quinta-feira, 6 de novembro de 2025

“Do baile à cobrança: a mutação do tráfico e o apoio a operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro”

 


Há alguns anos, moradores de favelas cariocas frequentemente manifestavam simpatia — ou pelo menos tolerância — com as organizações de tráfico que passavam a funcionar como provedores informais de bens culturais, econômicos e sociais: bailes funk, facilitação do acesso a serviços alternativos, proteções comunitárias, empregos informais. 

Em troca, as facções armadas ganhavam legitimidade local, ou pelo menos minimizavam a resistência popular à sua presença. No entanto, uma guinada parece estar em curso: diante de uma série de ações policiais de larga escala — como a gigantesca operação realizada nos complexos do Complexo do Alemão e da Complexo da Penha, no Rio de Janeiro — pesquisas de opinião apontam suporte majoritário das comunidades às intervenções do estado. 

Esse fenômeno levanta hipóteses de causalidade: será que o tráfico mudou de perfil, se aproximando do tipo de comportamento das milícias, com cobrança de taxas por internet, gás, TV a cabo, transporte alternativo, barracas e “pedágios” sobre moradores e comerciantes? E será essa mudança econômica-operacional parte da razão pela qual o apoio às operações policiais aumentou entre os próprios moradores das favelas? Ao mesmo tempo, quais alternativas explicativas devem ser consideradas? Este artigo reúne evidências recentes e avalia a hipótese da “milicialização do tráfico”, juntamente com contrapontos e hipóteses alternativas.

Apoio crescente às operações policiais

Os dados mais recentes sobre a megaoperação de 28 outubro 2025 — que deixou cerca de 121 mortos — revelam que, contrariamente à expectativa de retaliação massiva ou medo generalizado, a população do Rio de Janeiro manifestou apoio significativo às ações policiais. Uma pesquisa do instituto AtlasIntel apontou 62% de aprovação entre os moradores do Rio, e esse índice saltou para cerca de 88% entre os habitantes de favelas. (Financial Times) Esse apoio elevado entre moradores de favelas — território tradicionalmente controlado por facções do tráfico — é um dado relevante para a hipótese aqui estudada.


A hipótese: tráfico que vira milícia e erosão do “consenso comunitário”

A hipótese aqui é que, nos últimos anos, parte das facções — em especial no Rio de Janeiro — passou por uma metamorfose que as aproxima do modus operandi das milícias: controle territorial, cobrança de taxas ou tarifas clandestinas, oferta ou imposição de serviços (internet, TV a cabo pirata, gás, transporte clandestino), e ação coercitiva contra quem se opõe. Essa “milicialização” implicaria menos tolerância social e mais resistência popular — o que tornaria mais viável o apoio às operações policiais como expressão de desejo por alguma liberação desse domínio armado.

Há várias evidências que empurram nessa direção:

  • Estudos recentes, como o relatório Fundação Heinrich Böll “Milícias, facções e precariedade: um estudo comparativo…” demonstram que em territórios periféricos do Rio, as dinâmicas de controle de facções e milícias variam, mas em muitos casos há imposição de taxas e restrições à economia formal local. (ResearchGate)

  • Em termos de tráfico, há relatos jornalísticos de que a facção Comando Vermelho (CV) passou a atuar também na cobrança de serviços de internet/clandestina (“gatonet”), gás, transporte e outros “pedágios” em favelas que antes estavam sob disputas ou sob controle direto.

Sob esse prisma, o contrato social entre comunidade e grupo armado muda: deixa de haver apenas tolerância ou cumplicidade tácita para haver cobrança direta, desgaste econômico e opressão territorial. Isso pode gerar ressentimento, cansaço ou desejo de intervenção do estado e assim explicar o apoio elevado às operações.

Evidências contrárias e hipóteses alternativas

Entretanto, embora a hipótese seja atraente, ela não explica tudo sozinha e há fatores que precisam ser ponderados.

Cansaço com a violência armada em geral: A população de favelas convive cotidianamente com tiroteios, mortes, barricadas, interrupções de serviços e alto nível de insegurança. Esse desgaste pode levar a uma mudança de preferência: “prefiro policiais a confronto permanente”. Ou seja, o apoio à operação pode refletir o desejo de restauração da ordem — independentemente da origem do controle violento. 

