O Fórum Brasileiro de Segurança
Publica divulgou nesta semana a 19º edição do Anuário, com dados relativos a
2024. O Anuário – que ajudei a conceber e analisar – é uma das melhores fontes
para refletir sobre o tema e mostra inúmeras tendências em andamento.
A interpretação sobre estas
tendências e padrões, todavia, nem sempre é unívoca entre os analistas , de
modo que costumo fazer anualmente meus próprios comentários sobre os dados, à
guisa de reflexão. Seguem então alguns apontamentos e sugestões para futuras
pesquisas e aprofundamentos!
- · Homicídios continuam processo de queda observado desde 2017. Queda é praticamente nacional e ocorre em municípios sem qualquer presença de crime organizado, de forma que explicações baseadas na dinâmica dos conflitos entre as facções são frágeis. Listas de “cidades mais violentas” são interessantes, mas também um baita viés de seleção: ilustra uma dinâmica ligada a guerra de facções, que está longe de ser generalizável para os demais milhares de cidades do país. Fenômeno se explica antes por mudanças nacionais como demografia, melhora da economia, melhora da educação, menos armas em circulação, migração para crimes digitais, melhoras nas políticas de segurança, etc. Conflitos de facções só explicam surtos agudos, momentâneos e localizados de violência.
- · Observe-se que a queda de homicídios ocorre num contexto de crescimento da posse de armas: registros de posses ativos passam de 628 mil em 2017 para mais de 2 milhões em 2024. A hipótese é de que estas armas não estão em circulação nas ruas, mas guardadas nas residências. Evidência disso é que quantidade de armas apreendidas pelas polícias está em queda, assim como ocorrência de posse e porte ilegal. Hipótese: Estas armas não foram para as ruas por conta da diminuição dos crimes violentos de rua nos últimos anos. Armas não protegem contra estelionatos digitais.
- · Observe-se o aumento das mortes violentas intencionais (MVI) em São Paulo, em razão do crescimento de várias categorias de mortes, principalmente mortes em decorrência de intervenção policial (MDIP), que estão em forte contraste com a tendência nacional, que é de queda; mortes pela polícia provocaram uma interrupção na trajetória de queda de homicídios do Estado. Inobstante, SP continua com a menor taxa de homicídios do país (8,2) e bem abaixo da taxa nacional de 20,8:100 mil. Olhando a série de SP em longo prazo vemos um retorno à média histórica do Estado;
- · Homicídios de mulheres caem enquanto feminicídios sobem? Não faz muito sentido. Dados mostram que porcentagem de feminicídios sobre homicídios femininos cresce a cada ano: proporção de feminicídios em relação ao homicídio de mulheres: vai de 9,4 em 2015 a 40,3% em 2024. Como sugeri anteriormente, o fenômeno se explica pelo uso progressivo da nova categoria penal pelo sistema de justiça, em detrimento da categoria homicídio e não se trata do crescimento do fenômeno de feminicídio. Somadas as duas categorias (homicídio de mulheres + feminicídios) , vemos queda na morte violenta de mulheres.
- · Observe-se que apenas entre 50 e 70 mulheres tinham Medida Protetiva de Urgência no momento do óbito, num universo de quase 1500 vítimas de feminicídio por ano. Grande maioria das mulheres mortas, portanto, aparentemente não recorreu à medida, por algum motivo que precisaria ser investigado. Quantas vítimas tiveram o pedido negado? Feminicídio vem de histórico de agressões (portanto pode ser contido pela MPUs) ou é um “raio em dia de céu azul”? Pesquisa interessante seria comparar o número de MPUs concedidas por UF com o número (taxas) de feminicídios por UF.
- · Homicídios contra LGBTs: números diminutos e em queda, e taxa pode ser menor do que a média nacional da população com mesmo perfil demográfico, dependendo do tamanho estimado da população LGBT que se utilize no denominador. Ser LGBT pode ser fator protetivo e não de risco, uma vez que população não tende a reproduzir muitos dos comportamentos de risco dos heterossexuais (álcool, armas, brigas, cultura de violência, etc.);
- · Continuidade da queda de crianças e adolescentes apreendidos e cumprindo medidas, como apontei em artigos anteriores. Adolescentes masculinos cumprindo medida em maio fechado caem de 23 mil em 2018 para 11500 em 2024. Observe-se que não se trata apenas de tratamento menos rigoroso pelo judiciário, uma vez que a queda já se observa na entrada do sistema de justiça criminal, pelas quedas nas apreensões policiais em flagrante. Fenômeno é compatível com o impacto da melhoria do sistema educacional na criminalidade, como viemos apontando;
- · Crimes contra patrimônio violentos e de rua em queda (roubo de veículos, residência, transeuntes, estabelecimentos, carga, bancos, etc.), em contraste com forte crescimento dos estelionatos digitais (17%), tendência de inversão que apontamos pioneiramente já em 2019. Note-se em 2024 a queda até mesmo do roubo e furto de celulares, usados em golpes digitais, em contradição com o aumento dos estelionatos. A “narrativa” é de que PCC estava por traz dos roubos de celulares para cometer estelionatos digitais. Como explicar agora o aumento dos estelionatos digitais e a queda dos roubos e furtos de celulares?
