quarta-feira, 1 de abril de 2020

Qual o tamanho da subnotificação de casos de Covid19 no Brasil?



Há no momento uma grande discussão entre os especialistas sobre qual a taxa de mortalidade do Covid19. Só nesta semana dois artigos na Lancet fornecem estimativas tão díspares quanto 1,38% e 15,4%. O que normalmente se publica nos órgãos de saúde em todo mundo e na OMS é a taxa crua de mortalidade, que é dada pelo número de mortes no período dividido pelo número de casos no mesmo período.

O cálculo da taxa real, contudo, é bem mais complexo, pois é necessário fazer uma série de ajustes, levando em conta estrutura etária da população, período de incubação do vírus (alguns estudos usam no denominador o número de infectados 14 dias atrás), quantidade de testagem realizadas, entre outros fatores. Já discutimos no artigo anterior a precariedade das estimativas cruas e como a mortalidade no Brasil pode estar superestimada em razão na diminuição do ritmo da testagem.

Se tomarmos a taxa crua de letalidade, a média mundial hoje é de 4,91% mas ela é inflada por países como Itália ou Iran, que jogam a média para cima. A mediana para hoje (1/4/2020), tomando apenas os países com mais de 50 óbitos, é de 3,77%. A taxa tem crescido no tempo e a explicação mais provável para isso é a diminuição do ritmo das testagens em muitos países, que passaram a priorizar a testagem apenas nas pessoas mais expostas ao riso. O fato é que há uma ampla variabilidade na medida, que varia de 11,75% na Itália a 1,09% na Alemanha.

O gráfico de box-plot abaixo ilustra esta variabilidade na taxa crua de mortalidade entre os países.




A situação no Brasil não é diferente. A taxa crua de mortalidade é estimada em 3,51% (31 de março), ela é crescente e há uma ampla variabilidade entre os Estados. Como mostra a tabela abaixo, apenas com os Estados que tiveram pelo menos três mortes, a CFR vai de 22% no Piauí a 0,73% em Minas Gerais. Para os Estados analisados a média ontem era de 4,07% mas faltaram os dados do RJ.




Vale aqui o mesmo alerta: não é que a letalidade do vírus seja muito maior em um Estado do que em outro ou que o vírus esteja se tornando mais letal com o tempo. É provável que as diferenças se devam principalmente em razão das mudanças no denominador, qual seja, o número de casos testados e diagnosticados como positivos naquele lugar e período.


Para efeitos de simulação para calcular a subnotificação, podemos assumir que a taxa de mortalidade mais próxima do real do Covid19 seja de 1,38%, segundo a estimativa mais recente e completa da Lancet. ( Estimates of the severity of coronavirus disease 2019: a model-based analysis. Robert Verity, Lucy C Okell, Ilaria Dorigatti, Peter Winskill, Charles Whittaker, Natsuko Imai, and others. The Lancet Infectious Diseases, Published: March 30, 2020).

Se aceitarmos como válida esta estimativa, podemos obter uma estimativa da subnotificação de casos nos dados oficiais e obter um número mais fidedigno do número real de casos. Para isso precisaríamos assumir que o número de mortes por Covid19 é confiável, embora saibamos que é provável que também a quantidade de mortes deva estar subnotificada. Mas a subnotificação das mortes deve ser menor do que a subnotificação dos casos positivos.

Aceita esta premissa, podemos estimar a taxa de subnotificação de casos para o Brasil. A tabela abaixo traz o número de casos de notificação positiva acumulados dia a dia, a partir da primeira morte oficial (16/3). A taxa de mortalidade “crua” (número de mortes/número de casos) vai aumentando no período de 0,43% para 3,52%, como vimos. Mas se assumirmos como válida a estimativa de 1,38%, é possível especular que a subnotificação de casos positivos aumentou no tempo – o que é condizente com a hipótese da diminuição na testagem.




