Se pegarmos um copo de água numa
temperatura de 15 graus celsius e o resfriarmos por alguns minutos numa
geladeira até uns 10 graus, teremos uma água mais fria, mas ainda assim
beberemos um bom copo de água em estado líquido, apenas mais fresquinha. Se quisermos
ter água morna para sopa, por sua vez, colocamos esta água no fogão por alguns
minutos – até que ela chegue, por exemplo, aos 70 graus. Novamente, o resultado
será água, apenas mais aquecida.
A conclusão (falaciosa) baseada
nesta experimentação é que água continua sendo água, não importa se a resfriamos
ou aquecemos. Em outras palavras, que não existiria uma relação entre a
temperatura e o estado da água.
No entanto, todos sabemos desde a
escola, que se aquecermos a água a 100 graus celsius (na verdade, depende da
pureza e pressão atmosférica, mas não vamos complicar o argumento) a água entra
em ebulição e começa a evaporar. E se a resfriamos a zero grau, ela congela. Assim,
o que vemos no clássico exemplo tirado das ciências da natureza, é que a
relação entre temperatura e estado da água é não linear.
Não observamos o efeito por que
não houve variação suficiente no nosso experimento, que variou a temperatura
apenas entre 15º e 70º. Todavia, existem dois pontos de inflexão (0, 100) abaixo
ou acima dos quais a água muda simplesmente de natureza, passando para sólida ou
gasosa. [1]
O gráfico abaixo ilustra o que é um
ponto de inflexão, que pode ser determinado algebricamente calculando a segunda
derivada da função, encontrando o momento da transição da curva, onde ela muda
de sinal. Trata-se de uma relação não linear entre as variáveis X e Y, mas a
relação existe e só se mostra observável a partir de certo limiar. No
gráfico abaixo, uma relação que era logarítmica se transforma em exponencial, a
partir do ponto de inflexão.
Estamos acostumados a pensar na
relação entre dois fenômenos como uma relação linear, direta ou inversa, com
raciocínios do tipo: quanto maior a escolaridade do indivíduo, maior a renda.
Quanto maior o número de jovens na população, maior a taxa de homicídios.
Quanto maior a quantidade de policiais nas ruas, menor a criminalidade, etc.
Isto talvez seja uma adaptação evolutiva, que, aliás, é igualmente linear... Nossas
técnicas e coeficientes estatísticos, como os conhecidos coeficientes R de
Pearson ou a análise de regressão, são em geral voltadas para encontrar e
mensurar relações deste tipo.
Ocorre que, assim como nas
ciências naturais, encontramos também nas ciências sociais fenômenos que não se
relacionam de forma linear, mas que podem assumir vários outros formatos:
logarítmicos, exponenciais, cíclicos, etc. Fenômenos que passam a se manifestar
apenas a partir de um certo acumulo quantitativo. Os marxistas reconheciam esta
característica quando falavam da transformação da quantidade em qualidade, ou
seja, do momento em que o acumulo quantitativo de alguma variável culminava
numa transformação de natureza qualitativa. (A Revolução, claro, representava
um salto qualitativo, não linear, depois do acumulo de crises capitalistas).
O problema reside em que
geralmente assumimos que dois fenômenos são não relacionados ou fracamente
relacionados quando na verdade eles são apenas não lineares. Há uma grande
quantidade de artigos na literatura criminológica que procurara relacionar os
efeitos do aumento dos policiais, das prisões e dos gastos em segurança sobre
os indicadores sociais. A maioria deles encontrou correlações baixas ou
inexistentes (frequentemente negativas, devido à causalidade reversa). Isto se
deve à ausência de relação entre as variáveis ou à falta de variação no nosso
experimento? E se o impacto for observado apenas a partir de certo patamar
quantitativo? Estamos preocupados em calcular “elasticidades” nos nossos
modelos matemáticos do mundo, mas não podemos esquecer que o fenômeno estudado
pode simplesmente ser não linear, como no exemplo da temperatura da água. E que
não tenhamos variação suficiente no nosso experimento para verificar seus
efeitos.
