Os olhos dos analistas estão
desde fevereiro voltados para a intervenção federal na segurança pública
decretada pelo governo federal em fevereiro de 2018 e que completa agora três
meses. O interesse é justificado, dado o ineditismo da medida e a centralidade
que o Rio de Janeiro tem no cenário nacional, quando o tema é a criminalidade.
A avaliação do eventual impacto da
intervenção sobre os índices de criminalidade não é tarefa fácil. Não se sabe
ao certo que medidas foram tomadas, onde e com qual intensidade. Além disso, é
preciso conhecer as tendências criminais prévias e controlar por diversos
fatores que podem impactar a criminalidade, em especial o contexto socioeconômico.
Além destes cuidados rotineiros, há ainda um agravante no caso: a polícia civil
carioca ficou em greve por 78 dias no começo de 2017 – afetando bastante o
registro de inúmeros crimes, especialmente os menos graves, que deixaram de ser
registrados. A subnotificação alterou as estatísticas de janeiro a março para
baixo. Assim, se compararmos os dados do primeiro trimestre de 2018 com o
primeiro trimestre de 2017, encontraremos diversos aumentos artificiais, uma
vez que a base de comparação ficou prejudicada.
A intervenção ocorre justamente
um ano após a greve e um analista mal intencionado poderia facilmente usar os
dados oficiais para provar a ineficiência da medida. É preciso, portanto tomar
cuidado especial com estas comparações: assume-se que as estatísticas de
homicídio, latrocínio, roubo e furto de veículos e outras ocorrências graves
tenham sido pouco afetadas pela subnotificação, mas a análise das séries
históricas sugere claramente que roubos e furtos e outros crimes de menor
gravidade foram bastante afetados.
Como gestor do setor de
estatística criminal no Ministério da Justiça e em SP, deparei-me com situações
parecidas e a solução foi tentar “recompor”, para fins de análise, a série
histórica mais provável, baseado em modelos temporais. Estes modelos levam em conta
a tendência histórica anterior, sazonalidade, autocorrelação e outros
incidentes para prever quais teriam sido os números, caso a greve não tivesse
afetado a notificação dos registros. Estes modelos probabilísticos são
utilizados também para avaliar o impacto de medidas – como o Estatuto do Desarmamento
– comparando a série histórica prevista com a série de dados realmente
observada. Estão sempre sujeitos a erro, mas em linhas gerais produzem
previsões razoavelmente precisas.
Assim, por exemplo, vamos supor
que não conhecemos os dados de criminalidade de janeiro a março de 2018 já
publicados para o Rio de Janeiro e prever quais seriam usando um modelo ARIMA
simples. Fazendo esta simulação, comparando a série real com a prevista,
observamos um erro médio de -1,57% nas previsões de roubo no trimestre, -10,83%
na série de roubo de veículos, 6,11% nos furtos de veículos, 5,01% nos furtos,
3,01% nos homicídios, -2,94% nas lesões corporais dolosas, 1,81% nos estupros e
5,13% nas estatísticas de apreensão de drogas. Vemos que o modelo está longe de
ser perfeito, mas ainda assim produz previsões razoáveis.
Aceitando a premissa de que as previsões
geradas pelo modelo são melhores do que os dados reais obtidos durante a greve
da PC em 2017, como ficariam as tendências criminais no Rio de Janeiro? Usando
um período de 48 meses – de 2013 a 2016 -, geramos previsões para as séries do
primeiro trimestre de 2017 para roubos e furtos no Rio de Janeiro e substituímos
os dados oficiais pelos dados gerados pelo modelo.
