Em dois artigos anteriores neste
ano abordamos o tema do impacto da intervenção federal na segurança pública do
Rio de Janeiro, utilizando como fonte os dados oficiais publicados pelo ISP-RJ.
De um modo geral, a conclusão foi de que a maioria dos indicadores estavam em
queda ou estabilizados. A queda, todavia, começara num período anterior à
intervenção e seguia uma tendência generalizada de diminuição criminal nos
Estados, depois de passado o pior momento da recessão de 2014.
A magnitude da queda Carioca,
quando comparada aos demais estados, não chega a ser surpreendente, de modo que
não se pode atribuí-la, necessariamente à intervenção federal, sendo necessário
dados locais das ações para aferir a existência de eventuais impactos.
As pesquisas de opinião
realizadas no RJ sugerem que a população apoia a intervenção, mas que esta
enfrenta bastante resistência em diversos setores sociais, dada a natureza
militar da intervenção e a pouca transparência com relação a metas e meios para
atingi-los. O assassinato da vereadora Marielle Franco e a morte de civis - muitas
crianças – em operações desastradas aumentaram a polarização na sociedade
carioca em relação à intervenção.
Este duelo de versões e
interpretações sobre o que está ocorrendo com a criminalidade após a
intervenção se reflete no uso das estatísticas criminais e, através desta, na
cobertura jornalista sobre o cenário. Enquanto o governo esgrima os dados
oficiais – principalmente de roubo de veículos e de carga – para mostrar que a
criminalidade está em queda e que a responsabilidade é da nova gestão, a
sociedade civil utiliza os dados da plataforma “Fogo Cruzado”, para mostrar
outros aspectos indesejados da intervenção federal.
Como descrito no site da
Instituição, Fogo Cruzado é uma plataforma digital colaborativa que registra denúncias
de tiroteios e violência armada na região metropolitana do Rio. A base de dados
é formada pelas denúncias recebidas pelas redes sociais ou noticiadas pelos meios
de comunicação e é possível acompanhar a evolução dos tiroteios desde julho de
2016. Enquanto os jornais dão bastante destaque aos dados da plataforma, o
governo evita comentá-los, alegando que se tratam de dados não oficiais.
Como mencionado em artigo
anterior, é necessário algum cuidado na utilização dos dados do Fogo Cruzado
pois assim como os dados oficiais, as denúncias variam conforme a propensão à
notificação: a própria intervenção e o uso dos dados da plataforma para avalia-la
pode assim inflacionar a quantidade de denúncias recebidas.
Na tabela abaixo compilei os
dados mensais de tiroteios, presença de agentes públicos no local dos
tiroteios, contagem de mortos e feridos nos eventos, segundo as denúncias
recebidas pelo Fogo Cruzado, de julho de 2016 a junho de 2018.
Acrescentei à tabela quatro
colunas: razão entre mortos e feridos nos tiroteios e as razões entre tiroteios
por agente, mortos por agente e feridos por agente policial presente. Estas
razões são classicamente utilizadas para aferir eventuais excessos nas ações
policiais pela literatura.
Ao final da tabela inclui também
as médias de três períodos: 1) fevereiro a junho de 2017, 2) cinco meses
anteriores à intervenção e 3) média dos cinco meses após, ou seja, fevereiro a
junho de 2018, possibilitando uma comparação dessazonalizada com a primeira
média.
Fonte: plataforma Fogo Cruzado
Os primeiros dados interessantes
surgem nas “razões” destacadas em cores: nos meses anteriores à intervenção
observamos um aumento em todas elas, quando a razão é superior a 1. Assim, por
exemplo, quando analisamos a série histórica de mortos por feridos, há um crescimento
de 41% na comparação com o mesmo período do ano anterior, mas uma certa
estabilidade quando comparamos com as médias dos cinco meses anteriores à
intervenção (apenas 2% de aumento). Observe-se pelos “vermelhos” na tabela que
o pior período, analisando todos os indicadores, parece ter ocorrido entre
julho e dezembro de 2017, e a partir daí observamos alguma melhora relativa.
Há um evidente aumento no número
de denúncias de tiroteio após a intervenção federal (69% ou 40%, dependendo do
período base que se utilize), assim como da presença de agentes nos locais (82%
e 126%). Algo esperado, tendo em vista tanto o aumento na quantidade de
operações quanto da sensibilização da população com relação ao tema.
Note-se, contudo, que a
letalidade das ações parece diminuir, tanto em números absolutos quanto relativos,
quando utilizamos as razões por agente. Usando a comparação dessazonalizada, o
número absoluto de feridos cai 23% enquanto o de mortos cresce 5%. Usando a
comparação com os meses anteriores, o número de feridos cai 10% e o de mortos
8%.
E, na medida em que houve um
aumento da presença de policiais nos eventos, qualquer que seja o período base de
comparação, notamos uma diminuição nos indicadores “tiroteios por agente”, “mortos
por agente” e “feridos por agente”.
Seria interessante analisar os
dados oficiais de letalidade para verificar se eles apontam para a mesma
tendência, mas os dados de letalidade de junho ainda não foram publicados e não
existem dados sobre feridos ou quantidade de policiais presentes nas ações. De
todo modo, tomando apenas os homicídios decorrentes de intervenção policial
publicados pelo ISP, observamos um crescimento no indicador quando comparamos a
série dessazonalizada (média de 96 X 113) e estabilidade quando comparamos com os cinco meses anteriores à intervenção (114 X 113).
Como já manifestado
anteriormente, há várias razões de diferentes naturezas para se criticar a intervenção,
mas isto não quer dizer que nossa análise factual sobre seu impacto nos
indicadores deva ser afetada. É preciso observar os dados com cuidado e
proceder “sine ira et studio”, como recomendava Weber, mesmo contra nossas
convicções íntimas. Do contrário, nossa capacidade de crítica isenta é a primeira
vítima neste fogo cruzado.