Limitações de amostragem e definição: Os percentuais altos (≈ 88% de apoio entre favelas) são frequentes em notas de imprensa, mas os relatórios completos de metodologia não estão publicamente detalhados no momento. Portanto, não se pode afirmar com segurança que essa é uma tendência estável ou generalizável para todas as favelas.


Síntese e implicações

Consolidando os pontos acima: os dados mostram um apoio significativo às operações policiais entre moradores de favelas cariocas. A hipótese é que isso decorre, ao menos em parte, da transformação dos grupos de tráfico em organizações de tipo miliciano (com cobrança de serviços, taxas, regime de dominação territorial). 

Se o tráfico realmente adota práticas de milícia transformando o “serviço” em “cobrança”, então a lógica comunitária muda: o que antes podia ser tolerado como “mal menor” agora passa a ser percebido como exploração, e o Estado (ou a polícia) passa a ser visto como agente de intervenção desejado. Esse descolamento entre morador e grupo armado pode explicar o apoio maior às operações.

Por outro lado, se o apoio é principalmente reflexo de trauma, insegurança, espetáculo midiático ou esperança de mudança, então o aspecto da cobrança direta (internet, gás, transporte) talvez seja menos decisivo do que a urgência por ordem e pacificação.

Uma política eficaz deveria considerar  converter o apoio social gerado por esses eventos em ganhos institucionais de longo prazo para as comunidades. Esse apoio pode se converter em informações de inteligência através de denùncias e outros contatos, sobre rotina, paradeiro, organização, modus operandi das facções. 

Em conclusão, a mudança de opinião nas favelas cariocas que agora se inclina mais favoravelmente à intervenção estatal pode refletir uma importante virada: não apenas o desejo de “polícia no lugar do crime”, mas, mais profundamente, o esgotamento de um modelo de dominação que deixou de render benefícios visíveis à comunidade e passou a extrair deles. Essa mudança, se verdadeira,  exige que políticas públicas aproveitem a janela de oportunidade para consolidar presença estatal, serviço público e economia formal como antídotos à “milicialização” e à repetição cíclica de violência e controle armado.

terça-feira, 4 de novembro de 2025

O Cerco Invisível: Como Capturar Chefes do Crime Organizado em Territórios Armados sem Entrar em Guerra

 


Tulio Kahn

O cumprimento de um mandado de prisão, algo que deveria ser rotineiro em qualquer Estado de Direito, transformou-se no Brasil em uma das missões mais arriscadas e complexas da segurança pública. Em parte das grandes cidades brasileiras, sobretudo no Rio de Janeiro, lideranças criminosas vivem entrincheiradas em comunidades sob domínio armado, onde o Estado só entra sob fogo cerrado. Executar a lei nesses territórios significa desencadear uma pequena guerra urbana.

Não é um problema exclusivamente brasileiro. México, Colômbia, El Salvador, África do Sul e Filipinas enfrentam dilemas semelhantes: como capturar chefes do crime organizado que se escondem entre civis, cercados por comparsas com armamento pesado e ampla rede de proteção? A resposta, aprendida a duras penas por diversos países, é que o confronto direto é a pior das estratégias — e que inteligência, paciência e precisão valem mais do que blindados e helicópteros.

Em cidades como o Rio, a execução de ordens judiciais depende da avaliação do risco tático — se a incursão for em área conflagrada, a operação exige aparato bélico, autorização judicial específica e comunicação prévia ao Ministério Público, conforme determinou o Supremo Tribunal Federal na ADPF 635.

A letalidade das operações  é alta: só em 2023, foram 3.151 mortos por intervenções policiais no país, a maior parte em regiões de vulnerabilidade social. Pesquisas indicam que tais incursões raramente resultam na prisão do alvo principal, mas em perdas humanas e desgaste institucional.

Poucos países enfrentaram organizações criminosas tão poderosas quanto a Colômbia dos anos 1990. O confronto entre o Estado e os cartéis de Medellín e Cali ensinou que nenhuma força é eficaz sem inteligência. Após a sangrenta “Operación Orión”, em 2002, Medellín abandonou incursões massivas e investiu em vigilância aérea, interceptações e infiltrações. O resultado foi a captura de dezenas de líderes com mínimo confronto direto.

A Itália seguiu caminho semelhante. As prisões de chefes da máfia siciliana, como Bernardo Provenzano e Matteo Messina Denaro, foram precedidas por anos de investigações financeiras e de monitoramento de familiares e intermediários. Nenhum tiro foi disparado. “Desarticular o entorno é mais eficaz que invadir o reduto”, dizia Giovanni Falcone, magistrado assassinado pela Cosa Nostra em 1992, cuja metodologia inspirou a atual Direzione Investigativa Antimafia (DIA).

