sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Mercado de drogas obedece às leis da economia?



O tráfico de drogas é um crime diferente dos demais. Nele não há “vítimas”, ou a vítima é a sociedade como um todo, como entendem alguns. Traficantes e usuários estão engajados numa situação similar a de um vendedor e um comprador, que estabelecem uma transação comercial ilícita, de comum acordo.

Neste sentido, talvez seja possível utilizar algumas ferramentas da economia para entender o funcionamento deste mercado. Será que drogas são mercadorias como outras quaisquer e este mercado funciona como outros mercados lícitos? Que forças influenciam a oferta, a demanda e os preços no mercado de drogas?

O gráfico abaixo é encontrado em quase todos os manuais introdutórios de economia e ilustra como o equilíbrio de preços (E) é formado pela intersecção das curvas de demanda (D) e oferta (S). Ilustra também graficamente as situações de escassez e abundância e como elas afetam as quantidades e preços.



Efeito dos ciclos econômicos

Com efeito, existem indícios de que o mercado de drogas segue em alguma medida as leis da oferta e da procura, como outros mercados. No gráfico abaixo vemos a variação trimestral das ocorrências de tráfico de drogas em São Paulo, comparada ao mesmo período do ano anterior. Ocorrências de tráfico são influenciadas pelo esforço policial maior ou menor em cada momento e não são um indicador perfeito da quantidade de drogas comercializada. Todavia, exceto em situações especiais, o esforço policial no combate ao tráfico é mais ou menos constante. Significa dizer que as variações na série de tráfico refletem em sua maior parte as variações na quantidade de drogas em circulação e menos as variações na atividade policial.

Notem-se, por exemplo, as variações negativas encontradas precisamente nos anos de 2003, 2009 e 2014, anos nos quais o país passou por ciclos recessivos, diminuindo renda e empregos.




Como esperado pela teoria, a diminuição da renda durante os ciclos recessivos desloca para baixo a curva da demanda (D) e como esperado isto aparentemente afeta a quantidade de drogas em circulação, como corroborado pelo gráfico acima, se aceitarmos a premissa de que as ocorrências medem razoavelmente o fenômeno. (observe-se de passagem que nos últimos trimestres as variações são negativas, sugerindo que estamos passando por novo ciclo de penúria econômica…).

Segundo a teoria, esta diminuição da renda e da demanda deveria gerar um novo equilíbrio de preços, deslocando o ponto de equilíbrio para baixo. Infelizmente, não temos os dados que comprovem que os preços foram afetados nestes momentos de crise.

Em todo caso, os dados disponíveis sobre ocorrências de tráfico sugerem acima que o mercado de drogas funciona mais ou menos como os outros mercados, diminuindo a quantidade de mercadorias demandadas e em circulação quando a renda cai.

Elasticidade
Existem, contudo, vários fatores que podem afetar o comportamento deste mercado ilícito. Em primeiro lugar, é possível especular que exista uma inelasticidade no consumo com relação ao preço. Explicando melhor: algumas drogas como heroína e crack são altamente viciantes, assim como a nicotina e o álcool (a maconha, especificamente, produz dependência menor do que a nicotina e o álcool). Isto significa que mesmo que o preço aumente - dentro de certo limite - a demanda não será tão afetada, pois os dependentes pagarão  preços maiores  para manter o vício.  Esta inelasticidade do mercado de drogas, portanto, afeta as leis da oferta e da procura. Os viciados manterão a demanda aquecida. Os menos dependentes, contudo, deixarão de consumir. Este grau de elasticidade varia em função do tipo de droga e seu potencial de dependência.

Repressão policial e ciclos de gestão política.
A repressão policial é outro fator que afeta este mercado e os ciclos de maior ou menor repressão não seguem necessariamente os ciclos econômicos. É provável que sigam antes os ciclos eleitorais, quando candidatos e novos governantes prometem “jogar duro” contra o tráfico. Ou ainda a entrada de novos comandantes nas polícias ou a retribuição por alguma ação ousada por parte dos traficantes. Em tese, o aumento da repressão policial ao tráfico desloca a curva da oferta (S) para baixo. Isto implica na diminuição da quantidade de drogas em circulação em virtude do aumento do risco e um deslocamento do ponto de equilíbrio, aumentando o preço das drogas.

