quinta-feira, 17 de outubro de 2019

A influência dos fatores extrajurídicos no sistema de justiça criminal




O direito de ser julgado pelos próprios pares remonta à Magna Carta de 1215 e é considerado um dos pilares da democracia: com base neste princípio, a instituição do júri é adotada em boa parte dos países democráticos regidos pela common law, para julgar casos de maior gravidade.

O tribunal do Júri foi instituído no Brasil em 1822 para julgar crimes de imprensa e é responsável atualmente por julgar apenas os crimes dolosos contra a vida – principalmente os homicídios. Neste tipo de tribunal, cabe a um colegiado de populares sorteados para compor o Conselho de Sentença, declarar se o crime aconteceu e se o réu é culpado ou inocente. Desta forma, o magistrado decide conforme a vontade do júri, lê a sentença e fixa a pena, em caso de condenação. Entendida como uma forma de participação democrática, o corpo do júri é formado, em tese, por leigos, que decidem segundo sua livre convicção.

Antes de discutir a questão da composição social dos jurados, é preciso problematizar o conceito de “livre convicção”. Pesquisas psicológicas e de economia comportamental tem trazido cada vez mais evidências de que os julgamentos humanos – sejam do júri ou do juiz – e os testemunhos, mesmo oculares, são bastante falhos e sujeitos a erro. A livre convicção não passaria de uma ficção jurídica, necessária para legitimar as decisões do júri.

Estas pesquisas sugerem a existência de “processos cognitivos que atuam abaixo do nível de consciência. Racionalidade é limitada pelas emoções. Pessoas tem bastante dificuldade em exercer autocontrole. Elas percebem o mundo de maneira enviesada. Elas são profundamente influenciadas pelo contexto. Elas são predispostas ao pensamento grupal” (David Brooks, The Social Animal, 2012). Efeito Halo, heurística do afeto, aversão à perda, efeito de ancoragem, heurística da disponibilidade, falácia da conjunção, viés de confirmação, ilusões de habilidade, ilusão do foco, são apenas alguns dos fenômenos descobertos pelos psicólogos e que afetam nossa capacidade de avaliar racionalmente uma situação. (Kahneman, 2011)

A memória objetiva sobre fatos é afetada com o tempo e as pessoas cometem erros quando testemunham sobre crimes ocorridos meses antes. Como observa Brooks, entre 1989 e 2007, mais de 200 prisioneiros americanos foram inocentados com base em evidências de DNA. Mas 77% destes prisioneiros tinham sido condenados anteriormente com base em testemunhos oculares! (Brooks, 2012, p.237). O humor e a felicidade afetam a visão periférica das pessoas, assim como o nível de concentração nas tarefas realizadas naquele momento. Os estereótipos raciais afetam igualmente as avaliações, de modo inconsciente.

Existem estudos sérios (todavia engraçados) que corroboram estas deficiências. Um grupo de pessoas assiste a um jogo de basquete e os pesquisadores pedem para que prestem atenção nas trocas de passes entre os times. Focadas na tarefa, 46% delas simplesmente não conseguiram notar o homem fantasiado de gorila que passa pelo meio da quadra. Um assistente treinado pede informações sobre um endereço aos passantes. Quando a pessoa se distrai, o assistente é trocado por outra pessoa ou troca de cor de camisa. Poucos passantes percebem a troca e respondem as informações solicitadas para outra pessoa. A coisa perde a graça, contudo, quando se trata de uma testemunha de crime, tentando identificar o culpado, sem qualquer dúvida.

As falhas de cognição não afetam apenas testemunhas e jurados, mas também os juízes. Kahneman cita casos judiciais idênticos, mas que receberam decisões diferentes, apenas porque algumas decisões foram proferidas antes do almoço e outras depois. A fome e o cansaço parecem afetar o humor dos juízes ao proferir as sentenças, assim como o trânsito e brigas conjugais afetam o humor dos jurados. (Kahneman, 2011; Kaplan, 1977).

Os advogados parecem ter percebido muito bem a influência dos fatores sócio econômicos e demográficos do júri nas decisões judiciais. Tanto é assim que muitos praticam o que se convencionou chamar de “jury profiling”, técnica que usa pesquisas de opinião e matemática para escolher os jurados mais adequados para o caso. Pelo sistema legal americano, tanto a acusação quanto a defesa podem pedir a substituição de certos jurados e a seleção é feita  boa parte das vezes com base nas características do jurado, como gênero, idade ou cor – atributos que não deveriam ter nenhum influencia no veredicto, se a escolha fosse puramente racional. (Devlin & Lorden, 2007). No Brasil, acusação e defesa podem rejeitar até 3 jurados.