Fonte: elaborado pelo autor, a partir dos dados do MS

Assim, se o número atual de mortes é de 201 e a taxa de mortalidade 1,38%, então o número de casos positivos não deve ser  5717 como apontam os dados oficiais, mas algo mais próximo de 14.565, o que dá uma taxa de subnotificação ao redor de 2,55. É possível e recomendável fazer o mesmo cálculo para cada Estado e cidade. Para o Estado de São Paulo a taxa de subnotificação pode estar ao redor de 4, o que significa que ao invés de 2339 temos talvez algo próximo a 9.800 casos positivos.

Trata-se apenas de um exercício a partir de algumas suposições razoáveis, mas é preciso fazê-lo, pois uma série de estimativas, como número de leitos, ventiladores, etc. depende de uma estimativa confiável do número real de casos positivos.  Se o modelo estiver correto (mortalidade de 1,38% e subnotificação de 2,55) , o número de casos hoje deve ficar em torno de 247 e 299 amanhã. Pode ser um bom teste para validar os parâmetros. Um estudo aleatório com testagem da população está sendo organizado pela Universidade de Pelotas e deve trazer dados mais confiáveis em algumas semanas.

É muito difícil prever a taxa de mortalidade real no meio de uma pandemia e é comum que estimativas mais confiáveis apareçam apenas muito tempo depois. Mas o tempo da academia é outro. Precisamos de uma boa aproximação da realidade agora, para tomar medidas agora. Para diminuir a subnotificação seria preciso começar o quanto antes a testagem em massa da população, seguida de tracking dos positivos e seus contatos. Junto com o isolamento horizontal, parece ser um dos motivos de sucesso dos países que estão controlando a pandemia. Que o artigo estimule outros pesquisadores a fazerem outras e melhores estimativas, pois não podemos esperar até que todos os dados sejam conhecidos.


Vale a

segunda-feira, 30 de março de 2020

Usando informação rápida e correta para reduzir o impacto do coronavirus


O isolamento social é apontado como melhor estratégia para controle do coronavirus. Em alguns países ele é feito de modo voluntário e em outros existem regras estritas, com multas e fiscalização governamental. 

Trabalhadores dos serviços e setores essenciais estão isentos e formam uma porcentagem desconhecida da população em cada cidade. Os especialistas avaliam que o ideal é tirar de circulação acima de 70% da população, por um período mais ou menos prolongado de tempo.
A questão é, como saber se o isolamento social está funcionando e qual a porcentagem da população fora de circulação? Como é impossível fazer um censo, há uma série de variáveis substitutas que podem ser utilizadas para fazer um cálculo aproximado.

Se as pessoas estão mais em casa há um aumento do consumo de luz, água e outros serviços públicos. Se as ruas estão mais vazias há uma redução no tráfego, no consumo de gasolina, no volume de passageiros nos ônibus e metrôs, usuários do Uber e outros indicadores ligados à circulação. Os GPS podem ser de grande ajuda nesta hora, pois estão instalados em milhares de veículos e telefones celulares. Programas como o Waze, Google Maps, TomTom são capazes de rastrear o padrão de deslocamento da população, calculando distâncias, horários  e modo de locomoção, entre outras variáveis. Empresas de telefonia celular também podem fazer este rastreamento, usando tecnologias de rádio transmissão.

Assim, para conhecimento da sociedade e dos governos, que precisam calibrar suas estratégias de isolamento, seria muito importante que todas as empresas de tecnologia que conseguem rastrear os deslocamentos da população abrissem publicamente seus dados. Deste modo é possível ter uma aproximação da porcentagem de pessoas fora de circulação e se a tendência é crescente ou decrescente.  Entre outras vantagens, seria possível analisar a velocidade de propagação do vírus, comparando cidades com alto e baixo grau de isolamento social. E se não houver colaboração voluntária das empresas, o poder público poderia requisitar judicialmente estes dados, mantido o sigilo individual dos usuários. O que interessa são os agregados estatísticos e não as informações de cada indivíduo.

O TomTom é uma empresa de tecnologia de GPS que publica o TomTom traffic index há 9 anos,  cobrindo 416 cidades de 57 países. É possível ver os dados de tráfego on-line e acessar os dados históricos. Na tabela abaixo estão as reduções percentuais do tráfego em algumas cidades brasileiras na semana passada, tomando como comparação a média do horário de pico da tarde.


