quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

A Nova Fronteira do Punitivismo: Quando Mentir sobre Facção Vale Mais que o Crime

 


Tulio Kahn e Bruno Kowalsky

Nas últimas semanas, assistimos a um interminável vai e vem de versões do projeto de lei contra o crime organizado relatado ao Congresso pelo deputado  Guilherme Derrite, até então Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo. O texto tramitou agora para o Senado onde recebeu até o momento nada menos que 43 adendos, o que mostra o interesse e a complexidade dos temas tratados.

Neste artigo, pretendemos discutir de modo específico  um dos pontos que chama atenção na redação proposta. Referimo-nos ao novo tipo penal criado pelo projeto de lei, originalmente no seu art. 3º, inciso VII, segundo o qual constitui crime “alegar falsamente pertencer a organização criminosa ultraviolenta, paramilitar ou milícia que pratique ato previsto no art. 2º desta Lei, com o fim de obter qualquer tipo de vantagem ou de intimidar terceiros.” O projeto do Senado  manteve a criminalização de quem “alega falsamente pertencer a uma facção criminosa ou milícia privada”, no art. 2º-B, VII,  porém agora deslocada para a seção de crime de “Favorecimento”   e punida com “oito a quinze anos de reclusão”.

A lógica para o deslocamento é difícil de entender mas o Senado, aparentemente, avalia que o domínio criminoso no Brasil não se sustenta apenas por armas e dinheiro, mas também por um repertório de medo que se propaga socialmente. Nessa visão, toda vez que alguém diz “eu sou do PCC” ou “sou da milícia tal” para intimidar uma vítima, mesmo sem pertencer ao grupo, estaria contribuindo para ampliar o raio de influência da facção e, assim, talvez, favorecendo sua atuação?

Esse entendimento, todavia,  transforma uma percepção subjetiva — o uso oportunista do nome de grupos criminosos — em conduta penal de altíssima gravidade. O problema se torna mais evidente quando se analisa o restante do artigo 2º-B, que reúne condutas típicas de favorecimento: abrigar membros reais de facções, fornecer locais para prática de crimes, repassar informações estratégicas, financiar operações, distribuir propaganda de aliciamento. Todas essas ações têm efeito material na preservação ou expansão da organização criminosa. Dentro desse conjunto, a falsa alegação é uma espécie de corpo estranho: não oferece abrigo, não facilita a prática de crimes, não provê recursos, não fortalece redes logísticas. Trata-se de um ato de fala. A simples declaração de pertencimento, verdadeira ou não, passa a ser tratada como conduta penal com pena superior à de diversos crimes violentos.

Embora a inclusão sob o rótulo de “favorecimento” indique uma mudança simbólica em relação ao texto originalmente aprovado na Câmara, os problemas de proporcionalidade permanecem. A pena agora prevista, de oito a quinze anos, continua substancialmente superior àquela destinada a condutas de natureza semelhante no Código Penal brasileiro. O exemplo mais evidente é o crime de “falsa identidade”, que pune com três meses a um ano de detenção quem se atribui identidade falsa para obter vantagem. A estrutura lógica é a mesma: o agente mente sobre quem é, para intimidar, ganhar algo ou manipular a situação a seu favor. É difícil sustentar que uma mentira envolvendo o nome de uma facção — ainda que dita em contexto de crime violento, seja intrinsecamente mais grave do que falsificar a própria identidade para ludibriar o Estado ou terceiros. A hierarquia penal construída pelo Senado rompe com essa coerência interna: o que normalmente seria acessório vira núcleo, e o acessório passa a ter peso de crime maior.

Além disso, o dispositivo aprovado cria um paradoxo jurídico. O agravamento simbólico decorrente da falsa alegação pode levar a uma pena maior do que aquela aplicada ao agente que realmente integra a facção e pratica crimes graves sem mencionar sua filiação. A punição da declaração pode superar a punição do fato. Do ponto de vista da política criminal, isso significa deslocar o foco do dano concreto — o crime cometido, a violência empregada, o prejuízo causado — para o discurso utilizado pelo autor. Criminaliza-se a palavra com mais rigor do que a ação, o que raramente encontra respaldo em experiências  de enfrentamento ao crime organizado.