- · Programas estaduais de recuperação de celulares podem explicar a queda na modalidade de furtos e roubos, mas impacto precisa ainda ser testado. Numa análise rápida, as maiores quedas nos roubos e furtos de celulares não foram observadas nos estados que iniciaram programas de recuperação. (RR, AP,RS, GO). A quantidade de celulares restituídos aos proprietários é ainda ínfima diante da quantidade de celulares roubados e furtados, o que atenua talvez o impacto dos programas.
- · Diversos governos estaduais tem associado estas quedas nos crimes em geral, que são nacionais, a políticas de segurança adotadas em seus respectivos estados: falta ainda provar se e em quanto estas medidas locais contribuíram para o processo de queda; muita gente por ai – inclusive analistas e jornalistas – comprando discursos de governo, sem avaliação rigorosa.
- · Dinâmica das facções não pode explicar tampouco a tendência de queda dos crimes patrimoniais, jogando água no moinho das explicações macro sociais e econômicas (demografia, economia, melhora educacional, etc.) além da migração para estelionatos. Diferente do caso dos crimes ambientais, não existe evidência palpável de que crime organizado esteja preponderantemente envolvido nos estelionatos digitais, exceto por casos anedóticos.;
- · Estelionatos são mais compensadores que crimes de contato, pois a probabilidade de prisão é pequena, risco menor e o lucro mais elevado. O número de estelionatários cumprindo pena no país caiu em termos absolutos e relativos (Sisdepen), não obstante o aumento da modalidade criminal; em 2018 tínhamos na prisão 4173 estelionatários, equivalente a 1% dos estelionatos. Porcentagem atual é de 0.2%. São apenas 4112 presos para mais de 2 milhões de estelionatos registrados. Estado ainda não aprendeu a investigar e punir estelionatários e receptadores, pois é demasiado ocupado com policiamento ostensivo e investe pouco em perícia e investigação. Aumentar a pena não resolve se autores não são presos.
- · Dado do INEP sugere que 3,6% das escolas tiveram aulas interrompidas por conta de episódios de violência em 2023. Junto com indicadores como: óbitos criminais prisionais, razão homicídios consumados por tentados, presença de facções no território, etc. este indicador pode ser uma boa proxy para estimar crime organizado por UF / cidade! Seria interessante verificar como este indicador se relaciona com a taxa local de homicídios.
- · Perfil das vítimas de estupro. Os dados do Anuário sugerem de 77% das vítimas de estupro no Brasil tem até 17 anos, o que revelaria uma predileção acentuada dos estupradores brasileiros por crianças e adolescentes. Na maioria dos países a porcentagem de vítimas crianças e adolescentes é menor que a brasileira. Embora se saiba que a violência sexual seja em boa parte doméstica, as porcentagens de estupros cometidos em residências (66%) e por conhecidos da vítima (78%) são bastante elevadas e podem estar enviesadas. É preciso lembrar aqui que talvez exista um grande viés de seleção nos boletins de estupros reportados à polícia e que a probabilidade de notificação muda conforme a idade, sendo maior quando a vítima é criança ou adolescente. Nesta faixa etária a escola e profissionais de saúde ajudam a identificar os casos e a notificação é feita pelos pais ou responsáveis. A partir da adolescência, a identificação é mais problemática e a notificação fica por conta da própria vítima. Assim, o perfil em termos de idade, local, relacionamento com o autor, etc., fica enviesado por conta da notificação proporcionalmente maior das vítimas juvenis.
- · Com PEC da segurança governo federal quis exclusividade para traçar as diretrizes nacionais de segurança pública, mas contribui apenas com 12% dos recursos totais na área, diferente do que acontece com o SUS. Estados ainda arcam com 80% da conta e municípios com outros 8%. Como na saúde e na educação, a coordenação nacional do sistema de segurança deveria começar pelo investimento massivo de recursos da União na área. Quem põe o dinheiro, tem moral para dar as diretrizes.
- · Porcentagem de negros cumprindo pena no sistema prisional cresce anualmente, indo de 58,4 em 2005 para 68,7% em 2024. Cabem diversas interpretações aqui: além do racismo estrutural, talvez uma mudança no perfil das naturezas das condenações, como o aumento das prisões por tráfico. Ou simplesmente aumento da (auto) classificação das pessoas como negras, como observado no Censo e em outras pesquisas, desde o início das ações afirmativas.
O Anuário traz dezenas de tabelas
e gráficos e para comentar todos eles seria necessário um livro. Os dados
brutos estão sempre sujeitos a diferentes interpretações e para respondê-las
seria preciso pesquisas que ninguém ainda tem. Mas em termos de diagnósticos,
estamos inegavelmente numa situação muito melhor do que há 20 anos, quando
sequer tínhamos os dados! Vida longa ao Anuário!