O direito de ser julgado pelos próprios
pares remonta à Magna Carta de 1215 e é considerado um dos pilares da
democracia: com base neste princípio, a instituição do júri é adotada em boa
parte dos países democráticos regidos pela common law, para julgar casos
de maior gravidade.
O tribunal do Júri foi instituído
no Brasil em 1822 para julgar crimes de imprensa e é responsável atualmente por
julgar apenas os crimes dolosos contra a vida – principalmente os homicídios.
Neste tipo de tribunal, cabe a um colegiado de populares sorteados para compor
o Conselho de Sentença, declarar se o crime aconteceu e se o réu é culpado ou inocente.
Desta forma, o magistrado decide conforme a vontade do júri, lê a sentença e
fixa a pena, em caso de condenação. Entendida como uma forma de participação
democrática, o corpo do júri é formado, em tese, por leigos, que decidem segundo
sua livre convicção.
Antes de discutir a questão da
composição social dos jurados, é preciso problematizar o conceito de “livre
convicção”. Pesquisas psicológicas e de economia comportamental tem trazido
cada vez mais evidências de que os julgamentos humanos – sejam do júri ou do
juiz – e os testemunhos, mesmo oculares, são bastante falhos e sujeitos a erro.
A livre convicção não passaria de uma ficção jurídica, necessária para
legitimar as decisões do júri.
Estas pesquisas sugerem a
existência de “processos cognitivos que atuam abaixo do nível de consciência.
Racionalidade é limitada pelas emoções. Pessoas tem bastante dificuldade em
exercer autocontrole. Elas percebem o mundo de maneira enviesada. Elas são
profundamente influenciadas pelo contexto. Elas são predispostas ao pensamento
grupal” (David Brooks, The Social Animal, 2012). Efeito Halo, heurística do afeto,
aversão à perda, efeito de ancoragem, heurística da disponibilidade, falácia da
conjunção, viés de confirmação, ilusões de habilidade, ilusão do foco, são
apenas alguns dos fenômenos descobertos pelos psicólogos e que afetam nossa
capacidade de avaliar racionalmente uma situação. (Kahneman, 2011)
A memória objetiva sobre fatos é
afetada com o tempo e as pessoas cometem erros quando testemunham sobre crimes
ocorridos meses antes. Como observa Brooks, entre 1989 e 2007, mais de 200
prisioneiros americanos foram inocentados com base em evidências de DNA. Mas
77% destes prisioneiros tinham sido condenados anteriormente com base em
testemunhos oculares! (Brooks, 2012, p.237). O humor e a felicidade afetam a
visão periférica das pessoas, assim como o nível de concentração nas tarefas
realizadas naquele momento. Os estereótipos raciais afetam igualmente as
avaliações, de modo inconsciente.
Existem estudos sérios (todavia
engraçados) que corroboram estas deficiências. Um grupo de pessoas assiste a um
jogo de basquete e os pesquisadores pedem para que prestem atenção nas trocas
de passes entre os times. Focadas na tarefa, 46% delas simplesmente não
conseguiram notar o homem fantasiado de gorila que passa pelo meio da quadra. Um
assistente treinado pede informações sobre um endereço aos passantes. Quando a
pessoa se distrai, o assistente é trocado por outra pessoa ou troca de cor de
camisa. Poucos passantes percebem a troca e respondem as informações solicitadas
para outra pessoa. A coisa perde a graça, contudo, quando se trata de uma
testemunha de crime, tentando identificar o culpado, sem qualquer dúvida.
As falhas de cognição não afetam
apenas testemunhas e jurados, mas também os juízes. Kahneman cita casos
judiciais idênticos, mas que receberam decisões diferentes, apenas porque
algumas decisões foram proferidas antes do almoço e outras depois. A fome e o
cansaço parecem afetar o humor dos juízes ao proferir as sentenças, assim como
o trânsito e brigas conjugais afetam o humor dos jurados. (Kahneman, 2011;
Kaplan, 1977).
Os advogados parecem ter
percebido muito bem a influência dos fatores sócio econômicos e demográficos do
júri nas decisões judiciais. Tanto é assim que muitos praticam o que se
convencionou chamar de “jury profiling”, técnica que usa pesquisas de opinião e
matemática para escolher os jurados mais adequados para o caso. Pelo sistema
legal americano, tanto a acusação quanto a defesa podem pedir a substituição de
certos jurados e a seleção é feita boa
parte das vezes com base nas características do jurado, como gênero, idade ou
cor – atributos que não deveriam ter nenhum influencia no veredicto, se a
escolha fosse puramente racional. (Devlin & Lorden, 2007). No Brasil, acusação e defesa podem
rejeitar até 3 jurados.