A leitura do dispositivo demonstra tratar-se de tipo aberto, o que, já de princípio, pode ser bastante perigoso em matéria penal. Afinal, em que contexto, exatamente, a alegação de pertencimento à organização criminosa constitui crime? Essa pergunta é importante porque convida a pensar em manifestações de criminosos que se dão na fase de atuação ostensiva da polícia, em momentos de captura, por exemplo, ou então, em declarações emitidas espontaneamente pelo próprio sujeito na intenção de intimidar a sua vítima.  

O debate se torna ainda mais complexo quando se observa a realidade prisional brasileira. Muitos presos, sobretudo os sem vínculos prévios com facções, acabam sendo pressionados a declarar filiação no momento da custódia para fins de sobrevivência. Essas identidades forçadas fazem parte da dinâmica dos estabelecimentos penais. Não há critérios objetivos e não existe cadastro, hierarquia formalizada ou sistemas de admissão no RH das facções. Nesse contexto, distinguir pertencimento verdadeiro de falso torna-se um desafio probatório significativo. E, em um sistema em que a palavra da vítima ou da autoridade policial pode ser o principal elemento de convicção, há um risco real de condenações fundadas em interpretações subjetivas, alimentadas pelo medo e pela desordem das condições de prisão e abordagem.

A jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça já reconheceu os limites da prova oral isolada de agentes públicos, justamente por conta das distorções que ela pode produzir. Isso cria um tensionamento inevitável com o novo tipo penal, cuja consumação depende quase inteiramente da palavra: a palavra do acusado, a palavra do policial que relata a abordagem, a palavra da vítima que afirma ter ouvido uma ameaça. A lei exige que o Judiciário determine quando se trata de alegação falsa ou verdadeira, mas não fornece critérios objetivos para essa distinção, especialmente em um ambiente em que o pertencimento a facção não é verificável documentalmente. Diga-se de passagem que a proposta de um banco de dados nacional de faccionados, também proposta na lei, enfrentará problemas semelhantes.

Esses problemas não desaparecem simplesmente ao reposicionar o dispositivo para a categoria de “favorecimento” uma vez que permanece a pergunta: favorece-se realmente uma facção criminosa ao mentir sobre pertencer a ela? A resposta, do ponto de vista dogmático, é negativa. Não há ganho operacional para a facção; não há financiamento, logística, apoio estratégico ou proteção institucional. O impacto é puramente retórico. E, embora o poder simbólico das facções seja real, é questionável se o Direito Penal deve tratar esse simbolismo como objeto de punição máxima.

Isso não significa ignorar a relevância e a urgência do enfrentamento às facções criminosas no Brasil. O Senado acerta ao reconhecer que o país vive um estágio avançado de criminalidade organizada, estrutural e territorial. O texto aprovado contém avanços significativos: novas possibilidades de cooperação internacional, reforço à recuperação de ativos, medidas assecuratórias mais ágeis, melhor definição dos crimes de dominação territorial. Esses dispositivos dialogam com práticas bem-sucedidas em outros países, que enxergam no rastreamento financeiro, na inteligência integrada e na atuação interinstitucional a verdadeira espinha dorsal do combate ao crime organizado.

O problema é que, ao lado dessas inovações maduras, persistem escolhas legislativas que parecem mais guiadas por impulsos simbólicos do que por evidências empíricas. A falsa alegação de pertencimento é uma delas. O legislador cria um tipo penal que pode gerar encarceramento massivo de autores periféricos, aumentar litígios judiciais, inflar estatísticas artificiais de “favorecimento” e, paradoxalmente, reforçar a autoridade simbólica dos grupos que se pretende combater.

A tramitação no Senado oferece um momento valioso para calibrar a resposta penal. A sociedade brasileira clama por um sistema de segurança mais eficiente, menos permeável ao crime organizado e mais capaz de proteger territórios vulneráveis. A construção desse caminho não exige apenas rigor, mas sobretudo precisão. Uma lei que pune discursos com mais severidade que atos pode satisfazer a ansiedade imediata por respostas contundentes, mas dificilmente produzirá os resultados estruturais que o país necessita. O desafio do parlamento, agora, é separar a retórica do fato, o símbolo da ação e a política criminal eficaz da política criminal meramente reativa.

 

 

 

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