Exemplar, neste sentido, são as seis orientações do advogado criminalista Ivan Morais Ribeiro sobre como selecionar e se relacionar com os jurados. (https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/304506903/o-promotor-que-tirava-selfie-com-os-jurados). Entre outras observações desta literatura, está a de que “jurados sociólogos são mais maleáveis devido ao seu convívio com as realidades sociais” ou a de que, se a acusada de assassinato for uma mulher bonita, evite mulheres na composição do júri....

O problema da composição social do júri levanta a questão do que significa na verdade ser julgado pelos “seus pares”. Os jurados devem ser representativos do perfil da população local? Espelhar o perfil do acusado? A lei não esclarece este ponto, afirmando apenas que para fazer parte do corpo de jurados é preciso ter mais de 18 anos e “notória idoneidade”. Pesquisas empíricas sugerem que o perfil do jurado está longe de ser representativo, se usarmos o critério de perfil sócio econômico ou demográfico da população.

Analisando o perfil de 48 jurados da comarca do Recife em 1997, Vainsencher encontrou que os entrevistados são, em sua totalidade, funcionários da administração pública, na ativa ou já aposentados, do sexo masculino, com predominância de idade entre 40 e 59 anos, casados, com nível de instrução superior completo (a maior parte bacharel em Direito) e com experiência em Tribunal do Júri (tendo participado de 20 a 59 sessões). (VAINSENCHER, SEMIRA ADLER E DE FARIAS, ANGELA SIMÕES, 1997).

Numa amostra de 39 jurados colhida em Porto Alegre, Bello encontrou que metade dos jurados tinham 50 anos ou mais de idade, dois terços eram mulheres, 80% brancos e 78% com escolaridade superior, a maioria formada em direito. Desnecessário dizer que tal perfil difere bastante do perfil da população local e muito provavelmente do perfil dos acusados por homicídio doloso. (Bello, 2011). Na pesquisa do Paraná com 802 jurados, 30% dos homens tinham 50 ou mais anos, 65,6% tinham escolaridade superior (83,5% das mulheres - De Lima, 2015). Analisando o perfil de 112 jurados em Rondônia, de Souza encontrou 70% de mulheres (de Souza, 2016).

Como intuíram os advogados há muito tempo, estas diferenças implicam em diferentes propensões à condenação: na pesquisa de Tocantins, por exemplo, a média de condenações de 75% elevava-se a 83% na classe E, e para 78,8% entre os homens.

Este viés no perfil do jurado é claramente o reflexo do artigo 425, §2º do Código de Processo Penal, que determina que “o juiz presidente requisitará às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado.” Não se trata, portanto, de um sorteio aleatório a partir de uma listagem da população – procedimento que garantiria, segundo a lei dos grandes números, a representatividade com relação à população local. Trata-se antes do que chamaríamos de uma amostra de conveniência, que introduz grandes questionamentos com relação ao significado de “participação popular” ou “julgamento pelos pares”.

Vainsencher e de Farias procuraram levantar alguns fatores extrínsecos ao processo que poderiam afetar as decisões dos jurados de Recife. As autoras observaram, entre outras diferenças, “que alguns fatores de absolvição pesam diferentemente para os homens e para as mulheres. Essas últimas, por exemplo, levam em consideração, mais do que os homens, uma condenação em definitivo, da vítima, por crime de maior potencial ofensivo; o arrependimento; a presença de familiares no julgamento; a velhice; a posição de destaque na sociedade e o choro do acusado. A esse respeito, surge uma distinção relevante entre os sexos. Nela, é possível visualizar que os estímulos externos – os que podem suscitar sentimentos de remorso, pena e tristeza – parecem ser mais eficazes junto às representantes do sexo feminino. Isso pode ser explicado, talvez, pelo processo de socialização das mulheres, no qual os componentes emocionais, bem como a sua externalização, parecem ser menos reprimidos do que junto aos homens.” (VAINSENCHER, SEMIRA ADLER E DE FARIAS, ANGELA SIMÕES, 1997).

