Tulio Kahn
O cumprimento de um mandado de prisão, algo que
deveria ser rotineiro em qualquer Estado de Direito, transformou-se no Brasil
em uma das missões mais arriscadas e complexas da segurança pública. Em parte
das grandes cidades brasileiras, sobretudo no Rio de Janeiro, lideranças criminosas vivem entrincheiradas
em comunidades sob domínio armado, onde o Estado só entra sob fogo
cerrado. Executar a lei nesses territórios significa desencadear uma pequena
guerra urbana.
Não é um problema exclusivamente brasileiro.
México, Colômbia, El Salvador, África do Sul e Filipinas enfrentam dilemas
semelhantes: como capturar chefes do crime organizado que se escondem entre civis,
cercados por comparsas com armamento pesado e ampla rede de proteção? A
resposta, aprendida a duras penas por diversos países, é que o confronto direto é a pior das estratégias
— e que inteligência, paciência e precisão valem mais do que blindados e
helicópteros.
Em cidades como o Rio, a execução de ordens
judiciais depende da avaliação do risco tático — se a incursão for em área
conflagrada, a operação exige aparato bélico, autorização judicial específica e
comunicação prévia ao Ministério Público, conforme determinou o Supremo
Tribunal Federal na ADPF 635.
A letalidade
das operações é alta: só em 2023,
foram 3.151 mortos por intervenções policiais no país, a maior parte em regiões
de vulnerabilidade social. Pesquisas indicam que tais incursões raramente
resultam na prisão do alvo principal, mas em perdas humanas e desgaste
institucional.
Poucos países enfrentaram organizações criminosas
tão poderosas quanto a Colômbia
dos anos 1990. O confronto entre o Estado e os cartéis de Medellín e Cali
ensinou que nenhuma força é eficaz sem
inteligência. Após a sangrenta “Operación Orión”, em 2002, Medellín
abandonou incursões massivas e investiu em vigilância aérea, interceptações e
infiltrações. O resultado foi a captura de dezenas de líderes com mínimo confronto direto.
A Itália
seguiu caminho semelhante. As prisões de chefes da máfia siciliana, como
Bernardo Provenzano e Matteo Messina Denaro, foram precedidas por anos de
investigações financeiras e de monitoramento de familiares e intermediários.
Nenhum tiro foi disparado. “Desarticular o entorno é mais eficaz que invadir o
reduto”, dizia Giovanni Falcone, magistrado assassinado pela Cosa Nostra em 1992,
cuja metodologia inspirou a atual Direzione Investigativa Antimafia (DIA).
Nos Estados Unidos, o FBI adota abordagem
combinada: task forces interagências, infiltrações e capturas em locais
neutros, como estradas ou estacionamentos. A prioridade é preservar a vida e a integridade
processual, evitando confrontos em áreas civis.
No Brasil, o desafio é mais intricado porque as
facções controlam espaços densamente
povoados. Nesses territórios, o cumprimento de um mandado de prisão não
é apenas uma questão policial, mas política,
social e moral.
O Estado enfrenta um dilema: se não entra, perde
autoridade; se entra, pode ser acusado de massacre. Por isso, ao invez de
apenas reduzir o danos das operações, como pretende a ADPF 365, propomos uma
mudança tática baseada em “capturas
inteligentes” — operações de precisão baseadas em dados e inteligência,
em vez de ocupações generalizadas e pontuais. Elas envolvem monitorar rotinas,
rastrear comunicações, identificar deslocamentos previsíveis e agir fora da
área conflagrada. Essa tática, já usada por unidades de elite, reduz
drasticamente os riscos. El algum momento o criminoso sai da comunidade e nesta
ocasião ele fica vulnerável.
Tecnologias como drones, reconhecimento facial, análise de rede social, escutas telefônicas,
leitores de placas, etc. vêm
ampliando a capacidade de identificar essas oportunidades. A militarização do
enfrentamento, embora popular entre parte da opinião pública, como mostraram as
pesquisas no caso da Operação Contenção no Complexo do Alemão, mostrou-se ineficaz e contraproducente: 121
mortos, nenhum deles alvo dos mandados, 4 policiais mortos, vazamento da
operação, interrupção das aulas e dos negócios, falhas na pericia das cenas de
crime.
Para além de 40 anos da política do “sobe-mata-desce”
no Rio de Janeiro, que não parece ter contribuído para a expansão do CV, o caso
mexicano é também emblemático desta estratégia: após quase duas décadas de
“guerra ao narcotráfico”, o país acumula mais de 360 mil mortos e o poder dos cartéis permanece intacto (INEGI,
2023).
“O Estado não pode competir com o crime no terreno
da brutalidade”, alerta o jurista Eugenio Zaffaroni. “A vitória só vem quando o
Estado se mostra racional, não quando se iguala ao inimigo.” Essa racionalidade
exige mudança cultural: ver a
captura não como ato heroico de combate, mas como resultado de um processo de
inteligência, paciência e profissionalismo.
A experiência internacional sugere que cumprir mandados de prisão com eficiência e
legalidade depende menos de armamento e mais de integração, dados e
legitimidade perante a comunidade. Um plano estratégico nacional poderia seguir
cinco eixos:
- Unidades especializadas em capturas de alto
risco,
pequenas e interagências, com treinamento em operações de precisão,
negociação e proteção de provas;
- Integração entre polícias e órgãos de
inteligência financeira, para atingir as redes econômicas das
facções;
- Uso de tecnologia e vigilância discreta, priorizando capturas fora
das áreas dominadas;
- Critérios de sucesso baseados % de cumprimento
de mandados de prisão, e não em número de mortes, prisões ou
apreensões;
- Transparência e controle social, com auditoria independente
e prestação de contas após cada operação.
O modelo aproxima-se da lógica das forças antimáfia
italianas e das task forces do FBI, adaptadas à realidade brasileira. Não se
trata de proteger criminosos, mas de profissionalizar
o Estado.
O Brasil vive uma encruzilhada. De um lado, a
pressão pública por resultados rápidos e o apoio às incursões que acumulam
corpos; de outro, o imperativo de respeitar o Estado de Direito e o princípio da eficiência . Cumprir um
mandado de prisão em uma favela não pode ser uma sentença de morte — nem para o
criminoso, nem para o morador, nem para o policial. O verdadeiro desafio é restaurar
o monopólio legítimo da força sem
transformar o cumprimento da lei em guerra.
As soluções existem e estão documentadas em
experiências internacionais. Falta decisão política para implementá-las,
coragem institucional para reformar estruturas arcaicas e visão estratégica
para enxergar além do confronto. Enquanto o Estado insistir em invadir
territórios com blindados, o crime continuará a conduzir seus negócios como de
costume, substituindo facilmente os mortos do dia anterior.
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