Explosão da criminalidade ou ano base atípico?
Ouvi recentemente um conceituado
comentarista no rádio alarmado com as taxas de crescimento criminal em São
Paulo em outubro, comparando com o ano anterior. Especialista em seguros, o
comentarista alertava que se a Secretaria de Segurança Pública não fizesse
nada, as seguradoras seriam obrigadas a aumentar o valor dos seguros de
veículos, diante da explosão da criminalidade.
Não tenho mandato para defender a
SSP – embora ainda faça parte do Conselho Estadual de Segurança – mas o alarde
é parcialmente injusto. Tecnicamente, a variação explosiva dos índices de 2002
para 2021 pode ser constatada e não há erro formal no cálculo do comentarista.
Mas os manuais de estatísticas
nos ensinam - inclusive o que publiquei
quando coordenador de análise da secretaria – que ao comparar períodos não
devemos usar como período base um momento que seja atípico, tanto para cima
quando para baixo.
E, como todos sabemos, o ano de 2020
esteve longe de ser típico, pelo menos desde os meados de fevereiro. A epidemia
provocou mudanças bruscas e repentinas na rotina e diversos fenômenos sociais e
econômicos foram fortemente afetados por essa mudança de rotina. Como eu e
dezenas de outros tivemos a oportunidade de mostrar, a epidemia produziu
alterações significativas em boa parte dos crimes, em geral, atuando para
reduzi-los drasticamente. Crimes são “atividades de rotina“ e estão altamente
correlacionados às oportunidades, como a disponibilidade de alvos. Antes mesmos das avaliações de impacto, já antecipávamos
que este enorme experimento natural fosse produzir grandes impactos nas séries
criminais. (assim como já sabemos que a evasão escolar, desemprego e aumento de
armas em circulação cobrarão seu preço no futuro).
Igualmente, antecipávamos que
mais cedo ou mais tarde, parte da tendência anterior retornaria à média, uma
vez que a rotina se reestabelecesse. Muitos crimes, assim, se movimentariam na
forma de “V” ou “U’, conforme o retorno fosse mais rápido ou vagaroso. Alguns
ainda apresentam forma de “L” e não retornaram ao patamar anterior. A sucessão de ondas e de aberturas e
fechamentos da economia e das atividades sociais poderia provocar movimentos em
“W” e assim por diante. Qualquer que
fosse o movimento, ficou claro que as séries históricas de crimes ficariam
bastante prejudicadas para fins de análise. Para garantir alguma comparabilidade,
sugeri que as taxas fossem calculadas a partir da população em circulação nas
ruas e não com base na população residente: calculadas desta forma, algumas
taxas que pareciam ter baixado na verdade tiveram risco relativo aumentado.
O fato é que os analistas
precisarão decidir daqui por diante – e não apenas os analistas criminais, mas
também as demais áreas mais afetadas pelo COVID – como farão para garantir um
mínimo de comparabilidade nas séries históricas. A alternativa mais simples talvez
seja apenas ignorar os dados coletados durante a epidemia (quando começa e
quando termina é algo que precisaria ser analisado localmente). Em suma, adotar
como período base o ano de 2019.
No exemplo abaixo tomamos as
estatísticas criminais de São Paulo, de janeiro a outubro de cada ano, e
analisamos as variações em 2021, primeiro tomando o ano de 2020 como base e
depois adotando o ano de 2019 como base. As tendências, como esperado, são
bastante distintas em alguns casos.
Comparando como fez o
comentarista os dados de 2021 com 2020, vemos um aumento de 9,4% no total de
crimes, depois de uma queda abrupta de 21,7% no ano anterior. Furtos outros e
furto de veículos – que foram bastante afetados durante a epidemia – mostram crescimento
entre 17 e 20% neste ano. Roubo de veículos crescem 3,1% e roubos outros 2,7%.
Em queda digna de nota em 2021, apenas os homicídios dolosos (-3,2%) e os
latrocínios (-9,5%). Curiosamente, os dois crimes que tiveram um ligeiro
crescimento durante a pandemia.
O que acontece quando retiramos o
ano de 2020 e utilizamos 2019 como base? Como esperado, as tendências são
bastante diferentes: ao invés de subir, observa-se uma queda geral no total de
crimes (-14,4%). Furtos e furtos de veículos têm quedas de 14% e os roubos de
veículos – preocupação do nosso comentarista – caem nada menos do que 31%. (sim,
usem este dado se a seguradora quiser aumentar o valor do seu seguro).
Os homicídios apresentam um leve
aumento da ordem de 2,5% e os latrocínios uma que da -6,6%). Ao contrário do
quadro anterior, todos os crimes tem queda, com a exceção de dois.
Como se observa, há uma enorme
diferença na interpretação das tendências criminas, conforme adotemos 2019 ou
2020 como ano base de comparação para as variações. A comparação com 2020 é
formalmente correta, mas provavelmente injusta. Creio que a melhor recomendação
prática seja calcular as variações das duas maneiras e incluir uma grande nota
de rodapé justificando e explicando a excepcionalidade do período da pandemia.
De todo modo, é importante fornecer o quadro completo para que os agentes possam
tirar suas próprias conclusões sobre a situação. E isto não apenas com as
estatísticas de criminalidade, mas com as econômicas, sociais, sanitárias e
todas que tendem a flutuar no curto prazo e foram afetadas pelas mudanças na
rotina.
Omitir a epidemia pode induzir a
erro. Pelo menos nos meus modelos, 2020 e o período mais sério da epidemia
sempre serão considerados “outliers” ou pontos fora da curva que precisarão ser
modelados. Se isso não foi um “outlier”, não sei o que seria, talvez um cataclismo
nuclear. Caso contrário, nossas
predições (além do bolso) serão as grandes prejudicadas.