Há uma literatura relativamente
abundante sobre a dinâmica dos homicídios no Brasil, justificada pela gravidade
do fenômeno, procurando entender os motivos para o crescimento do fenômeno a
partir dos anos 80 e sua queda, mais recentemente, desde meados de 2017. Porém
existem bem menos estudos dedicados a outros crimes, como os roubos de veículos
e outros crimes patrimoniais, que também estão em tendência de queda nos anos
recentes, na maioria dos Estados.
O gráfico abaixo traz a taxa de
roubo de veículos por 100 mil habitantes por UF, entre 2010 e 2021. É possível
identificar aumentos mais intensos no Acre, Paraíba, Piauí, Rondônia, Roraima e
Sergipe, todos eles estados menos desenvolvidos das Regiões Norte e Nordeste.
Observe-se que estas são também as Regiões onde os homicídios têm crescido nos
últimos anos (e é possível que os dois fenômenos estejam relacionados: mais
roubos = mais sensação de insegurança = mais armas = mais homicídios, mas este
é outro artigo).
Na maioria dos Estados, contudo,
é nítida a queda dos roubos de veículos nas últimas décadas, principalmente no
Sudeste, como no Rio e em São Paulo, que concentram o maior número de casos.
Existem várias tentativas de
explicação para o fenômeno, como a melhora nos equipamentos de segurança dos
automóveis, o monitoramento por GPS e outras tecnologias, a intensificação da
fiscalização dos desmanches e venda de peças usadas, aumento de prisões e
gastos em segurança, migração para crimes digitais como os estelionatos, para
citar apenas algumas.
Como se trata de fenômeno que
atingiu grande número de Estados e mais ou menos no mesmo período, gosto de
imaginar que variáveis macroeconômicas e sociais estão também por trás do processo:
dinâmica demográfica, renda, ciclos econômicos e outras. Estas variáveis ajudam
a entender também por que observamos quedas nos Estados mais desenvolvidos e
crescimento nos menos desenvolvidos.
O modelo abaixo usa dados em
painel para os 27 Estados e 11 anos, de 2010 a 2021 e permite submeter a teste
algumas das variáveis mencionadas. Infelizmente não dispomos de dados sobre o
uso das novas tecnologias de monitoramento nos veículos, migração para outros
crimes ou repressão aos desmanches, por UF e ano e certamente o modelo omite
variáveis importantes. Parte destas omissões é sanada pelo uso do painel com
efeitos fixos, mas isto não resolve o problema de todo.
Existem dados sobre número de
prisões de adultos e menores e despesas dos Estados em segurança por UF e ano,
mas nestes casos, é provável imaginar que temos problemas de endogeneidade,
como causação recíproca: número de prisões e despesas em segurança afetam a
criminalidade, mas inversamente, criminalidade também afeta os número de
prisões e as despesas em segurança. O problema da endogeneidade poderia ser
minimizado com o uso de variáveis instrumentais (que estão relacionadas com
estas variáveis explicativas, mas não com os erros da regressão). Mas não é
fácil encontrar variáveis deste tipo, que estejam relacionadas, por exemplo, ao
gasto em segurança, mas não relacionadas ao crime. Nos testes preliminares,
estas variáveis de esforço da atividade policial aparecem relacionadas
positivamente com os roubos, diferente do esperado. Mas estas estimativas são
enviesadas e pouco confiáveis na ausência de um bom “instrumento”.
O modelo, portanto, tem suas
limitações e se atem a algumas variáveis demográficas e sócio econômicas que se
assume sendo exógenas. A variável dependente é a taxa de roubo de veículos por
100 mil habitantes, cuja vantagem é contar com uma boa notificação, uma vez que
se trata de bem de alto valor e geralmente segurado. Como variáveis
explicativas adicionamos o coeficiente gini de concentração de renda, a taxa de
fecundidade defasada em 15 anos, uma variável dummy para Covid (1 para 2020 e
2021 e 0 para os demais anos) e um indicador de ciclo econômico, oriundo da
Pesquisa Mensal do Comércio do IBGE. Incluímos também no modelo a busca pelo
termo “porte de arma” coletada através do Google Trends. A busca por armas de
fogo está intrinsecamente relacionada ao medo do crime e incluímo-la aqui como
uma proxy de “sensação de insegurança”, na impossibilidade de mensurar
diretamente o fenômeno.
