terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Abracadabra, hocus pocus e embargos infringentes: que o crime caia a partir de agora, um, dois, três


A crítica pela ausência é a mais fácil que existe. Dito isso, às vezes ela é necessária, porque reveladora. O pacote anticrimes apresentado pelo Ministro da Justiça não é um plano de segurança pública. Não contém um diagnóstico, exceto uma fala genérica sobre a interconexão entre crime organizado, corrupção e crimes violentos. Foi o máximo de elaboração criminológica sugerida na apresentação oral do projeto pelo Ministro Moro. Tampouco tem princípios norteadores. Nem metas e detalhamento sobre como atingi-las. Em resumo, não é um plano e creio que não pretendeu sê-lo (assim espero).

Na verdade é um conjunto de propostas de modificações legais em diversas legislações. A análise das propostas cabe, portanto antes aos advogados e constitucionalistas. Criminólogos tem pouco a opinar sobre embargos infringentes. De modo que vamos nos restringir aqui ao meta-plano, ao contexto de sua divulgação e a alguns comentários gerais sobre os conceitos e pressupostos intrínsecos ao pacote.

Todo jurista que chega ao Ministério da Justiça faz sua própria proposta de reforma do código penal. São homens da lei e é sobre leis que sabem e gostam de falar, assim como os promotores públicos nas secretarias estaduais de segurança. Em geral, formam uma comissão de juristas notáveis para elaborar o anteprojeto. Moro teve pressa em mostrar trabalho nos primeiros dias e dispensou a comissão de notáveis: preferiu ele mesmo redigir a proposta com seus auxiliares, após algumas consultas. Incluiu nela aquilo que já percebia como obstáculo na sua vida pregressa como juiz, demandas populares por leis mais duras, novidades extraídas de filmes de bandido e mocinho americano e algumas idiossincrasias do presidente, como a proteção aos policiais envolvidos em confrontos com morte. Teve ao menos o bom senso de deixar de fora a questão do porte de armas.

Temos assim uma coisa que já sabíamos e esperávamos e outra que não sabíamos ainda. Como jurista que nunca passou pela administração pública, já era esperado que passasse de longe pelas questões relativas à gestão: recursos financeiros, reforma das polícias, novo pacto federativo, papel da Força Nacional de Segurança, sistema de inteligência, novas tecnologias, etc. tudo isso é desconhecido por quem passou a vida aplicando o código penal. E o que não está nos autos não está no mundo. Ocorre que nesta área gestão é tão ou mais importante que legislação: São Paulo, como sempre lembro, reduziu em 70% os homicídios sem alterar uma alínea do Código Penal (embora o Estatuto tenha sido aqui de grande auxílio).

O que ainda não sabíamos é até que ponto o ministro encamparia ou seria um anteparo às tendências “manu dura” e ao populismo penal do governo federal e dos novos congressistas. Equivocaram-se os que esperavam um legalista intransigente, defensor das garantias e direitos individuais: aparentemente, na visão dos juristas que o analisaram, o pacote atropela diversas jurisprudências estabelecidas e princípios constitucionais. Esperávamos que pelo menos de direito o Ministro entendesse.


Num pais com 63 mil mortos por homicídio, em seu primeiro mês o governo flexibiliza por decreto a posse de armas e propõe agora a flexibilização da legítima defesa para policiais envolvidos em confrontos. (causa de um quarto das mortes no Estado de São Paulo). Como secretário executivo da extinta Comissão de Letalidade da SSP, sei que é assunto onde não se pode ter falas ambíguas: qualquer mínimo sinal da cúpula de tolerância com relação aos confrontos termina na ponta como sinal verde para atirar, com resultados desastrosos para a polícia como um todo. E o sinal aqui não foi mínimo, vindo do próprio Ministro da Justiça e da Presidência. Polícias profissionais nos Estados e o poder judiciário, esperamos neste caso, deverão ser o anteparo aos excessos do governo federal.