Efeito deslocamento
Há um risco aqui de que a elevação demasiada do preço de determinadas drogas estimule o consumidor a trocar de mercadoria, substituindo, por exemplo, a cocaína e a maconha pelo crack. Trata-se de um dano colateral que é preciso levar em conta. A evolução dos equipamentos de segurança contra roubo nos carros fez surgir em alguns países a modalidade de sequestro do motorista, para garantir que o carro possa ser levado. A epidemia de crack no país pode talvez ser explicada não apenas pela diminuição da renda da população (que opta por uma mercadoria mais barata), mas eventualmente  também pelo aumento da repressão ao tráfico, que em tese encarece o preço de todas as drogas.

Outro possível efeito colateral do aumento de preços é a piora na qualidade da droga comercializada. Para manter os preços acessíveis, os traficantes podem “batizar” a droga com outros produtos, prejudiciais à saúde do consumidor.

Com efeito, os dados do sistema de justiça prisional sugerem que traficar ficou mais arriscado nas últimas décadas. Cada vez mais recursos do sistema são utilizados na repressão ao tráfico, crime que representa hoje ⅓ dos motivos de prisão no Brasil. Pela teoria, este fenômeno deveria ter produzido: uma diminuição na oferta de drogas, um aumento nos preços, um deslocamento para o consumo de drogas mais baratas, uma piora na qualidade da droga e uma diminuição nos níveis de consumo. Infelizmente, novamente não existem dados empíricos disponíveis para corroborar estes efeitos.

Repressão policial influencia realmente o mercado de drogas?
Mas é possível imaginar que a repressão policial tenha um impacto reduzido na oferta de drogas. Talvez ela se direcione apenas à uma pequena parcela de pequenos traficantes, deixando a maior parte do mercado intocada. Como não sabemos ao certo o tamanho deste mercado, tampouco sabemos ao certo que parcela é afetada pela repressão policial. Especula-se que as drogas apreendidas pela polícia representem apenas uma pequena parcela das drogas em circulação mas é difícil estimar a quantidade que ela representa.

É preciso levar em conta adicionalmente o gigantesco exército de reserva - jovens que nem trabalham nem estudam - existente nas comunidades pobres. Traficar pode estar se tornando mais arriscado com o tempo em razão da repressão, mas as alternativas no mercado formal são escassas e existe uma grande quantidade de jovens disposta a substituir os que foram presos. A escassez no mercado de trabalho poderia aumentar a propensão ao risco, de modo que a oferta de drogas se manteria constante, não obstante o aumento da repressão.

Monopólios da venda em alguns Estados
Ainda pensando no lado da oferta, o grau de competitividade entre os vendedores também pode afetar o ponto de equilíbrio dos preços. Umas das características do monopólio é que ele tem grande poder de influência sobre os preços. Assim, por exemplo, alguns estudos etnográficos sugerem que a venda de drogas, em especial no atacado, seria praticamente monopolizada em alguns Estados (como São Paulo, onde seria monopolizada pelo PCC) enquanto em outros Estados existiria concorrência entre facções vendedoras.  O monopólio pode criar um preço acima do ponto de equilíbrio, provocado pela ausência de concorrência. Sendo corretas as descrições etnográficas e outros fatores sendo iguais, o preço das drogas deveria ser maior em São Paulo do que, por exemplo, no Rio de Janeiro e outros estados onde a venda de drogas é competitiva.

Uma comparação dos mercados de drogas no Rio e em São Paulo seria muito interessante para verificarmos empiricamente até que ponto o mercado de drogas segue realmente as leis da economia. Os dados da tabela abaixo estão desatualizados, mas servem como um esquema teórico para pensar no que deveria ocorrer com o preço da droga nas duas cidades, usando os supostos teóricos econômicos e dados de algumas poucas pesquisas empíricas.

