O tráfico de drogas é um crime
diferente dos demais. Nele não há “vítimas”, ou a vítima é a sociedade como um
todo, como entendem alguns. Traficantes e usuários estão engajados numa
situação similar a de um vendedor e um comprador, que estabelecem uma transação
comercial ilícita, de comum acordo.
Neste sentido, talvez seja
possível utilizar algumas ferramentas da economia para entender o funcionamento
deste mercado. Será que drogas são mercadorias como outras quaisquer e este
mercado funciona como outros mercados lícitos? Que forças influenciam a oferta,
a demanda e os preços no mercado de drogas?
O gráfico abaixo é encontrado em
quase todos os manuais introdutórios de economia e ilustra como o equilíbrio de
preços (E) é formado pela intersecção das curvas de demanda (D) e oferta (S).
Ilustra também graficamente as situações de escassez e abundância e como elas
afetam as quantidades e preços.
Efeito dos ciclos econômicos
Com efeito, existem indícios de
que o mercado de drogas segue em alguma medida as leis da oferta e da procura,
como outros mercados. No gráfico abaixo vemos a variação trimestral das
ocorrências de tráfico de drogas em São Paulo, comparada ao mesmo período do
ano anterior. Ocorrências de tráfico são influenciadas pelo esforço policial
maior ou menor em cada momento e não são um indicador perfeito da quantidade de
drogas comercializada. Todavia, exceto em situações especiais, o esforço
policial no combate ao tráfico é mais ou menos constante. Significa dizer que
as variações na série de tráfico refletem em sua maior parte as variações na
quantidade de drogas em circulação e menos as variações na atividade policial.
Notem-se, por exemplo, as
variações negativas encontradas precisamente nos anos de 2003, 2009 e 2014,
anos nos quais o país passou por ciclos recessivos, diminuindo renda e
empregos.
Como
esperado pela teoria, a diminuição da renda durante os ciclos recessivos
desloca para baixo a curva da demanda (D) e como esperado isto aparentemente
afeta a quantidade de drogas em circulação, como corroborado pelo gráfico
acima, se aceitarmos a premissa de que as ocorrências medem razoavelmente o
fenômeno. (observe-se de passagem que nos últimos trimestres as variações são
negativas, sugerindo que estamos passando por novo ciclo de penúria econômica…).
Segundo
a teoria, esta diminuição da renda e da demanda deveria gerar um novo
equilíbrio de preços, deslocando o ponto de equilíbrio para baixo.
Infelizmente, não temos os dados que comprovem que os preços foram afetados
nestes momentos de crise.
Em
todo caso, os dados disponíveis sobre ocorrências de tráfico sugerem acima que
o mercado de drogas funciona mais ou menos como os outros mercados, diminuindo
a quantidade de mercadorias demandadas e em circulação quando a renda cai.
Existem,
contudo, vários fatores que podem afetar o comportamento deste mercado ilícito.
Em primeiro lugar, é possível especular que exista uma inelasticidade no
consumo com relação ao preço. Explicando melhor: algumas drogas como heroína e
crack são altamente viciantes, assim como a nicotina e o álcool (a maconha,
especificamente, produz dependência menor do que a nicotina e o álcool). Isto
significa que mesmo que o preço aumente - dentro de certo limite - a demanda
não será tão afetada, pois os dependentes pagarão preços maiores para manter o vício. Esta inelasticidade do mercado de drogas,
portanto, afeta as leis da oferta e da procura. Os viciados manterão a demanda
aquecida. Os menos dependentes, contudo, deixarão de consumir. Este grau de
elasticidade varia em função do tipo de droga e seu potencial de dependência.
A
repressão policial é outro fator que afeta este mercado e os ciclos de maior ou
menor repressão não seguem necessariamente os ciclos econômicos. É provável que
sigam antes os ciclos eleitorais, quando candidatos e novos governantes
prometem “jogar duro” contra o tráfico. Ou ainda a entrada de novos comandantes
nas polícias ou a retribuição por alguma ação ousada por parte dos traficantes.
