Tulio Kahn e Bruno Kowalsky
Nas últimas semanas, assistimos a
um interminável vai e vem de versões do projeto de lei contra o crime
organizado relatado ao Congresso pelo deputado Guilherme Derrite, até então Secretário de
Segurança Pública do Estado de São Paulo. O texto tramitou agora para o Senado
onde recebeu até o momento nada menos que 43 adendos, o que mostra o interesse
e a complexidade dos temas tratados.
Neste artigo, pretendemos discutir
de modo específico um dos pontos que
chama atenção na redação proposta. Referimo-nos ao novo tipo penal criado pelo
projeto de lei, originalmente no seu art. 3º, inciso VII, segundo o qual
constitui crime “alegar falsamente pertencer a organização criminosa
ultraviolenta, paramilitar ou milícia que pratique ato previsto no art. 2º
desta Lei, com o fim de obter qualquer tipo de vantagem ou de intimidar
terceiros.” O projeto do Senado manteve
a criminalização de quem “alega falsamente pertencer a uma facção criminosa ou
milícia privada”, no art. 2º-B, VII, porém agora deslocada para a seção de crime de
“Favorecimento” e punida com “oito a
quinze anos de reclusão”.
A lógica para o deslocamento é
difícil de entender mas o Senado, aparentemente, avalia que o domínio criminoso
no Brasil não se sustenta apenas por armas e dinheiro, mas também por um
repertório de medo que se propaga socialmente. Nessa visão, toda vez que alguém
diz “eu sou do PCC” ou “sou da milícia tal” para intimidar uma vítima, mesmo
sem pertencer ao grupo, estaria contribuindo para ampliar o raio de influência
da facção e, assim, talvez, favorecendo sua atuação?
Esse entendimento, todavia, transforma uma percepção subjetiva — o uso
oportunista do nome de grupos criminosos — em conduta penal de altíssima
gravidade. O problema se torna mais evidente quando se analisa o restante do
artigo 2º-B, que reúne condutas típicas de favorecimento: abrigar membros reais
de facções, fornecer locais para prática de crimes, repassar informações
estratégicas, financiar operações, distribuir propaganda de aliciamento. Todas
essas ações têm efeito material na preservação ou expansão da organização criminosa.
Dentro desse conjunto, a falsa alegação é uma espécie de corpo estranho: não
oferece abrigo, não facilita a prática de crimes, não provê recursos, não
fortalece redes logísticas. Trata-se de um ato de fala. A simples declaração de
pertencimento, verdadeira ou não, passa a ser tratada como conduta penal com
pena superior à de diversos crimes violentos.
Embora a inclusão sob o rótulo de
“favorecimento” indique uma mudança simbólica em relação ao texto originalmente
aprovado na Câmara, os problemas de proporcionalidade permanecem. A pena agora
prevista, de oito a quinze anos, continua substancialmente superior àquela
destinada a condutas de natureza semelhante no Código Penal brasileiro. O
exemplo mais evidente é o crime de “falsa identidade”, que pune com três meses
a um ano de detenção quem se atribui identidade falsa para obter vantagem. A
estrutura lógica é a mesma: o agente mente sobre quem é, para intimidar, ganhar
algo ou manipular a situação a seu favor. É difícil sustentar que uma mentira
envolvendo o nome de uma facção — ainda que dita em contexto de crime violento,
seja intrinsecamente mais grave do que falsificar a própria identidade para
ludibriar o Estado ou terceiros. A hierarquia penal construída pelo Senado
rompe com essa coerência interna: o que normalmente seria acessório vira
núcleo, e o acessório passa a ter peso de crime maior.
Além disso, o dispositivo
aprovado cria um paradoxo jurídico. O agravamento simbólico decorrente da falsa
alegação pode levar a uma pena maior do que aquela aplicada ao agente que
realmente integra a facção e pratica crimes graves sem mencionar sua filiação.
A punição da declaração pode superar a punição do fato. Do ponto de vista da
política criminal, isso significa deslocar o foco do dano concreto — o crime cometido,
a violência empregada, o prejuízo causado — para o discurso utilizado pelo
autor. Criminaliza-se a palavra com mais rigor do que a ação, o que raramente
encontra respaldo em experiências de
enfrentamento ao crime organizado.