Fatores que afetam o custo da droga - comparação RJ e SP
Fatores
RJ
SP
preço
renda média domiciliar per capita (IBGE, 2018)
R$ 1.689 
R$ 1.898
> em SP
Porcentagem de estudantes do ensino fundamental e médio das redes municipal e estadual com uso na vida de drogas psicotrópicas em geral (exceto álcool e tabaco) por gênero e faixa etária. Capitais. (Relatório Brasileiro sobre drogas, 2010)
22,3%
23,1%
> em SP
grau de repressão (pensando nos confrontos do tráfico com a polícia)
alto
baixo
> em RJ
grau de monopólio
baixo
alto
> em SP
Proporção de pessoas de 14 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência em trabalhos formais[2018] IBGE -Cidades
65,9%
69,3%
> em RJ

A renda média domiciliar é maior em São Paulo, aumentando a demanda, de modo que o preço deveria ser maior do que no Rio. Também é ligeiramente maior a porcentagem de jovens que já usaram droga na vida, atuando no mesmo sentido. O monopólio do PCC no atacado da droga também contribuiria, finalmente, para aumentar o preço da droga em São Paulo, comparativamente. Por outro lado, o grau de repressão policial maior no Rio de Janeiro, ao menos no que se refere às mortes de traficantes, tornaria a atividade mais arriscada,  diminuindo a oferta e aumentando preços. Mas a proporção de desocupados no Rio é um pouco maior, o que pode contribuir para manter a oferta constante, apesar do risco maior.

No final das contas as diferenças entre as cidades não são tão grandes e talvez os preços se equilibrem, pois os fatores se contrabalançam, atuando ora numa, ora noutra direção. Dificilmente os agentes têm conhecimento destes fatores, de modo a produzir um ajuste fino nos preços. Trata-se de um mercado bastante imperfeito, afetado como vimos pela inelasticidade do consumo, ciclos políticos, monopólios, exército de trabalhadores na reserva, etc.

Para entender o real funcionamento deste mercado seriam necessários mais e melhores informações: estimativas sistemáticas de consumo, por ano e Estado, um banco de dados sobre qualidade e preço mensal das diferentes drogas por Estado, um indicador não enviesado da quantidade de drogas em circulação, detalhes sobre a magnitude das operações policiais de repressão, informações sobre faturamento, número de pessoas envolvidas no tráfico, entre outras. Estas informações são importantes para avaliarmos se as políticas de repressão ou prevenção colocadas em prática pelo Estado para coibir o consumo de drogas funcionam ou não.

No momento inexiste a maior parte destas informações que poderiam fornecer um teste empírico sobre o funcionamento deste mercado e avaliar como as políticas públicas interferem na sua dinâmica. O que podemos fazer é apenas especulação teórica.

De todo modo, mesmo desconhecendo como funcionam estes mercados, as sociedades democráticas definiram à priori que uma boa política pública nesta área deve ter por objetivos, entre outros, reduzir o consumo, reduzir a oferta, reduzir os danos à saúde e reduzir o poderio das organizações criminosas. Não existem pesquisas metodologicamente rigorosas no Brasil para avaliar se estes objetivos estão sendo alcançados. Numa opinião pouco embasada em evidências, à primeira vista diria que caminhamos em sentido contrário. Os otimistas dirão que poderia ser ainda pior...


Instituto Sou da Paz. APREENSÕES DE DROGAS NO ESTADO DE SÃO PAULO. Um raio-x das apreensões de drogas segundo ocorrências e massa. 2018
Bhaskar, V., Robin Linacre, and Stephen Machin. "The economic functioning of online drugs markets." Journal of Economic Behavior & Organization (2017).
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Groshkova, Teodora, et al. "Drug affordability–potential tool for comparing illicit drug markets." International Journal of Drug Policy 56 (2018): 187-196.
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