Entre 1997 e 2000 trabalhei como
assessor no sistema penitenciário paulista. Durante este período visitei
inúmeras penitenciárias, entre elas o famigerado Carandiru, a Penitenciária do
Estado e outros pelo interior.
Ao contrário do que as pessoas
imaginam, não existe uma separação física rígida entre presos e funcionários
nos presídios. Diretores de unidade, dentistas, religiosos, advogados, “faxinas”,
todos circulam pelos mesmos espaços durante o dia. Pela manhã os presos saem de
suas celas e circulam quase livremente pelos limites de pavilhões e pátios,
jogam bola, tomam sol, visitam as outras celas, alguns poucos trabalham (22% Censo
Penitenciário Nacional), estudam algumas horas (11%), ou frequentam algum culto
religioso. Só pela noite voltam para a “tranca”. É uma realidade bem diferente
da mostrada nos seriados americanos, onde presos e agentes penitenciários mal
se comunicam e advogados e visitas só se falam por interfone, separados por
vídeos blindados e sob supervisão rigorosa de carcereiros e câmeras de vídeo
numa “Supermax”. Nos dias de visita a interação é maior ainda com familiares e
crianças zanzando pelos espaços, que não raramente se transformavam em
verdadeiras feiras para aquisição de víveres de primeira necessidade, mal fornecidos
pelo Estado.
Na média, existe um funcionário
para cada 5 presos e esta proporção é maior se imaginarmos que cerca de 20% dos
funcionários se dedicam a atividades meio, não envolvidos na fiscalização dos
presos e que o sistema funciona em turnos e escalas. Com exceção talvez dos
presídios de segurança máxima ou de regimes como o RDD, onde o preso fica na
tranca 23 horas por dia, esta é a realidade de quase todos os presídios do
país. Há superlotação (2 presos por vaga), péssimas condições de salubridade,
falta trabalho, laser, estudo, material de limpeza, colchões, etc. Em
compensação, em boa parte do tempo os presos vivem em relativa liberdade. São
as mazelas e benefícios das prisões no terceiro mundo.
Num contexto como este, é difícil
dizer que a administração “controla” as unidades penitenciárias. Na verdade há
uma espécie de pacto não escrito, envolvendo presos, “faxinas”, funcionários e
gestores, para que a ordem seja mantida dentro dos limites. Na maior parte do
tempo esta ordem se mantem. Mesmo no Carandiru, com seus quase oito mil
habitante, lembro que os presos se afastavam ligeiramente, mãos para trás e
olhos baixos, quando passávamos pelos corredores em visitação. Passado o portão
interno, ficávamos todos juntos e seria muito fácil, uma vez que nenhum agente
portava armas, sermos dominados e feitos reféns. A manutenção da ordem
interessava tanto aos presos quando à administração. Quebrar a ordem significava
perder regalias, liberdades e facilidades. Isto é que mantinha o equilíbrio e
não grades, armas, câmeras e centenas de supervisores em tempo integral.
Por vezes o equilíbrio era
rompido: os presos reivindicavam transferências, banho de sol, extensão do
horário de visitas, remoção de agentes mais durões, melhoria na alimentação.
Ou, simplesmente, planejavam fugir. O modus operandi era quase padrão: entravam
nas celas do seguro e tomavam como reféns dos estupradores, traidores,
ex-policiais, por vezes alguns funcionários e ameaçavam matar todo mundo se as
exigências não fossem atendidas. Os motins duravam em média 20 horas, durante
as quais entrava em funcionamento a Comissão de Negociação, formada por
funcionários mais experientes, munidos de plantas do presídio, megafone, chaves
dos portões, mudas de roupa e principalmente muita paciência para negociação.
Em último caso, entrava a Tropa de Choque, mas raramente se chegava a este
ponto, uma vez que o trauma do massacre do Carandirú ainda eram recente. Depois
todo mundo era colocado no pátio, as celas revistadas em busca de armas (quase
não havia celulares), as lideranças transferidas, sindicâncias internas
abertas, algumas exigências atendidas quando possível e a ordem era
restabelecida por mais um tempo. O enredo era conhecido por todos e raramente
escapava disso.
Nestes 20 anos o sistema
prisional brasileiro só cresceu. A população prisional aumenta 79 pessoas por
dia, o que equivale a três novos presídios por mês, considerando um presídio com
capacidade para 800 pessoas. Enquanto a população em geral cresce 1% ao ano, a
população prisional aumenta 5% ao ano. O principal responsável por este
crescimento são os chamados presos provisórios, categoria que cresceu 55,2% entre
2008 e 2013 e os presos por tráfico. Seriam necessários 265 novos
estabelecimentos apenas para zerar o déficit atual de vagas no país, superior a
200 mil vagas.
O desrespeito dos presos pelas
normas internas de disciplina nos estabelecimentos carcerários está diretamente
vinculado ao sentimento generalizado de que o próprio Estado descumpre frequentemente
as normas básicas da administração prisional. É o Estado que submete o
condenado ao cumprimento de pena irregularmente em distritos policiais, em
celas superlotadas e insalubres, que lhes nega a possibilidade de remissão pelo
trabalho, condições de defesa jurídica e de ressocialização. Como exigir
moralmente a obediência a leis que os Estado mesmo é o primeiro a descumprir?
Os incidentes prisionais são, assim, em larga medida, o reflexo deste
desrespeito generalizado às regras da execução penal no Brasil. O primeiro e
maior passo para controlar os incidentes seria a obediência do poder público às
suas próprias regras.
As mazelas e deficiências do
sistema engendraram a organização dos presos. Ninguém se importava com a demora
nas decisões judiciais, com as doenças, falta de higiene, superlotação, com a
tortura, o ócio, a comida ruim, o mau trato dos familiares, pois “preso tem que
sofrer e pagar pelo que fez”. Vinte anos depois, o resultado desta ausência de
política prisional no país veio com as cabeças decepadas em Manaus (cujas fotos
um amigo local fez questão de me enviar...). As facções cresceram e extrapolaram
os muros dos presídios e hoje disputam nas ruas e unidades prisionais o domínio
do tráfico. Já não pedem mais simplesmente banho de sol ou visitas dos
familiares. Hoje dominam praticamente todos os presídios do país, corrompem o
judiciário e patrocinam campanhas políticas. Um novo pacto, mais sinistro, mantem
a ordem nos presídios. Não são mais os presos que respeitam a autoridade porque
temem perder algumas regalias e facilidades. Hoje quem tem medo e pede a paz
nos presídios é o Estado, que de tão ausente, fez-se dispensável.