Nem tudo no pacote é ruim e algumas iniciativas podem melhorar concretamente o desempenho dos órgãos policiais: o uso dos bens apreendidos pelos órgãos de segurança, os interrogatórios por videoconferência, diminuindo os deslocamentos de presos com escoltas, a obrigatoriedade de identificação por perfil genético dos condenados por crimes dolosos, o banco nacional de perfis balísticos e a criação do banco nacional multibiométrico, entre outras propostas. Na área da investigação criminal, merecem detalhamento também as propostas do informante do bem, e da admissão da escuta ambiental como prova, desde que íntegra. A aceleração do processo de perdimento dos bens pode ser útil no caso de aeronaves, embarcações e veículos, uma vez que a demora no processo é tamanha que os bens ficam inutilizados ao final do processo, perdendo valor de mercado. Também me parece acertada o aumento para três anos de permanência, renovável, para criminosos em presídios federais, embora o pacote peque desnecessariamente ao tentar criar uma lista de organizações criminosas, mencionando algumas explicitamente.

Há também as novidades inspiradas no tio Sam: as soluções negociadas, onde o suspeito assume de saída sua culpa e barganha o tipo e tamanho da condenação, evitando que o processo prossiga. Conhecendo a demora e precariedade da justiça brasileira e a falta de condições dos mais pobres para se defender, é possível que muitos inocentes simplesmente aceitem a barganha para evitar danos maiores e processos prolongados. Louvável, como intenção de desafogar o judiciário, mas só praticável nos países que assegurem que todos são minimamente iguais perante a lei, sem falar no aumento da discricionariedade do Ministério Público que a medida implica.

O pacote traz ainda a proposta do agente encoberto, para os casos de tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou venda de armas. Significa que o policial pode postergar um flagrante, mesmo presenciando um crime, em nome de uma futura prisão, que envolva criminosos de maior calibre e provas mais incriminadoras. Às vezes esta presença disfarçada pode implicar em que o policial seja cúmplice em algumas atividades ilegais. E que criminosos sejam induzidos a praticar crimes, no que se convencionou chamar de flagrantes preparados. Numa polícia com elevado grau de ética e integridade, esse expediente já seria arriscado. Não creio que seja admissível em nosso sistema jurídico nem recomendável no país das milícias.

No geral, grande parte das propostas aponta para o endurecimento do cumprimento das penas: execução provisória da condenação após 2º instancia, regime inicial fechado para certos crimes, aumento do tempo de cumprimento de pena antes da progressão, fim das saídas temporárias, criminalização do caixa dois, etc. O pressuposto básico aqui é de que a pena de prisão tem caráter intimidatório sobre o criminoso, o que é apenas parcialmente verdadeiro quando a probabilidade da prisão, como no Brasil, é diminuta. Leis baseadas nos mesmos pressupostos como a lei dos crimes hediondos, parecem ter tipo pouco efeito sobre a criminalidade no país. Será que desta vez o endurecimento penal trará os efeitos desejados, apesar das poucas evidências em favor? O resultado poderá ser o crescimento ainda maior da população prisional. Visando combater o crime organizado, o pacote pode ter o efeito contrário, piorando as condições de cumprimento de pena e aumentando a massa prisional à disposição das facções.

As medidas serão agora discutidas pela sociedade mais ampla e ainda devem ser analisadas tanto pelo Congresso – em tese favorável ao espírito do pacote – quanto pelo judiciário. Muita coisa ainda será arredondada antes de ser aprovada. Mas ele dá o tom de como será a gestão da segurança no governo federal, que começou mal reunificando os ministérios da justiça e segurança e com a edição do decreto flexibilizando a posse de armas.
O pacote tem algumas boas iniciativas, apesar de limitado e no geral revela uma falta de entendimento sobre o problema criminal do país. Como dizia Oliveira Viana, você pode ler todo um capítulo sobre filosofia do movimento diante de uma pedra, que ela não se moverá um milímetro. O crime, igualmente, é pouco afetado pela cominação de penas maiores no código penal. A regulação dos embargos infringentes não vai intimidar ninguém. Melhor começar a pensar com base nos paradigmas da prevenção e da gestão. Pensar em como utilizar melhor os imensos recursos que o superministério tem a sua disposição, e que independem da aprovação do Congresso. Criminólogos não entendem de embargos infringentes. Mas sabem que o controle da criminalidade é um trabalho arduo, de longo prazo, custoso, coletivo. Não existem fórmulas mágicas. Os bachareis, no congresso ou empossados em seus ministérios e secretarias, precisam parar de acreditar no poder mágico das leis.


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