Ano
|
mês
|
roubo
|
variação
|
roubo
de veículo
|
variação
|
furto
de veiculo
|
variação
|
furtos
|
variação
|
homicidio
doloso
|
variação
|
GERALRJ
|
2016
|
JAN
|
15673
|
8,79
|
3358
|
16,68
|
1515
|
-4,90
|
15912
|
-2,64
|
406
|
-8,14
|
1,96
|
2016
|
FEV
|
16153
|
25,21
|
3056
|
22,53
|
1456
|
9,15
|
16559
|
-4,22
|
404
|
24,69
|
15,47
|
2016
|
MAR
|
16194
|
22,24
|
3392
|
18,39
|
1409
|
-7,36
|
14172
|
-9,82
|
445
|
15,89
|
7,87
|
2016
|
ABR
|
15526
|
27,40
|
3263
|
21,08
|
1435
|
8,71
|
13026
|
-7,80
|
471
|
39,35
|
17,75
|
2016
|
MAI
|
16438
|
37,10
|
3265
|
33,05
|
1540
|
7,54
|
13506
|
-8,90
|
368
|
6,98
|
15,15
|
2016
|
JUN
|
17116
|
59,95
|
3308
|
46,76
|
1453
|
9,00
|
12727
|
-10,78
|
376
|
38,24
|
28,63
|
2016
|
JUL
|
16843
|
47,82
|
3105
|
27,83
|
1300
|
-5,80
|
13275
|
-7,00
|
368
|
21,05
|
16,78
|
2016
|
AGO
|
17255
|
52,62
|
3045
|
30,91
|
1240
|
-10,79
|
15938
|
12,68
|
386
|
16,27
|
20,34
|
2016
|
SET
|
18075
|
54,51
|
3439
|
42,11
|
1281
|
-9,73
|
13864
|
-10,38
|
423
|
19,49
|
19,20
|
2016
|
OUT
|
20242
|
68,44
|
4182
|
67,21
|
1367
|
-1,51
|
13701
|
-3,39
|
462
|
20,94
|
30,34
|
2016
|
NOV
|
20252
|
61,06
|
4111
|
57,27
|
1394
|
-4,06
|
12987
|
-6,89
|
461
|
38,02
|
29,08
|
2016
|
DEZ
|
19177
|
38,63
|
4189
|
33,41
|
1364
|
-0,94
|
13515
|
-10,83
|
461
|
20,37
|
16,13
|
2017
|
JAN
|
21304
|
35,93
|
4206
|
25,25
|
1357
|
-10,43
|
14817
|
-6,88
|
479
|
17,98
|
12,37
|
2017
|
FEV
|
21733
|
34,54
|
4286
|
40,25
|
1310
|
-10,03
|
16475
|
-0,51
|
503
|
24,50
|
17,75
|
2017
|
MAR
|
22529
|
39,12
|
5002
|
47,46
|
1428
|
1,35
|
14253
|
0,57
|
498
|
11,91
|
20,08
|
2017
|
ABR
|
22929
|
47,68
|
4891
|
49,89
|
1289
|
-10,17
|
12710
|
-2,43
|
430
|
-8,70
|
15,25
|
2017
|
MAI
|
23213
|
41,22
|
4596
|
40,77
|
1302
|
-15,45
|
13992
|
3,60
|
424
|
15,22
|
17,07
|
2017
|
JUN
|
21177
|
23,73
|
4553
|
37,64
|
1382
|
-4,89
|
12684
|
-0,34
|
389
|
3,46
|
11,92
|
2017
|
JUL
|
21856
|
29,76
|
4953
|
59,52
|
1205
|
-7,31
|
12470
|
-6,06
|
370
|
0,54
|
15,29
|
2017
|
AGO
|
21817
|
26,44
|
4613
|
51,49
|
1318
|
6,29
|
13118
|
-17,69
|
392
|
1,55
|
13,62
|
2017
|
SET
|
19473
|
7,73
|
4317
|
25,53
|
1281
|
0,00
|
13675
|
-1,36
|
457
|
8,04
|
7,99
|
2017
|
OUT
|
19451
|
-3,91
|
4266
|
2,01
|
1321
|
-3,37
|
13037
|
-4,85
|
479
|
3,68
|
-1,29
|
2017
|
NOV
|
18744
|
-7,45
|
4197
|
2,09
|
1300
|
-6,74
|
12138
|
-6,54
|
453
|
-1,74
|
-4,07
|
2017
|
DEZ
|
18412
|
-3,99
|
4492
|
7,23
|
1213
|
-11,07
|
11961
|
-11,50
|
440
|
-4,56
|
-4,78
|
2018
|
JAN
|
20939
|
-1,71
|
5286
|
25,68
|
1264
|
-6,85
|
13173
|
-11,10
|
469
|
-2,09
|
0,79
|
2018
|
FEV
|
19691
|
-9,40
|
4792
|
11,81
|
1159
|
-11,53
|
12414
|
-24,65
|
437
|
-13,12
|
-9,38
|
2018
|
MAR
|
21041
|
-6,60
|
5358
|
7,12
|
1249
|
-12,54
|
11543
|
-19,01
|
503
|
1,00
|
-6,01
|
Utilizando as previsões geradas
no lugar das estatísticas oficiais, os homicídios, roubos, furto de veículos e
furtos estariam em queda no primeiro trimestre de 2018. Roubo de veículo ainda
mostra crescimento, mas a taxas decrescentes. Como sugerimos antes em outro
artigo que analisou a Intervenção, a criminalidade já apresentava tendência de
queda no Rio quando a intervenção teve início, tendência iniciada por volta de
outubro de 2017. Tendência em linha com a maior parte dos Estados brasileiros,
que de modo generalizado tiveram quedas nos crimes patrimoniais em 2017, com o
fim do ciclo recessivo na economia.