Nos Estados Unidos, o FBI adota abordagem combinada: task forces interagências, infiltrações e capturas em locais neutros, como estradas ou estacionamentos. A prioridade é preservar a vida e a integridade processual, evitando confrontos em áreas civis.

No Brasil, o desafio é mais intricado porque as facções controlam espaços densamente povoados. Nesses territórios, o cumprimento de um mandado de prisão não é apenas uma questão policial, mas política, social e moral.

O Estado enfrenta um dilema: se não entra, perde autoridade; se entra, pode ser acusado de massacre. Por isso, ao invez de apenas reduzir o danos das operações, como pretende a ADPF 365, propomos uma mudança tática baseada em “capturas inteligentes” — operações de precisão baseadas em dados e inteligência, em vez de ocupações generalizadas e pontuais. Elas envolvem monitorar rotinas, rastrear comunicações, identificar deslocamentos previsíveis e agir fora da área conflagrada. Essa tática, já usada por unidades de elite, reduz drasticamente os riscos. El algum momento o criminoso sai da comunidade e nesta ocasião ele fica vulnerável.

Tecnologias como drones, reconhecimento facial,  análise de rede social, escutas telefônicas, leitores de placas, etc.  vêm ampliando a capacidade de identificar essas oportunidades. A militarização do enfrentamento, embora popular entre parte da opinião pública, como mostraram as pesquisas no caso da Operação Contenção no Complexo do Alemão, mostrou-se ineficaz e contraproducente: 121 mortos, nenhum deles alvo dos mandados, 4 policiais mortos, vazamento da operação, interrupção das aulas e dos negócios, falhas na pericia das cenas de crime.

Para além de 40 anos da política do “sobe-mata-desce” no Rio de Janeiro, que não parece ter contribuído para a expansão do CV, o caso mexicano é também emblemático desta estratégia: após quase duas décadas de “guerra ao narcotráfico”, o país acumula mais de 360 mil mortos e o poder dos cartéis permanece intacto (INEGI, 2023).

“O Estado não pode competir com o crime no terreno da brutalidade”, alerta o jurista Eugenio Zaffaroni. “A vitória só vem quando o Estado se mostra racional, não quando se iguala ao inimigo.” Essa racionalidade exige mudança cultural: ver a captura não como ato heroico de combate, mas como resultado de um processo de inteligência, paciência e profissionalismo.

A experiência internacional sugere que cumprir mandados de prisão com eficiência e legalidade depende menos de armamento e mais de integração, dados e legitimidade perante a comunidade. Um plano estratégico nacional poderia seguir cinco eixos:

  1. Unidades especializadas em capturas de alto risco, pequenas e interagências, com treinamento em operações de precisão, negociação e proteção de provas;
  2. Integração entre polícias e órgãos de inteligência financeira, para atingir as redes econômicas das facções;
  3. Uso de tecnologia e vigilância discreta, priorizando capturas fora das áreas dominadas;
  4. Critérios de sucesso baseados % de cumprimento de mandados de prisão, e não em número de mortes, prisões ou apreensões;
  5. Transparência e controle social, com auditoria independente e prestação de contas após cada operação.

O modelo aproxima-se da lógica das forças antimáfia italianas e das task forces do FBI, adaptadas à realidade brasileira. Não se trata de proteger criminosos, mas de profissionalizar o Estado.

O Brasil vive uma encruzilhada. De um lado, a pressão pública por resultados rápidos e o apoio às incursões que acumulam corpos; de outro, o imperativo de respeitar o Estado de Direito e  o princípio da eficiência . Cumprir um mandado de prisão em uma favela não pode ser uma sentença de morte — nem para o criminoso, nem para o morador, nem para o policial. O verdadeiro desafio é restaurar o monopólio legítimo da força sem transformar o cumprimento da lei em guerra.

As soluções existem e estão documentadas em experiências internacionais. Falta decisão política para implementá-las, coragem institucional para reformar estruturas arcaicas e visão estratégica para enxergar além do confronto. Enquanto o Estado insistir em invadir territórios com blindados, o crime continuará a conduzir seus negócios como de costume, substituindo facilmente os mortos do dia anterior.

 

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