quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Índice de Criminalidade: o IBOVESPA da segurança pública



O crime está caindo ou aumentando? Onde há mais crimes? São perguntas relativamente simples à primeira vista. Mas que podem receber respostas diferentes, dependendo, por exemplo, do tipo de delito escolhido para representar o conceito de “crime” ou do período de comparação utilizado. Estranhamente, nos sites das secretarias de segurança os crimes estão invariavelmente caindo e nos jornais quase sempre aumentando, embora ambos estejam comentando tendências do mesmo período e lugar. Do mesmo modo, a cidade ou Estado vizinho é sempre mais violenta que a nossa: basta selecionar o indicador adequado.

Foi pensando nestas dificuldades que criei em 1993, em colaboração com Instituto de Matemática e Estatística da USP, o chamado “índice de Criminalidade”. O tal índice basicamente somava as taxas por 100 mil habitantes de homicídios, roubos, furtos e lesões corporais, multiplicava cada taxa por um peso, que era a pena média atribuída ao crime pelo Código Penal e dividia o resultado pelo número de indicadores. A ideia subjacente era ter um indicador agregado que pudesse representar o conceito de “criminalidade”, reduzindo assim um pouco a arbitrariedade na escolha dos indicadores.

O I.C. representava um bom mix de crimes contra a pessoa e contra o patrimônio, dava a cada crime uma importância proporcional à sua gravidade e usava taxas para permitir a comparação entre localidades. Finalmente, órgãos públicos de segurança e órgãos de imprensa poderiam se colocar de acordo com relação às tendências criminais e aos locais mais seguros ou perigosos. Teríamos na segurança algo parecido ao IBOVESPA, sinalizando para a sociedade, de modo resumido, as oscilações na criminalidade e onde morar ou abrir negócios com segurança. Uma espécie de IDH da segurança.

A fórmula do I.C é dada por:
Equação 1- Fórmula do  I.C



                Onde
POP (PC) é a população do mês para o qual se deseja construir o índice;
POP (PB) é a população média no ano;
PCi é o número de casos do i-ésimo delito do mês que se deseja construir o índice;
PBi é o número médio de casos do i-ésimo delito ocorrido no ano;
Pi é a pena média em anos do i-ésimo delito.


Com base nesta presunção e nesta fórmula elaborei um ranking dos municípios mais violentos da Região Metropolitana. O resultado é que recebi cartas das Câmaras de Vereadores e Prefeituras de umas quatro cidades, considerando-me persona non grata no município, principalmente dos que encabeçavam a lista dos municípios mais violentos. Guardo as cartas até hoje como lembrança da ingenuidade. Nem os jornais nem os órgãos de segurança adotaram o genial I.C., não obstante a construção do indicador receber na ocasião alguma cobertura da imprensa. Aparentemente, compensava mais poder escolher os crimes e períodos de comparação para mostrar as tendências e locais perigosos conforme o desejo de cada um.

Mais tarde, já na SSP-SP, criamos e divulgamos trimestralmente um indicador agregado chamado “Crimes Violentos”, que é utilizado até hoje, embora tão pouco seja muito explorado nas análises. Ok, concordo que falar de homicídios e roubos é mais concreto e interessante para as pessoas. E que agregar coisas tão diferentes pode ser confuso. Mas ainda acho que existe espaço, de forma complementar, para a construção e utilização dos indicadores agregados, tais como o CVLI – crimes violentos intencionais – sugeridos pela Senasp e utilizado por diversas secretarias de segurança do país.

A divulgação recente de indicadores criminais mensais pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, por Estado, me animou a retomar o projeto do índice de Criminalidade. Vinte e seis anos depois, é possível calcular o IC Nacional, bem como por Estado e mês.

Na falta das lesões corporais dolosas, substitui o indicador pelo “estupro” (com peso 4) e mantive os indicadores anteriores: homicídio doloso (peso 13), roubo de veículos (peso 7), furto de veículos (peso 2.5). Correndo o risco de ser considerado persona non grata em alguns Estados, arrisquei construir o IC com base na fórmula modificada. Os resultados podem ser vistos abaixo.

O pico da criminalidade ocorreu em março de 2017, quando o IC atingiu a marca de 481,6 (trata-se de um número índice e que em si não significa nada. Seu significado surge apenas em comparação com outros períodos ou locais). Em maio de 2019, o valor do IC foi de 338,06, corroborando o processo de queda da criminalidade também revelado quando analisamos os diversos crimes individualmente.





Analisando as variações do IC com relação ao mesmo período do ano anterior, verificamos que pelo nosso “Ibovespa” da segurança, a criminalidade no país teria crescido entre 2015 e junho de 2016 e a partir de então iniciado uma trajetória descendente. Note-se, todavia, que nos últimos meses aparentemente a queda começa a desacelerar: -24.7, -15.8, -15.6, sugerindo uma futura inversão do ciclo criminal.





Finalmente, fazendo o ranking dos Estados (é aqui que mora o perigo...), em maio de 2019 os Estados com maiores Índices de Criminalidade seriam, pela ordem, o Rio de Janeiro, Pernambuco, Rondônia, Rio Grande do Norte e Distrito Federal. Os Estados com menor criminalidade, por sua vez, seriam em maio Santa Catarina, Minas Gerais, Paraíba, Maranhão e Mato Grosso do Sul



Quem tiver curiosidade, pode fazer outras análises através do link abaixo:

Sim, sabemos que se pegarmos as taxas de homicídio isoladamente os resultados seriam diferentes. Mas é justamente aí que reside a utilidade heurística do IC. Ele trata os crimes em conjunto: o DF pode ter taxas baixas de homicídio, mas suas taxas de furto e roubo de veículos são bem acima da média nacional. O contrário acontece com a Paraíba, que tem taxas elevadas de homicídio porem abaixo da média quando levamos em consideração os crimes patrimoniais.  E o IC pondera, lembremos, as taxas criminais por suas respectivas gravidades, conforme estipulado pela sociedade aos estabelecer as penas de prisão.

Acredito que há uma utilidade no monitoramento da criminalidade através do IC. Como sugerido, ele é menos sujeito à manipulação, pois evita que se escolha tal ou qual crime para “provar” tendências. Ele nos lembra também que não basta reduzir homicídios e que os crimes patrimoniais são os que mais preocupam e geram insegurança, e devem ser levados em conta. Ele permite avaliar o desempenho “agregado” das políticas bem-sucedidas de segurança e correlacionar algo que convencionamos chamar de “criminalidade” com outros indicadores sociais e econômicos.

Governos no topo da lista reclamarão enquanto os na parte de baixo aplaudirão. Colegas criminólogos criticarão a escolha dos indicadores e a metodologia de ponderação. Como os índices de inflação, acho que é possível ter vários indicadores agregados medindo o mesmo fenômeno com fórmulas e componentes diferentes. Os dados desagregados estão disponíveis. Quem quiser construa o seu. A sociedade só tem a ganhar com diferentes maneiras de observar o fenômeno.

Referências:

KAHN, Túlio. Metodologia para construção de um índice de criminalidade. In: Os direitos humanos no Brasil. São Paulo: Núcleos de Estudos da Violência -. 1995

de Freitas, Tiarajú Alves, Audrei Fernandes Cadaval, and Glauber Acunha Gonçalves. "A estimação de um índice geral de criminalidade para os municípios do Rio Grande do Sul–IGcrime RS." Ensaios FEE 38.3 (2017): 499-520.







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