Em 2015 o Conselho Nacional de
Justiça lançou o projeto Audiência de Custódia, onde o preso é apresentado
rapidamente ao juiz, no caso de uma prisão em flagrante. Na audiência – feita na
presença do MP, Defensoria ou advogado do preso, o juiz analisa a legalidade da
prisão, sua permanência e eventuais abusos cometidos no momento da prisão, como
torturas ou maus tratos.
Analisando as estatísticas
coletadas entre 2015 e junho de 2017, no qual foram realizadas 258 mil
audiências de custódia, chama-nos a atenção que em mais de 12 mil casos (4,9%),
houve a alegação do preso de que houve algum tipo de violência no ato de
prisão. Esta porcentagem varia de 0% de casos no Mato Grosso do Sul a 38% dos
casos no Amazonas. Assim, este número provavelmente reflete as distintas
práticas dos sistemas de justiça criminal durante as audiências: é bastante provável
que não haja uma padronização e que em alguns estados os juízes perguntem com
mais insistência sobre os maus tratos ou que em alguns estados as condições
para relatar os maus tratos por parte dos presos sejam mais adequadas do que em
outros.
Podemos imaginar que por um lado,
presos tenham uma tendência a relatar abusos para prejudicar seus algozes, o
que inflacionaria a porcentagem de relatos. Por outro lado, o temor de
represálias em audiências públicas e a falta de anonimato pode levar à
subnotificação de casos. Assim, seja por ausência de padronização no judiciário
ou por razões que podem levar à super ou subnotificação de casos, não é
possível confiar demasiado nas estatísticas produzidas durante as audiências de
custódia para estimar a incidência ou prevalência de maus tratos no Brasil.
Talvez aqui o exame pericial de corpo de delito fosse um indicador mais seguro
do eventual abuso do que testemunhos coletados durante a audiência.
De todo modo, há uma série de
outros indicadores conhecidos que sugerem uma incidência elevada de práticas
policiais abusivas no Brasil, não só com relação aos suspeitos de crimes, mas
com relação à população em geral. Na tabela abaixo reproduzimos alguns destes
indicadores, por Unidade da Federação.
Na primeira coluna vemos a % de
presos que alegaram ter sofrido abusos durante as audiências de custódia (fonte:
CNJ) e na segunda coluna está a taxa de letalidade policial média para os anos
de 2015 e 2016, segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em
ambos os casos trata-se de indicadores de violências policiais com relação a
suspeitos de crime.
Nas três ultimas colunas temos
indicadores de abusos com relação à população em geral e que foram coletados
pela Pesquisa Nacional de Vitimização do Ministério da Justiça, realizada em
2014. A pesquisa de vitimização perguntou quem sofreu agressão física nos
últimos 12 meses e, quando o agressor era conhecido, se se tratava de agressor
policial. Perguntava ainda se o entrevistado teve algum tipo de contato formal
com a polícia no último ano e, caso positivo, se o policial agiu com
agressividade durante o encontro. Observe-se que não são indicadores subjetivos,
mas baseados na experiência dos entrevistados com a polícia. Estamos falando
aqui da população em geral e não apenas de suspeitos de crimes. Finalmente, a
última coluna relata a porcentagem dos entrevistados que afirmam ter medo da
Polícia Militar.
No agregado temos 4,9% dos
suspeitos relatando maus tratos policiais durante as audiências de custódia,
uma taxa de letalidade de 1:7 mortos por 100 mil habitantes, cerca de 2% dos
autores das agressões físicas identificados como policiais, 7,9% dos abordados
relatando que policiais foram agressivos durante a abordagem e 30% da população
relatando ter medo da PM.
Estamos falando de médias e a
situação pode ser bastante pior em alguns estados. A Alegação de maus tratos
está acima de média no Amazonas, Alagoas e Mato Grosso. A taxa de letalidade
policial acima da média no Rio de Janeiro, Amapá, Bahia e Goiás. Agressores
identificados como policiais chegam a 5% no Amapá e contatos agressivos superam
os 12% no Pará, Amazonas e Amapá. Como “resultado” das práticas anteriores e
outras variáveis, a porcentagem dos que temem a polícia supera os 40% em
estados como Sergipe, Ceara e Tocantins. A tabela esta ranqueada pela % dos que
afirmam que tiveram um contato agressivo durante uma abordagem policial.
Note-se que muitos estados que estão na parte superior da tabela estão também
acima da média nos demais indicadores, sugerindo um padrão estadual
generalizado de abuso. No outro extremo da tabela estão Estados onde a situação
geral de abuso está relativamente mais sob controle, exceto por um ou outro
indicador.
De um modo geral, os indicadores
mostram um cenário geral de abusos e agressividades cometidos pelas polícias
brasileiras. Esta agressividade se direciona não apenas aos suspeitos de crimes
como para a população como um todo. Existe grande variabilidade regional,
sugerindo que este tipo de comportamento não é inexorável e que é possível,
através de políticas públicas, melhorar este padrão de tratamento.
São Paulo é um dos estados com
melhor desempenho no que tange à redução da criminalidade, em especial dos
homicídios, mas no que diz respeito aos abusos policiais aparece acima da média
nacional em todos os indicadores, sendo relativamente mais abusiva que a
polícia carioca, campeã de letalidade no país. Em ambos os estados, é possível
que os indicadores criminais fossem menores se tivéssemos um padrão mais
profissional de atuação policial.
A agressividade no tratamento com
a população retira legitimidade e afasta a população das polícias. Informação é
a matéria prima por excelência do trabalho policial e ela não flui quando a
população teme e desconfia da polícia. As polícias se sentem desvalorizadas,
mas esta valorização por parte da sociedade só virá quando as policiais
oferecerem em contrapartida uma atuação eficiente e profissional. Uma população
que se sente desrespeitada tende a não ver com bons olhos investimentos públicos
em instituições que elas mais temem do que respeitam.