.
xtreg txrveic gini fecdef15
covid gogtrend ciclopmc , fe vce(robust)
Fixed-effects (within) regression Number of obs =
284
Group variable: codeuf Number of groups =
27
R-sq: Obs
per group:
within = 0.1093 min
= 9
between = 0.0012 avg
= 10.5
overall = 0.0139 max
= 11
F(5,26) = 12.65
corr(u_i, Xb) = -0.2512 Prob > F =
0.0000
(Std. Err.
adjusted for 27 clusters in codeuf)
------------------------------------------------------------------------------
| Robust
txrveic | Coef. Std. Err. t
P>|t| [95% Conf. Interval]
-------------+----------------------------------------------------------------
gini |
-178.9162 94.88386 -1.89
0.071 -373.9528 16.12039
fecdef15 | -21.07845 14.81514
-1.42 0.167 -51.53139
9.374502
covid | -28.65656 5.683228
-5.04 0.000 -40.3386
-16.97451
gogtrend | .5949738 .1909934
3.12 0.004 .2023813
.9875664
ciclopmc | 17.23177 5.267683
3.27 0.003 6.403896
28.05965
_cons | 197.378 43.88613
4.50 0.000 107.1688
287.5873
-------------+----------------------------------------------------------------
sigma_u | 43.474597
sigma_e | 34.998082
rho | .60677284 (fraction of variance due to u_i)
------------------------------------------------------------------------------
A análise dos coeficientes sugere que a taxa
de roubo de veículo está relacionada negativamente como a concentração de renda
no Estado. Em outras palavras, quanto maior a concentração de renda, menor o
roubo de veículo. A taxa de fecundidade defasada não se demonstrou estatisticamente
significativa, mas é curioso notar que o sinal da relação é negativo. Em ambos
os casos, o esperado, segundo a hipótese de que desigualdade e pobreza geram
criminalidade, é que o sinal fosse positivo, uma vez que tanto gini elevado
como fecundidade elevada são características de regiões mais pobres e desiguais.
O modelo sugere que as taxas de roubo foram mais elevadas no período analisado nos
Estados mais ricos e desenvolvidos, favorecendo a hipótese de que - ao
contrário dos crimes contra a vida, ligados à pobreza - , os crimes contra o
patrimônio estão ligados às oportunidades criminais. É nos Estados mais ricos e
desenvolvidos que existem mais veículos disponíveis e eventualmente um maior
comércio de peças usadas e esta disponibilidade parece aumentar esta modalidade
criminal. No mesmo sentido vai a variável ciclo PMC, cujo coeficiente é
positivo e significativo, indicado que os roubos de veículo tendem a aumentar
justamente nos anos em que o comércio vai melhor.
A dummy para Covid se comportou como esperado,
significativa e negativa, comprovando a queda da criminalidade patrimonial
durante a pandemia, que reduziu drasticamente a quantidade de veículos em
circulação, novamente sugerindo que “a oportunidade faz o ladrão”. Finalmente,
o modelo sugere que a relação é positiva e significativa entre roubo de
veículos e a variável busca por “porte de arma” do Google. A interpretação aqui
é que nos anos e Estados em que há mais roubos, há também mais busca por armas
pela população, sugerindo que o medo de ser roubado alimenta a busca por porte
de armas. A busca por armas cresceu em praticamente todos os Estados no
período, mas especialmente naqueles em que as taxas de roubo de veículo foram
mais elevadas. É interessante observar que se o modelo nos ajuda a entender
alguns aspectos da distribuição e etiologia dos roubos de veículos, ele parece
contribuir pouco para a explicação da dinâmica temporal e por qual o motivo os
roubos de veículos começaram a cair abruptamente nos últimos anos. Alguma coisa
grande aconteceu neste meio tempo, mas ainda nos faltam hipóteses de trabalho
mais elaboradas e dados para entender o fenômeno.