O crime está caindo ou aumentando? Onde há mais crimes? São perguntas relativamente simples à primeira vista. Mas que podem receber respostas diferentes, dependendo, por exemplo, do tipo de delito escolhido para representar o conceito de “crime” ou do período de comparação utilizado. Estranhamente, nos sites das secretarias de segurança os crimes estão invariavelmente caindo e nos jornais quase sempre aumentando, embora ambos estejam comentando tendências do mesmo período e lugar. Do mesmo modo, a cidade ou Estado vizinho é sempre mais violenta que a nossa: basta selecionar o indicador adequado.
Foi pensando nestas dificuldades
que criei em 1993, em colaboração com Instituto de Matemática e Estatística da
USP, o chamado “índice de Criminalidade”. O tal índice basicamente somava as
taxas por 100 mil habitantes de homicídios, roubos, furtos e lesões corporais,
multiplicava cada taxa por um peso, que era a pena média atribuída ao crime
pelo Código Penal e dividia o resultado pelo número de indicadores. A ideia
subjacente era ter um indicador agregado que pudesse representar o conceito
de “criminalidade”, reduzindo assim um pouco a arbitrariedade na escolha dos
indicadores.
O I.C. representava um bom mix de
crimes contra a pessoa e contra o patrimônio, dava a cada crime uma importância
proporcional à sua gravidade e usava taxas para permitir a comparação entre
localidades. Finalmente, órgãos públicos de segurança e órgãos de imprensa
poderiam se colocar de acordo com relação às tendências criminais e aos locais
mais seguros ou perigosos. Teríamos na segurança algo parecido ao IBOVESPA,
sinalizando para a sociedade, de modo resumido, as oscilações na criminalidade
e onde morar ou abrir negócios com segurança. Uma espécie de IDH da segurança.
A fórmula do I.C é dada por:
Onde
POP (PC) é a população do mês para o qual se
deseja construir o índice;
POP (PB) é a população média no ano;
PCi é o número de casos do i-ésimo delito do
mês que se deseja construir o índice;
PBi é o número médio de casos do i-ésimo
delito ocorrido no ano;
Pi é a pena média em anos do i-ésimo delito.
Com base nesta presunção e nesta
fórmula elaborei um ranking dos municípios mais violentos da Região
Metropolitana. O resultado é que recebi cartas das Câmaras de Vereadores e
Prefeituras de umas quatro cidades, considerando-me persona non grata no
município, principalmente dos que encabeçavam a lista dos municípios mais violentos.
Guardo as cartas até hoje como lembrança da ingenuidade. Nem os jornais nem os
órgãos de segurança adotaram o genial I.C., não obstante a construção do
indicador receber na ocasião alguma cobertura da imprensa. Aparentemente, compensava
mais poder escolher os crimes e períodos de comparação para mostrar as
tendências e locais perigosos conforme o desejo de cada um.
Mais tarde, já na SSP-SP, criamos
e divulgamos trimestralmente um indicador agregado chamado “Crimes Violentos”,
que é utilizado até hoje, embora tão pouco seja muito explorado nas análises. Ok,
concordo que falar de homicídios e roubos é mais concreto e interessante para
as pessoas. E que agregar coisas tão diferentes pode ser confuso. Mas ainda
acho que existe espaço, de forma complementar, para a construção e utilização
dos indicadores agregados, tais como o CVLI – crimes violentos intencionais –
sugeridos pela Senasp e utilizado por diversas secretarias de segurança do
país.
A divulgação recente de
indicadores criminais mensais pela Secretaria Nacional de Segurança Pública,
por Estado, me animou a retomar o projeto do índice de Criminalidade. Vinte e
seis anos depois, é possível calcular o IC Nacional, bem como por Estado e mês.
Na falta das lesões corporais
dolosas, substitui o indicador pelo “estupro” (com peso 4) e mantive os
indicadores anteriores: homicídio doloso (peso 13), roubo de veículos (peso 7),
furto de veículos (peso 2.5). Correndo o risco de ser considerado persona
non grata em alguns Estados, arrisquei construir o IC com base na fórmula
modificada. Os resultados podem ser vistos abaixo.
O pico da criminalidade ocorreu
em março de 2017, quando o IC atingiu a marca de 481,6 (trata-se de um número
índice e que em si não significa nada. Seu significado surge apenas em
comparação com outros períodos ou locais). Em maio de 2019, o valor do IC foi
de 338,06, corroborando o processo de queda da criminalidade também revelado
quando analisamos os diversos crimes individualmente.
Analisando as variações do IC com
relação ao mesmo período do ano anterior, verificamos que pelo nosso “Ibovespa”
da segurança, a criminalidade no país teria crescido entre 2015 e junho de 2016
e a partir de então iniciado uma trajetória descendente. Note-se, todavia, que
nos últimos meses aparentemente a queda começa a desacelerar: -24.7, -15.8, -15.6, sugerindo uma futura inversão do ciclo criminal.
Finalmente, fazendo o ranking dos
Estados (é aqui que mora o perigo...), em maio de 2019 os Estados com maiores
Índices de Criminalidade seriam, pela ordem, o Rio de Janeiro, Pernambuco, Rondônia, Rio
Grande do Norte e Distrito Federal. Os Estados com menor
criminalidade, por sua vez, seriam em maio Santa Catarina, Minas Gerais, Paraíba, Maranhão e Mato Grosso do Sul
Quem tiver curiosidade, pode
fazer outras análises através do link abaixo:
Sim, sabemos que se pegarmos as
taxas de homicídio isoladamente os resultados seriam diferentes. Mas é
justamente aí que reside a utilidade heurística do IC. Ele trata os crimes em
conjunto: o DF pode ter taxas baixas de homicídio, mas suas taxas de furto e
roubo de veículos são bem acima da média nacional. O contrário acontece com a
Paraíba, que tem taxas elevadas de homicídio porem abaixo da média quando
levamos em consideração os crimes patrimoniais. E o IC pondera, lembremos, as taxas criminais por
suas respectivas gravidades, conforme estipulado pela sociedade aos estabelecer
as penas de prisão.
Acredito que há uma utilidade no
monitoramento da criminalidade através do IC. Como sugerido, ele é menos sujeito
à manipulação, pois evita que se escolha tal ou qual crime para “provar”
tendências. Ele nos lembra também que não basta reduzir homicídios e que os
crimes patrimoniais são os que mais preocupam e geram insegurança, e devem ser
levados em conta. Ele permite avaliar o desempenho “agregado” das políticas bem-sucedidas
de segurança e correlacionar algo que convencionamos chamar de “criminalidade”
com outros indicadores sociais e econômicos.
Governos no topo da lista
reclamarão enquanto os na parte de baixo aplaudirão. Colegas criminólogos
criticarão a escolha dos indicadores e a metodologia de ponderação. Como os
índices de inflação, acho que é possível ter vários indicadores agregados medindo
o mesmo fenômeno com fórmulas e componentes diferentes. Os dados desagregados estão
disponíveis. Quem quiser construa o seu. A sociedade só tem a ganhar com
diferentes maneiras de observar o fenômeno.
Referências:
KAHN, Túlio. Metodologia para
construção de um índice de criminalidade. In: Os direitos humanos no Brasil.
São Paulo: Núcleos de Estudos da Violência -. 1995
de
Freitas, Tiarajú Alves, Audrei Fernandes Cadaval, and Glauber Acunha Gonçalves.
"A estimação de um índice geral de criminalidade para os municípios do Rio
Grande do Sul–IGcrime RS." Ensaios FEE 38.3 (2017):
499-520.