Além de perguntas sobre o perfil, os jurados do Paraná responderam também a uma bateria de questões sobre fatores que influenciam sua decisão: 4,9% dos homens são mais benevolentes quando o réu é muito pobre e 4,2% mais benevolentes se o réu tem cônjuge ou filhos. Por outro lado, 9,8% são mais rigorosos quando o réu é rico ou influente. Cerca de 1,5% afirmaram também ser mais benevolentes quando o réu tem boa aparência física ou chora durante o julgamento. A porcentagem chega a 7% entre os jurados evangélicos, se o choro é de arrependimento.

Com relação ao perfil das vítimas, 24% são mais rigorosos na avaliação se a vítima tiver cônjuge ou filhos. Finalmente, 6,6% dos jurados do sexo masculino julgam com menos rigor se o crime foi passional e 5,6% afirmam que a presença maciça nos tribunais de parentes e amigos do réu ou da vítima interfere na decisão. A “boa oratória” do promotor ou do advogado interfere nas decisões para 34% dos homens e 51,2% das mulheres. Um “discurso emocional” impacta no veredicto para 14,1% dos homens e 24,4% das mulheres. Outros fatores que influenciam as decisões são a cobertura intensa da imprensa e os comentários de amigos e vizinhos.

De Souza também incluiu no questionário com os 112 jurados do Tocantins questões sobre os fatores que afetavam suas decisões. A aparência do réu influencia o julgamento para 29% dos entrevistados e 56% afirmaram que a oratória do promotor ou do advogado influenciam muito no veredito (de Souza, 2016)

Desnecessário lembrar que estas circunstancias listadas são extrajurídicas e nos fazem pensar se não seria melhor ser julgado por um juiz togado, dependendo da composição do corpo de jurados.
A questão dos lapsos cognitivos e dos preconceitos é bem mais séria do que aparenta quando lembramos que não é apenas nos julgamentos com júri que a população colabora com a justiça criminal. Com efeito, durante todo o processo criminal, desde as etapas iniciais do inquérito, testemunhas prestam seus depoimentos sobre o ocorrido e identificam suspeitos.

Não se trata de desprezar as provas testemunhais ou questionar a validade das decisões do júri, que são feitas por maioria simples (4 votos dos 7 já bastam para a condenação). Mas de alertar que nossos testemunhos e julgamentos são bem menos racionais e imparciais do que imaginamos e que estamos todos sujeitos a falhas de memória, ilusões, preconceitos, predisposições e inúmeros outros fatores que afetam nossa percepção da realidade. E que os procedimentos para a escolha dos jurados geram resultados que estão longe de serem representativos. É possível aperfeiçoar os procedimentos para garantir testemunhos e decisões mais isentas.

O sistema de justiça criminal é tão falível quanto somos nós, seres humanos. Na melhor das hipóteses, as conclusões a que chega são probabilísticas. É preciso reduzir ao máximo estas eventuais falhas, quando se trata de condenar alguém a longos anos de prisão. Não há indenização que compense um erro judicial desta magnitude.

Bibliografia

·         Achor, Shawn. O jeito Harvard de ser feliz. Benvirá, 2012.
·         Brooks, David. The Social Animal. Randon House, 2011.
·         Devlin, Keith e Lorden, Gary. The Numbers behind NUMB3RS. Solving crime with mathematics. Plume, Penguin Book, 2007.
·         Kahneman, Daniel. Rápido e Devagar. Duas formas de pensar. Objetiva, 2011
·         Bello, Giovanni Macedo. O julgamento pelos seus pares: uma análise ao perfil dos jurados atuantes nos julgamentos do Tribunal do Júri de Porto Alegre, 2011
·         De Lima, Paulo Sérgio Markowicz. Perfil dos Jurados nas Comarcas do Paraná, Ministério Público do Paraná, 2015.
·         De Souza, Julia Rebonato. A INFLUÊNCIA DO PERFIL SOCIOECONÔMICO DOS JURADOS NOS VEREDICTOS DO TRIBUNAL DO JÚRI EM CACOAL-RO, 2016
·         VAINSENCHER, SEMIRA ADLER E DE FARIAS, ANGELA SIMÕES. Júri popular: algumas possibilidades de condenação ou absolvição. Revista de Informações Legislativas. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997

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