Exemplar, neste sentido, são as seis
orientações do advogado criminalista Ivan Morais Ribeiro sobre como selecionar
e se relacionar com os jurados. (https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/304506903/o-promotor-que-tirava-selfie-com-os-jurados).
Entre outras observações desta literatura, está a de que “jurados sociólogos
são mais maleáveis devido ao seu convívio com as realidades sociais” ou a de
que, se a acusada de assassinato for uma mulher bonita, evite mulheres na
composição do júri....
O problema da composição social do
júri levanta a questão do que significa na verdade ser julgado pelos “seus pares”.
Os jurados devem ser representativos do perfil da população local? Espelhar o
perfil do acusado? A lei não esclarece este ponto, afirmando apenas que para
fazer parte do corpo de jurados é preciso ter mais de 18 anos e “notória
idoneidade”. Pesquisas empíricas sugerem que o perfil do jurado está longe de
ser representativo, se usarmos o critério de perfil sócio econômico ou
demográfico da população.
Analisando o perfil de 48 jurados
da comarca do Recife em 1997, Vainsencher encontrou que os entrevistados são,
em sua totalidade, funcionários da administração pública, na ativa ou já
aposentados, do sexo masculino, com predominância de idade entre 40 e 59 anos,
casados, com nível de instrução superior completo (a maior parte bacharel em
Direito) e com experiência em Tribunal do Júri (tendo participado de 20 a 59 sessões).
(VAINSENCHER, SEMIRA ADLER E DE FARIAS, ANGELA SIMÕES, 1997).
Numa amostra de 39 jurados
colhida em Porto Alegre, Bello encontrou que metade dos jurados tinham 50 anos
ou mais de idade, dois terços eram mulheres, 80% brancos e 78% com escolaridade
superior, a maioria formada em direito. Desnecessário dizer que tal perfil
difere bastante do perfil da população local e muito provavelmente do perfil
dos acusados por homicídio doloso. (Bello, 2011). Na pesquisa do Paraná com 802
jurados, 30% dos homens tinham 50 ou mais anos, 65,6% tinham escolaridade
superior (83,5% das mulheres - De Lima, 2015). Analisando o perfil de 112
jurados em Rondônia, de Souza encontrou 70% de mulheres (de Souza, 2016).
Como intuíram os advogados há muito
tempo, estas diferenças implicam em diferentes propensões à condenação: na
pesquisa de Tocantins, por exemplo, a média de condenações de 75% elevava-se a
83% na classe E, e para 78,8% entre os homens.
Este viés no perfil do jurado é
claramente o reflexo do artigo 425, §2º do Código de Processo Penal, que
determina que “o juiz presidente requisitará às autoridades locais, associações
de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de
ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros
núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para
exercer a função de jurado.” Não se trata, portanto, de um sorteio aleatório a
partir de uma listagem da população – procedimento que garantiria, segundo a
lei dos grandes números, a representatividade com relação à população local.
Trata-se antes do que chamaríamos de uma amostra de conveniência, que introduz
grandes questionamentos com relação ao significado de “participação popular” ou
“julgamento pelos pares”.
Vainsencher e de Farias
procuraram levantar alguns fatores extrínsecos ao processo que poderiam afetar
as decisões dos jurados de Recife. As autoras observaram, entre outras diferenças,
“que alguns fatores de absolvição pesam diferentemente para os homens e para
as mulheres. Essas últimas, por exemplo, levam em consideração, mais do que os
homens, uma condenação em definitivo, da vítima, por crime de maior potencial
ofensivo; o arrependimento; a presença de familiares no julgamento; a velhice;
a posição de destaque na sociedade e o choro do acusado. A esse respeito, surge
uma distinção relevante entre os sexos. Nela, é possível visualizar que os
estímulos externos – os que podem suscitar sentimentos de remorso, pena e
tristeza – parecem ser mais eficazes junto às representantes do sexo feminino.
Isso pode ser explicado, talvez, pelo processo de socialização das mulheres, no
qual os componentes emocionais, bem como a sua externalização, parecem ser
menos reprimidos do que junto aos homens.” (VAINSENCHER, SEMIRA ADLER E DE
FARIAS, ANGELA SIMÕES, 1997).