Quanto aos indicadores de produtividade, observamos uma diminuição da apreensão de armas, que pode também ser interpretado como aumento da sensação de segurança após a intervenção, que faz com que tenhamos menos armas em circulação. Só é possível dizer que estamos diante de queda de produtividade se tivermos redução na atividade policial, dado não disponível para o público. Observa-se também aumento na apreensão de drogas, o que pode significar aumento do consumo, que tende a ocorrer nos períodos de melhora da economia, uma vez que drogas é uma mercadoria cujo consumo - e indiretamente a apreensão - é afetada pela renda dos consumidores. O indicador mede tanto atividade policial quanto aumento da demanda e aqui também é dificil dizer se estamos ou não diante de queda de produtividade policial. Finalmente, há indícios do aumento na quantidade de "tiroteios" (ou da denúncia de tiroteios) mas ao mesmo tempo diminuição dos homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial, comparando março de 2018 com o mesmo período de 2017.
Quanto aos indicadores de produtividade, observamos uma diminuição da apreensão de armas, que pode também ser interpretado como aumento da sensação de segurança após a intervenção, que faz com que tenhamos menos armas em circulação. Só é possível dizer que estamos diante de queda de produtividade se tivermos redução na atividade policial, dado não disponível para o público. Observa-se também aumento na apreensão de drogas, o que pode significar aumento do consumo, que tende a ocorrer nos períodos de melhora da economia, uma vez que drogas é uma mercadoria cujo consumo - e indiretamente a apreensão - é afetada pela renda dos consumidores. O indicador mede tanto atividade policial quanto aumento da demanda e aqui também é dificil dizer se estamos ou não diante de queda de produtividade policial. Finalmente, há indícios do aumento na quantidade de "tiroteios" (ou da denúncia de tiroteios) mas ao mesmo tempo diminuição dos homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial, comparando março de 2018 com o mesmo período de 2017.
O mais provável é que esta queda dos crimes patrimoniais no Rio esteja relacionada a este novo ciclo econômico que afetou a criminalidade na maioria dos
Estados monitorados. Não se pode afirmar que seja fruto da intervenção federal.
Nem que a intervenção tenha piorado os indicadores criminais, ao menos com
relação aos crimes analisados. Para avaliar os efeitos da intervenção, seria
preciso isolar o efeito do ciclo econômico e outros fatores eventualmente simultâneos
e comparar com a tendência dos demais Estados. Trata-se de análise mais
complexa e infelizmente não é possível fazer isto neste artigo e com os dados
disponíveis.
O fato é que é preciso muito
cuidado para avaliar de modo minimamente isento não apenas a intervenção
federal no Rio mas qualquer política pública nesta área, sob pena de aceitarmos
como verdadeira uma hipótese falsa ou rejeitarmos uma verdadeira. A literatura especializada
e a cobertura jornalística estão cheia de exemplos destes erros. Como
manifestado antes, a Intervenção foi mal planejada e ainda não mostrou a que
veio. Podem-se encontrar inúmeras razões de ordem moral, teórica e filosófica
para rejeitá-la. Mas ainda é cedo, com base nas estatísticas criminais, para
afirmar se foi bem ou mal sucedida para estancar a crise na segurança no Rio de
Janeiro.