O caso do número de policiais é
ilustrativo. Em condições normais de temperatura e pressão, a quantidade de
policiais afeta pouco os índices criminais. Mas sabemos o que acontece quando o
policiamento cai à zero, como no caso das greves policiais, quando os crimes explodem.
Sabemos também o efeito em operações do tipo saturação, onde uma grande
quantidade de policiais é colocada numa pequena área geográfica: os crimes caem
– e aqui o programa “Em Frente, Brasil”, do governo Federal é um exemplo
típico. É possível, portanto, que no
caso de quantidade de policiais, prisões e investimentos, os efeitos sejam
discerníveis apenas a partir de determinado patamar.
É certo que existem estes pontos
de inflexão em algum lugar da escala. Tenho certeza de que se investirmos 90%
do orçamento público em segurança, contratarmos um policial para cada 50
habitantes e prendermos 1 a cada 4 jovens do sexo masculino, observaremos um efeito
sobre a criminalidade. A questão não é sobre a existência ou não destes tipping
points. A questão é até que ponto é desejável e factível investir recursos
públicos nesta magnitude, até que estes efeitos benéficos sobre o crime sejam visíveis.
No fundo, trata-se de uma questão
meta-estatística e de natureza política e moral. Até que ponto, enquanto
sociedade, queremos investir nisso? Se o ponto de inflexão for demasiado
elevado, vale a pena aplicar 90% do orçamento em segurança, contratar 1
policial para cada 50 habitantes ou prender 1 a cada 4 jovens? Não existiriam
alternativas menos custosas, econômico e socialmente, que levariam aos mesmos
resultados?
Uma primeira tarefa relevante
seria identificar em que lugares da escala estão estes pontos de inflexão, ou
seja, a partir de que patamar a política começa a fazer efeito. O Ministério da
Justiça aponta que no primeiro mês do programa “Em Frente Brasil”, os
homicídios caíram 53% e os roubos 33,9% nas cidades piloto escolhidas e que “no
período, foi empregado nos cinco municípios um efetivo médio de 883 pessoas e
321 viaturas por dia”. É o que esperaríamos numa situação típica de saturação. O
problema é que é economicamente inviável fazer um projeto desta magnitude em
muitos municípios.
Mas o que acontece com os
homicídios e roubos se utilizarmos apenas 600 policiais e 200 viaturas? E se
foram utilizados 400 policiais e 100 viaturas? Em outras palavras, precisamos
saber a partir de que magnitude a quantidade de policiais e viaturas começa a
impactar nos níveis de criminalidade e é possível definir isto
experimentalmente, através de um design de pesquisa chamado quadrado latino. Se
bem conduzido, tendo em mente este design experimental, este pode ser um dos
maiores méritos do programa federal.
Para a comunidade acadêmica
sugiro deixarmos um pouco de lado a obsessão pelas associações lineares, pelos
coeficientes R e elasticidades gigantes. Podemos aliar a estes modelos a busca
pelos pontos de inflexão e a busca por outros “formatos”, mais instigantes,
como as curvas logarítmicas e exponenciais[2]
e os ciclos. Pois assim como a terra não é plana, nem toda a relação entre dois
fenômenos sociais assume a forma ou pode ser explicado pela equação geral da
reta.
[1] Tecnicamente
a fervura a 100 graus não seria um ponto de inflexão algébrico, pois não há
mudança de sinal. Mas isto se deve ao modo arbitrário como foi construída a
escala Celsius, onde o ponto de congelamento foi escolhido como ponto zero.
[2] Uma
associação logarítmica é o exemplo, digamos, de uma variável que não melhora, a
partir de certo patamar, não importa o quanto acrescentemos da outra variável
independente. Acréscimos de recursos nesta variável teriam rendimentos
marginais decrescentes e seriam, em bom português, um desperdício de dinheiro
público. Uma curva exponencial, por seu lado, ilustra uma política que traz
efeitos multiplicadores: um pequeno incremento na variável independente
implicaria numa melhora mais do que proporcional na variável dependente.
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