Além de perguntas sobre o perfil,
os jurados do Paraná responderam também a uma bateria de questões sobre fatores
que influenciam sua decisão: 4,9% dos homens são mais benevolentes quando o réu
é muito pobre e 4,2% mais benevolentes se o réu tem cônjuge ou filhos. Por
outro lado, 9,8% são mais rigorosos quando o réu é rico ou influente. Cerca de
1,5% afirmaram também ser mais benevolentes quando o réu tem boa aparência
física ou chora durante o julgamento. A porcentagem chega a 7% entre os jurados
evangélicos, se o choro é de arrependimento.
Com relação ao perfil das
vítimas, 24% são mais rigorosos na avaliação se a vítima tiver cônjuge ou
filhos. Finalmente, 6,6% dos jurados do sexo masculino julgam com menos rigor
se o crime foi passional e 5,6% afirmam que a presença maciça nos tribunais de
parentes e amigos do réu ou da vítima interfere na decisão. A “boa oratória”
do promotor ou do advogado interfere nas decisões para 34% dos homens e 51,2%
das mulheres. Um “discurso emocional” impacta no veredicto para 14,1% dos
homens e 24,4% das mulheres. Outros fatores que influenciam as decisões são a
cobertura intensa da imprensa e os comentários de amigos e vizinhos.
De Souza também incluiu no
questionário com os 112 jurados do Tocantins questões sobre os fatores que
afetavam suas decisões. A aparência do réu influencia o julgamento para 29% dos
entrevistados e 56% afirmaram que a oratória do promotor ou do advogado
influenciam muito no veredito (de Souza, 2016)
Desnecessário lembrar que estas
circunstancias listadas são extrajurídicas e nos fazem pensar se não seria melhor
ser julgado por um juiz togado, dependendo da composição do corpo de jurados.
A questão dos lapsos cognitivos e
dos preconceitos é bem mais séria do que aparenta quando lembramos que não é apenas
nos julgamentos com júri que a população colabora com a justiça criminal. Com
efeito, durante todo o processo criminal, desde as etapas iniciais do
inquérito, testemunhas prestam seus depoimentos sobre o ocorrido e identificam
suspeitos.
Não se trata de desprezar as
provas testemunhais ou questionar a validade das decisões do júri, que são
feitas por maioria simples (4 votos dos 7 já bastam para a condenação). Mas de
alertar que nossos testemunhos e julgamentos são bem menos racionais e
imparciais do que imaginamos e que estamos todos sujeitos a falhas de memória,
ilusões, preconceitos, predisposições e inúmeros outros fatores que afetam
nossa percepção da realidade. E que os procedimentos para a escolha dos jurados
geram resultados que estão longe de serem representativos. É possível
aperfeiçoar os procedimentos para garantir testemunhos e decisões mais isentas.
O sistema de justiça criminal é
tão falível quanto somos nós, seres humanos. Na melhor das hipóteses, as
conclusões a que chega são probabilísticas. É preciso reduzir ao máximo estas
eventuais falhas, quando se trata de condenar alguém a longos anos de prisão. Não
há indenização que compense um erro judicial desta magnitude.
Bibliografia
·
Achor, Shawn. O jeito Harvard de ser feliz. Benvirá, 2012.
·
Brooks,
David. The Social Animal. Randon House, 2011.
·
Devlin,
Keith e Lorden, Gary. The Numbers behind NUMB3RS. Solving crime with
mathematics. Plume, Penguin Book, 2007.
·
Kahneman, Daniel. Rápido e Devagar. Duas formas
de pensar. Objetiva, 2011
·
Bello, Giovanni Macedo. O julgamento pelos seus
pares: uma análise ao perfil dos jurados atuantes nos julgamentos do Tribunal
do Júri de Porto Alegre, 2011
·
De Lima, Paulo Sérgio Markowicz. Perfil dos
Jurados nas Comarcas do Paraná, Ministério Público do Paraná, 2015.
·
De Souza, Julia Rebonato. A INFLUÊNCIA DO PERFIL
SOCIOECONÔMICO DOS JURADOS NOS VEREDICTOS DO TRIBUNAL DO JÚRI EM CACOAL-RO,
2016
·
VAINSENCHER, SEMIRA ADLER E DE FARIAS, ANGELA
SIMÕES. Júri popular: algumas possibilidades de condenação ou absolvição.
Revista de Informações Legislativas. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997
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