  

Redução do tráfego no pico da tarde, cidades selecionadas



Fonte: Tomtom traffic index

A tabela mostra que a queda no volume de trânsito atingiu seu máximo em São Paulo, na sexta feira e o ponto mínimo em Brasília, na quarta feira 25, um dia após o pronunciamento desastroso do presidente sugerindo a volta à normalidade. Sugere também que, com exceção de Porto Alegre, o isolamento social está crescendo diariamente na maioria das cidades.

Trata-se aqui apenas de uma amostra, não aleatória, de usuários do serviço de geolocalização da empresa, e que não cobre, por exemplo, os deslocamentos feitos por transporte público, motocicletas, bicicletas ou à pé. Assim, não é possível com base nestes dados afirmar que x% da população está em casa.  É provável que o isolamento seja maior em São Paulo do que em Brasília e que esteja crescendo de modo geral. Trata-se apenas de uma “variável substituta” e precisaríamos ter outros indicadores para ter uma ideia mais precisa da adesão ao isolamento. O exemplo mostra apenas que dá pra fazer e é preciso fazer e há empresas no mercado que inclusive podem fornecer estas informações, com base no cadastro de celulares.

A geolocalização dos casos de notificação positiva e dos mortos também é uma informação relevante em qualquer tipo de epidemia. É preciso saber onde moram e por onde transitaram as vítimas. São Paulo vivia uma epidemia de homicídios quando entrei na Secretaria de Segurança em 2003. Esta epidemia de mortes foi em boa parte controlada pelo uso inteligente de informações espaciais, em sistemas como o Infocrim e Copon on-line, que mostravam locais, dias e horários de maior frequência, perfil das vítimas e autores, fatores protetivos e de risco. Conseguimos vencer a batalha contra os homicídios tratando-os como uma epidemia, sob a ótica da saúde. Infelizmente não tenho visto esforços doa governos para mapear os casos.  O mapeamento poderia apontar se existem áreas de concentração (áreas quentes) ou áreas frias. É possível mesmo em pensar em estratégias de contenção diferenciadas espacialmente, se a opção for manter algum nível maior de atividade econômica (mitigação), por exemplo, em cidades que ainda não tiveram nenhuma notificação positiva.

A maior ou menor adesão ao isolamento é um parâmetro chave, por exemplo, para estimarmos a quantidade de casos graves, leitos e mortes que teremos. E a tabela sugere que este parâmetro é dinâmico, muda bastante no tempo e no espaço. Faço esta observação porque nesta semana recebeu bastante atenção um relatório elaborado pelo Imperial College de Londres, com previsões de mortes para todos os países, inclusive o Brasil. O relatório é importante para simular as diferenças dos resultados, de acordo com as estratégias adotadas: não fazer nada, mitigação ou supressão da circulação.

Mas como projeção do número de casos é no mínimo problemático: há diversas variáveis omitidas no modelo (clima?), alguns parâmetros de propagação são fixos (Ro =3) e baseados na evolução dos países desenvolvidos e se é verdade, como a tabela acima sugere, que o comportamento da população e dos governos é dinâmico, é temerário arriscar uma previsão para daqui a 250 dias. É mais recomendável fazer projeções de curto e médio prazos e baseados na evolução empírica do próprio país, estado ou cidade, desde que ultrapassado certo patamar de casos e de mortes – digamos, 500 casos e 50 mortes.

Estes próximos dias serão decisivos para sabermos se teremos alguns milhares ou centenas de milhares de mortes. A população parece felizmente estar dando maior atenção aos alertas dos meios de comunicação, cientistas, ministério da saúde, governadores e prefeitos, e se dando conta da seriedade do problema. Faltam aos governos ainda, em todos os níveis, dados epidemiológicos e expertise para saber o que fazer com eles. Os centros de controle da crise precisam contar com médicos epidemiologistas, estatísticos, geógrafos, especialistas em tecnologia, monitorando informações em tempo real.

As idas e vindas de países Europeus e dos EUA com relação às estratégias de isolamento mostram que o problema não é só brasileiro. Quanto antes lançarmos mão de todos os recursos e dados epidemiológicos disponíveis, antes e com menor estrago sairemos desta crise.  


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