terça-feira, 26 de julho de 2022

“Non ducor, duco”

 

Em 9 de julho comemoramos mais uma vez o aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932. O início do movimento deveria coincidir com a data da independência Americana, 4 de julho, mas como sempre no Brasil, houve um pequeno atraso na organização.

O MIS organizou uma exposição sobre o tema e desenterrou um documentário que ajudei a produzir nos anos 90, como responsável pela pesquisa histórica e argumento – uma série de documentários sobre a história do Brasil começando pela Revolução de 30 e que infelizmente foi interrompida na “Intentona Comunista” de 1935, uma vez que documentários históricos não são exatamente o gênero preferido da população. https://www.youtube.com/watch?v=U2aFvcDVc1k&t=56s

Em linhas muitos gerais o episódio resumido é o seguinte. Em 30 Getúlio Vargas toma o poder, prometendo a realização de novas eleições presidenciais e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte em seguida. A eleição prometida, contudo, não vem, o que gera descontentamento na elite política, principalmente em São Paulo, que alternadamente com Minas Gerais, ocupava a presidência na República Velha.

Todo fenômeno histórico é multifacetado e passível de diversas leituras. Além da insatisfação com a postergação das eleições e o alijamento dos paulista do governo federal, podemos agregar a insatisfação com o interventor “forasteiro” escolhido pelo governo central para o Estado, o bombardeamento de São Paulo por tropas federais em 1924, alguma dose de regionalismo  (a velha tese de que SP é a locomotiva que arrasta 26 vagões como peso morto), reflexos da crise econômica de 1929 e demandas de parte da elite liberal por uma nova Constituição – o que explica porque em São Paulo o episódio ficou conhecido como a Revolução Constitucionalista enquanto o governo federal vendia a ideia de que se tratava de uma movimento separatista.

Não é o caso de aprofundar as causas e consequências da Revolução, que como é sabido foi derrotada militarmente, mas que forçou a promulgação da nova constituição em 1934. Gostaria de ressaltar alguns aspectos sociológicos do evento para efeitos de comparação com a conjuntura atual. Em 32, elite e povo se uniram num grande movimento que mobilizou toda a sociedade paulista, algo que talvez só tenha ocorrido novamente no movimento pelas Diretas Já, mas em escala regional: imprensa, fazendeiros, industriais, estudantes, trabalhadores, donas de casa – participaram dos esforços de guerra no front e na retaguarda, neste confronto que matou mais de 2200 brasileiros, quase cinco vezes o número de soldados brasileiros mortos na Segunda Guerra (a estimativa oficial é de 937 mortos em 32). Durante os 3 meses de combate, os estudantes da faculdade de direito aglutinaram-se em batalhões, as famílias doavam ouro para o bem de São Paulo, as moças alistavam-se como enfermeiras, trilhos de bonde foram arrancados das ruas para a produção de armas, poetas compunham odes ao movimento, que se valeu também das modernas técnicas de comunicação para a mobilização popular, como o rádio e posteres publicitários.

Razões históricas e conjunturais explicam em parte porquê a demanda por eleições democráticas e uma nova constituição encontraram eco principalmente em São Paulo. Mas existem razões “estruturais” que explicam o motivo de quase todos os movimentos democráticos e antiautoritários nascerem ou contarem com a adesão generalizada no Estado. O argumento aqui foi bastante e melhor desenvolvido no estudo sobre “Capitalismo e Liberdade” de Friedman: a defesa da liberdade política e da liberdade econômica estão entrelaçadas e ambas as bandeiras tem melhores condições de se desenvolver em sociedades de mercado relativamente complexas. Recorrendo a Gramsci por equidade, os intelectuais orgânicos da burguesia – jornalistas, advogados, poetas – fornecem apenas o discurso ideológico que tem um substrato econômico e social mais profundo.

É nas sociedades de mercado complexos que surge uma burguesia relativamente independente do Estado, com autonomia para lutar por seus próprios interesses. Um movimento sindical e estudantil ativos, uma imprensa autônoma que não depende umbilicalmente dos recursos públicos. É onde existe um mercado de trabalho na agricultura, indústria e comércio muitas vezes superior em tamanho ao mercado dos empregos públicos. É ali que passa a existir uma relativa independência do orçamento público, dos impostos, das sinecuras, do protecionismo, das amizades com o governo de plantão. A vida econômica não começa e termina com o Estado, mas se desenvolve de maneira relativamente autônoma. As ideias circulam nas universidades, jornais, livros pois há uma classe média desenvolvida, que já forma um “povo” e não apenas uma “multidão”.

Não é só o tamanho da população mas principalmente as características da economia e da sociedade  paulistas que explicam porque os ideais democráticos de 32 encontram campo fértil para crescer em São Paulo. E a razão pela qual os intelectuais, as entidades e instituições paulistas são sempre as primeiras a aderir às causas democráticas e libertárias: é que sem liberdade política não existe liberdade econômica. Sem direito ao voto, a propriedade privada é ameaçada. Sem eleições, o mercado não funciona de modo eficiente. Sem capitalismo não há liberdade, mas sem liberdade tampouco há capitalismo.

É de São Paulo, principalmente, que vem agora novamente o alerta do “perigo contra a normalidade democrática”, como expresso no recente manifesto supra partidário pró-democracia gestado na Faculdade de Direito da USP, repetindo a Carta aos Brasileiros de 1977. Não somos mais idealistas do que os demais brasileiros nem defensores mais ardorosos da democracia. Temos apenas uma economia de mercado mais complexa e uma sociedade mais independente do governo central– o que nos dá, como em 32, o dever moral de servir como um anteparo aos eventuais abusos do Estado.

 

 

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