A leitura do dispositivo
demonstra tratar-se de tipo aberto, o que, já de princípio, pode ser bastante
perigoso em matéria penal. Afinal, em que contexto, exatamente, a alegação de
pertencimento à organização criminosa constitui crime? Essa pergunta é
importante porque convida a pensar em manifestações de criminosos que se dão na
fase de atuação ostensiva da polícia, em momentos de captura, por exemplo, ou então,
em declarações emitidas espontaneamente pelo próprio sujeito na intenção de
intimidar a sua vítima.
O debate se torna ainda mais
complexo quando se observa a realidade prisional brasileira. Muitos presos,
sobretudo os sem vínculos prévios com facções, acabam sendo pressionados a
declarar filiação no momento da custódia para fins de sobrevivência. Essas identidades
forçadas fazem parte da dinâmica dos estabelecimentos penais. Não há critérios
objetivos e não existe cadastro, hierarquia formalizada ou sistemas de admissão
no RH das facções. Nesse contexto, distinguir pertencimento verdadeiro de falso
torna-se um desafio probatório significativo. E, em um sistema em que a palavra
da vítima ou da autoridade policial pode ser o principal elemento de convicção,
há um risco real de condenações fundadas em interpretações subjetivas,
alimentadas pelo medo e pela desordem das condições de prisão e abordagem.
A jurisprudência recente do
Superior Tribunal de Justiça já reconheceu os limites da prova oral isolada de
agentes públicos, justamente por conta das distorções que ela pode produzir.
Isso cria um tensionamento inevitável com o novo tipo penal, cuja consumação
depende quase inteiramente da palavra: a palavra do acusado, a palavra do
policial que relata a abordagem, a palavra da vítima que afirma ter ouvido uma
ameaça. A lei exige que o Judiciário determine quando se trata de alegação
falsa ou verdadeira, mas não fornece critérios objetivos para essa distinção, especialmente
em um ambiente em que o pertencimento a facção não é verificável
documentalmente. Diga-se de passagem que a proposta de um banco de dados
nacional de faccionados, também proposta na lei, enfrentará problemas
semelhantes.
Esses problemas não desaparecem
simplesmente ao reposicionar o dispositivo para a categoria de “favorecimento”
uma vez que permanece a pergunta: favorece-se realmente uma facção criminosa ao
mentir sobre pertencer a ela? A resposta, do ponto de vista dogmático, é
negativa. Não há ganho operacional para a facção; não há financiamento,
logística, apoio estratégico ou proteção institucional. O impacto é puramente
retórico. E, embora o poder simbólico das facções seja real, é questionável se
o Direito Penal deve tratar esse simbolismo como objeto de punição máxima.
Isso não significa ignorar a
relevância e a urgência do enfrentamento às facções criminosas no Brasil. O
Senado acerta ao reconhecer que o país vive um estágio avançado de
criminalidade organizada, estrutural e territorial. O texto aprovado contém
avanços significativos: novas possibilidades de cooperação internacional,
reforço à recuperação de ativos, medidas assecuratórias mais ágeis, melhor
definição dos crimes de dominação territorial. Esses dispositivos dialogam com
práticas bem-sucedidas em outros países, que enxergam no rastreamento
financeiro, na inteligência integrada e na atuação interinstitucional a
verdadeira espinha dorsal do combate ao crime organizado.
O problema é que, ao lado dessas
inovações maduras, persistem escolhas legislativas que parecem mais guiadas por
impulsos simbólicos do que por evidências empíricas. A falsa alegação de
pertencimento é uma delas. O legislador cria um tipo penal que pode gerar
encarceramento massivo de autores periféricos, aumentar litígios judiciais,
inflar estatísticas artificiais de “favorecimento” e, paradoxalmente, reforçar
a autoridade simbólica dos grupos que se pretende combater.
A tramitação no Senado oferece um
momento valioso para calibrar a resposta penal. A sociedade brasileira clama
por um sistema de segurança mais eficiente, menos permeável ao crime organizado
e mais capaz de proteger territórios vulneráveis. A construção desse caminho
não exige apenas rigor, mas sobretudo precisão. Uma lei que pune discursos com
mais severidade que atos pode satisfazer a ansiedade imediata por respostas
contundentes, mas dificilmente produzirá os resultados estruturais que o país
necessita. O desafio do parlamento, agora, é separar a retórica do fato, o
símbolo da ação e a política criminal eficaz da política criminal meramente
reativa.
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