Cada sociedade e época escolhem
seus inimigos públicos. Quando olhamos as estatísticas prisionais no tempo,
podemos ver parte desta escolha.
Os dados de perfil prisional refletem
os tipos de crimes mais comuns em cada momento, mas também os medos e
sensibilidade sociais, espelhados nas leis e nas práticas do sistema de justiça
criminal. O que era considerado grave num determinado momento deixa de ser no
seguinte e o que antes era tolerado passa a ser reprimido. Num dia a lei seca
proíbe a bebida alcoólica, no outros estamos divulgando propaganda de cerveja
na televisão.
Na tabela abaixo compilamos as
porcentagens de prisões por natureza criminal no Estado de São Paulo, com base
nos censos penitenciários realizados desde a década de 50 até 2016. Trata-se de
um “censo” das unidades prisionais e não dos presos, como é sabido. E em cada
ano, uma quantidade maior ou menor de unidades prisionais participou do
levantamento. São Paulo tem historicamente um terço da população prisional do
país, de modo que representa uma boa amostra das tendências nacionais, embora
os Estados por vezes tenham suas idiossincrasias. Não obstante estas fragilidades, quando
examinamos a distribuição percentual destes nove delitos no tempo, conseguimos
identificar claramente, digamos assim, o espírito de cada época.
Nos anos 50 e 60 os presos
cumprindo pena por furto predominavam no sistema prisional, chegando a
representar quase metade das naturezas criminais em 1964. O segundo grupo era
formado pelos homicidas, a maior deles movidos por motivos passionais e em
seguida aparecia o grupo dos presos por lesões corporais dolosas. Note-se ainda
a ínfima presença dos condenados por tráfico de drogas. Os dados falam de um
período anterior à disseminação das armas de fogo e das drogas, onde a
população prisional era relativamente pequena e o sistema de justiça criminal
se dava ao luxo de encarcerar pessoas de reduzido potencial ofensivo.
Os anos 70 aos 80 são considerados
anos de explosão da criminalidade no país, que cresceu de modo acelerado e
desorganizado, inflando as periferias dos grandes centros urbanos. Período
marcado pelo desenvolvimento econômico, migração da cidade para o campo,
aumento da população jovem e crescimento das desigualdades sociais, entre
outras transformações sócio econômicas e demográficas.
No sistema prisional, os roubos
vão se tornando mais frequentes do que os furtos e são motivo de mais da metade
das condenações. Aumenta a porcentagem de latrocidas e a de traficantes, ainda
de forma tênue. Em contrapartida, diminuem percentualmente os homicidas e
condenados por lesões corporais dolosas. É possível especular que o crescimento
da violência e da população prisional tenha tornado o sistema de justiça
criminal mais seletivo, passando nesta fase a priorizar crimes mais graves,
deixando parcialmente de lado a investigação e punição de crimes de menor
potencial ofensivo.
Os anos 90 são marcados pelas
crises econômicas e relativa estabilização das tendências demográficas e
sociais e as estatísticas prisionais revelam basicamente uma continuidade das
tendências anteriores. Condenados por lesões corporais e estelionato tornam-se
residuais dentro do sistema. Homicidas estabilizam-se na casa dos 10% da
população prisional enquanto furtadores vão sendo progressivamente substituídos
pelos roubadores.
Fonte: Censos penitenciários / SAP / DEPEN
A última mudança significativa
ocorre por volta dos anos 2000, quando a presença dos traficantes de droga
aumenta abruptamente, passando a representar cerca de um terço da população
prisional paulista. A lei de drogas de 2006, ao não diferenciar entre usuários,
pequenos e grandes traficantes, contribuiu em parte para este resultado. Em
contrapartida ao aumento de “traficantes”, roubadores caem de metade para um
terço dos condenados e furtadores reduzem ainda mais sua presença, para menos
de 20% da população prisional. As condenações por lesões corporais praticamente
desapareceram nos últimos anos. Note-se finalmente que durante praticamente
todo o período os crimes sexuais mantiveram-se em proporções baixas e estáveis.
O sistema prisional passou por
grandes mudanças desde os anos 50. Ele cresce a taxas muito mais aceleradas do
que o crescimento populacional e este aumento foi em parte provocado pelo
crescimento das condenações por tráfico e pelos presos provisórios. Os
criminosos tornaram-se mais jovens e mais violentos e boa parte deles está hoje
vinculada à alguma facção criminosa. Este novo perfil, como discutido, foi em
parte uma escolha da sociedade, que elegeu os traficantes como os novos vilões,
ainda que a maioria deles seja composta de delinquentes primários pegos com
pequenas quantidades de drogas, oferecendo pouco risco à sociedade.
E foi uma escolha ruim.
Analisando as tendências anteriores, observamos que caminhávamos na direção
onde a pena de prisão em regime fechado seria reservada apenas para criminosos
violentos e reincidentes. Como deve ser quando os recursos do sistema prisional
são escassos e existem alternativas mais eficientes à disposição, como as penas
alternativas. Evidência deste fenômeno é a queda progressiva do percentual de
condenados por lesões corporais, estelionatos e furtos. Estas três categorias
juntas chegaram a representar mais de 60% da população prisional e hoje
representam menos de 20%. Houve um entendimento de que o sistema de justiça
criminal deveria focar seus esforços nos homicidas, latrocidas, roubadores e
criminosos sexuais. Em meados dos anos 90 este grupo chegou a representar 77%
das modalidades criminais analisadas, caindo posteriormente para 50%.
O equívoco começou com a Lei de
Drogas, cujo efeito foi contrário ao originalmente previsto, por conta de uma
sociedade (e de um judiciário) atemorizada pelo crescimento da criminalidade.
Enquanto na última década países desenvolvidos optaram por explorar a venda de
maconha para fins recreativos, tomamos a outra direção, inundando cadeias
superlotadas com jovens pegos com quantidades pequenas de drogas, na ponta da
hierarquia do tráfico, com baixíssima periculosidade. Eles são a massa de
manobra das facções prisionais.
Mas como mostram as estatísticas
históricas do sistema prisional, a sociedade e o sistema de justiça criminal
tem a capacidade de mudar estas tendências e retomar o caminho anterior. Não
temos muitos presos e poucas vagas; o problema está em que prendemos mal.
Prisão em regime fechado é para criminosos violentos e reincidentes. Para
grandes traficantes, da alta hierarquia do crime. Ganhamos mais fazendo os
demais pagarem seus erros de maneira mais barata e inteligente.