segunda-feira, 17 de novembro de 2025

O conceito de Crime Organizado Territorial

 O fenômeno do crime organizado no Brasil passou, nas últimas décadas, por uma transformação que exige novas categorias analíticas e jurídicas para ser compreendido. As facções que hoje controlam territórios urbanos, administram economias paralelas e exercem funções coercitivas sobre populações inteiras já não se enquadram no modelo tradicional de organizações criminosas previsto pela Lei 12.850/2013. Tampouco podem ser adequadamente descritas pela noção de “organizações ultraviolentas” utilizada pelo PL 5.582/2025, que recorre a uma linguagem descritiva, porém pouco precisa do ponto de vista sociológico e jurídico. Entendo que a solução conceitual mais consistente é adotar a categoria de Crime Organizado Territorial (COT), que não apenas reflete melhor o funcionamento real dessas estruturas, como também se alinha a tendências internacionais consolidadas, especialmente os modelos da Itália e da Colômbia.

O ponto de partida é reconhecer que nem toda organização criminosa opera territorialmente ou exerce poder armado com impacto direto sobre o cotidiano de comunidades. O crime organizado brasileiro contemporâneo combina três dimensões que, juntas, configuram um fenômeno distinto: a ocupação coercitiva de territórios, a presença de capacidade militar relevante e a substituição parcial de funções estatais. O controle territorial não é apenas um traço operacional: ele produz uma forma de “governança criminosa”, em que normas, regulações e formas de resolução de conflitos passam a ser determinadas por atores ilegais, e não por instituições públicas. A capacidade bélica, por sua vez, garante a sustentabilidade desse domínio. Ela permite confrontos diretos com forças de segurança, impede a entrada do Estado em áreas inteiras e sustenta um ambiente de coerção constante. Finalmente, a substituição funcional do Estado – por meio da cobrança de taxas, do controle de serviços, ou da gestão da segurança local – confere a esses grupos um poder sociopolítico que ultrapassa em muito a criminalidade comum.

Essas dimensões do COT aproximam o caso brasileiro das experiências italianas com a associazione mafiosa e da legislação colombiana sobre Grupos Armados Organizados. A Itália foi pioneira ao reconhecer que a máfia não podia ser tratada como mera associação criminosa. O diferencial não estava no tipo de crime cometido, mas na capacidade do grupo de dominar territórios e produzir sujeição coletiva. A definição italiana consagrou a ideia de que o poder mafioso é um poder social: ele se sustenta pela força de intimidação, pela ocupação de espaços e pela produção de silêncio e consentimento forçado. A Colômbia, por sua vez, enfrentou grupos com capacidade militar significativa, que não apenas participavam de economias ilícitas, mas disputavam governança de áreas inteiras. Lá, tornou-se necessário distinguir organizações criminosas comuns das estruturas com controle territorial armado – os chamados GAO. Essa distinção permitiu ao Estado colombiano formular políticas coerentes com o risco real de cada grupo, evitando tratar fenômenos estruturais como se fossem equivalentes a redes criminosas convencionais.

No Brasil, contudo, a Lei 12.850 não distingue essas modalidades. Ela agrupa, sob o mesmo rótulo de “organização criminosa”, grupos empresariais dedicados à lavagem de dinheiro, redes de corrupção administrativa, quadrilhas especializadas em crimes financeiros e estruturas territorializadas que desafiam diretamente o Estado. Do ponto de vista sociológico, essa homogeneidade é problemática: ela impede que se reconheça que certos grupos exercem, de fato, uma soberania informal sobre porções do território nacional. Do ponto de vista das políticas públicas, essa ausência de distinção gera respostas equivocadas: a polícia investiga grupos territorializados com a mesma lógica de investigação usada para crimes econômicos; o sistema penitenciário não diferencia presos com potencial de comando extramuros; o Ministério Público enfrenta desafios em justificar medidas excepcionais porque a lei não explicita a natureza diferenciada desses grupos; e o próprio Estado não consegue organizar suas estratégias de enfrentamento por níveis de risco.

O PL 5.582/2025 acerta ao reconhecer a existência de organizações criminosas ultraviolentas, mas falha ao transformar essa percepção em categoria jurídica aplicável. O termo “ultraviolento” captura a dimensão bélica, mas ignora a territorialidade e a governança criminosa – justamente os elementos que diferenciam organizações convencionais de estruturas que competem com o Estado pelo controle social. Além disso, a categoria proposta pelo PL carece de critérios objetivos e verificáveis. A noção de “ultraviolência” é vaga, depende de interpretação e não garante segurança jurídica. O resultado é que medidas duras propostas pelo PL podem ser aplicadas de forma excessivamente ampla ou, ao contrário, de modo insuficiente, já que o texto não define com precisão o fenômeno que visa enfrentar.

É justamente por isso que o conceito de Crime Organizado Territorial se mostra superior. Ele incorpora os principais consensos da sociologia do crime organizando: a centralidade do território, a relevância do poder armado e a natureza governante da atividade criminosa. Ele permite distinguir, de forma clara e objetiva, organizações que atuam como empresas ilegais daquelas que atuam como poderes paralelos. Ao adotar territorialidade como eixo analítico, essa tipificação identifica os grupos que representam ameaça direta à soberania estatal, à segurança pública e à vida cotidiana das comunidades.

A mudança necessária, nesse sentido, é aperfeiçoar a Lei 12.850/2013 para incluir essa nova categoria. Alterar essa lei, ao inves de criar um novo diploma legal, garante coerência sistêmica, já que ela é a base de todo o arcabouço jurídico contra o crime organizado. Também permite utilizar a infraestrutura jurídica já consolidada, como os instrumentos de investigação, as medidas cautelares e os mecanismos de cooperação internacional. Incluir o COT dentro da lei atual é, portanto, um modo de atualizar o marco jurídico sem fragmentar ainda mais o sistema, evitando sobreposição de normas, conflitos de interpretação e lacunas operacionais. Dentro da própria Lei 12.850, é possível prever penas, procedimentos jurídicos e tratamentos penais, etc. distintos aos casos que se enquadrem como COT.

Ao comparar a definição sociológica de COT com as referências internacionais e com a legislação brasileira atual, fica claro que a incorporação desse conceito não é apenas um aperfeiçoamento técnico, mas uma necessidade analítica e institucional. O Brasil enfrenta grupos que exercem controle territorial armado, administram economias locais, confrontam o Estado e produzem formas de governança criminosa comparáveis àquelas observadas em regiões sob influência mafiosa ou paramilitar. A Lei de Organizações Criminosas, tal como se encontra, não reconhece essa especificidade. O PL 5.582, embora avance na descrição do problema, tampouco oferece uma categoria suficientemente robusta. A adoção do Crime Organizado Territorial preencheria essa lacuna, permitindo compreender e enfrentar o núcleo mais perigoso do crime organizado brasileiro com maior precisão, racionalidade e legitimidade democrática.

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