
|
RN
|
SOBE
|
2004
|
SOBE
|
2004
|
TO
|
SOBE
|
2004
|
SOBE
|
2004
|
AM
|
SOBE
|
2004
|
SOBE
|
2004
|
Fonte: SSPs
|
||||
* capitais
|
Interessante observar um grupo
intermediário de Estados que estão tendo queda dos homicídios de 2015 para cá,
não obstante a continuidade do crescimento dos crimes patrimoniais, como o
roubo de veículos. Neste grupo estão por exemplo CE, ES, PE, PI, SE, MT e MA.
Observe-se que em pelo menos três destes Estados (CE, ES e PE) algumas gestões
adotaram políticas de segurança específicas para lidar com os homicídios (Ceará
Pacífico, Ocupação Social, Pacto pela Vida, etc.). Embora atrapalhados por
brigas de facções e greves policiais, são exemplos de que o foco na diminuição dos
homicídios surte efeitos, mesmo com a continuidade do crescimento dos crimes
patrimoniais. Finalmente, um grupo de Estados onde a situação dos homicídios é
estável, BA, RO, MS e RR, o que é um alento pois BA, RO e RR são estados do
Norte e Nordeste, a maioria dos quais está enquadrada dentro do contexto 2
acima descrito.
O arcabouço teórico dos Contextos
1 e 2 parece assim dar conta de explicar, ao menos em parte, tanto momentos de
aumento como de queda dos homicídios. Brigas de facções são eventos
transitórios cujo impacto sobre o aumento dos homicídios é diminuto. Assim como
diminuto foi o papel do crime organizado para explicar a queda dos homicídios
em São Paulo.
Os processos de queda dos
homicídios recente observado em 18 Estados são lentos e graduais e pela sua morfologia
sugerem antes a validade da teoria dos contextos do que alguma pretensa pax criminosa, algum acordão entre
criminosos e governos para encerrar a violência. Mas este já é outro tema. Remeto
os leitores interessados aos gráficos e dados que subsidiaram estas análises.
Valem mais do que mil palavras!
https://www.researchgate.net/publication/328676074_Tendencias_de_homicidios_e_roubo_de_veiculos_nos_Estados_entre_2004_e_2018