Em tese, o aumento da repressão policial ao tráfico desloca a curva da oferta
(S) para baixo. Isto implica na diminuição da quantidade de drogas em
circulação em virtude do aumento do risco e um deslocamento do ponto de
equilíbrio, aumentando o preço das drogas.
Há um risco aqui de que a elevação demasiada
do preço de determinadas drogas estimule o consumidor a trocar de mercadoria,
substituindo, por exemplo, a cocaína e a maconha pelo crack. Trata-se de um
dano colateral que é preciso levar em conta. A evolução dos equipamentos de
segurança contra roubo nos carros fez surgir em alguns países a modalidade de
sequestro do motorista, para garantir que o carro possa ser levado. A epidemia
de crack no país pode talvez ser explicada não apenas pela diminuição da renda
da população (que opta por uma mercadoria mais barata), mas eventualmente também pelo aumento da repressão ao tráfico,
que em tese encarece o preço de todas as drogas.
Outro possível efeito colateral
do aumento de preços é a piora na qualidade da droga comercializada. Para
manter os preços acessíveis, os traficantes podem “batizar” a droga com outros
produtos, prejudiciais à saúde do consumidor.
Com
efeito, os dados do sistema de justiça prisional sugerem que traficar ficou
mais arriscado nas últimas décadas. Cada vez mais recursos do sistema são
utilizados na repressão ao tráfico, crime que representa hoje ⅓ dos motivos de
prisão no Brasil. Pela teoria, este fenômeno deveria ter produzido: uma
diminuição na oferta de drogas, um aumento nos preços, um deslocamento para o
consumo de drogas mais baratas, uma piora na qualidade da droga e uma
diminuição nos níveis de consumo. Infelizmente, novamente não existem dados
empíricos disponíveis para corroborar estes efeitos.
Mas
é possível imaginar que a repressão policial tenha um impacto reduzido na oferta
de drogas. Talvez ela se direcione apenas à uma pequena parcela de pequenos
traficantes, deixando a maior parte do mercado intocada. Como não sabemos ao
certo o tamanho deste mercado, tampouco sabemos ao certo que parcela é afetada
pela repressão policial. Especula-se que as drogas apreendidas pela polícia
representem apenas uma pequena parcela das drogas em circulação mas é difícil
estimar a quantidade que ela representa.
É
preciso levar em conta adicionalmente o gigantesco exército de reserva - jovens
que nem trabalham nem estudam - existente nas comunidades pobres. Traficar pode
estar se tornando mais arriscado com o tempo em razão da repressão, mas as
alternativas no mercado formal são escassas e existe uma grande quantidade de
jovens disposta a substituir os que foram presos. A escassez no mercado de
trabalho poderia aumentar a propensão ao risco, de modo que a oferta de drogas
se manteria constante, não obstante o aumento da repressão.
Ainda
pensando no lado da oferta, o grau de competitividade entre os vendedores
também pode afetar o ponto de equilíbrio dos preços. Umas das características
do monopólio é que ele tem grande poder de influência sobre os preços. Assim,
por exemplo, alguns estudos etnográficos sugerem que a venda de drogas, em
especial no atacado, seria praticamente monopolizada em alguns Estados (como
São Paulo, onde seria monopolizada pelo PCC) enquanto em outros Estados
existiria concorrência entre facções vendedoras. O monopólio pode criar um preço acima do
ponto de equilíbrio, provocado pela ausência de concorrência. Sendo corretas as
descrições etnográficas e outros fatores sendo iguais, o preço das drogas
deveria ser maior em São Paulo do que, por exemplo, no Rio de Janeiro e outros
estados onde a venda de drogas é competitiva.
Uma
comparação dos mercados de drogas no Rio e em São Paulo seria muito
interessante para verificarmos empiricamente até que ponto o mercado de drogas
segue realmente as leis da economia. Os dados da tabela abaixo estão desatualizados,
mas servem como um esquema teórico para pensar no que deveria ocorrer com o
preço da droga nas duas cidades, usando os supostos teóricos econômicos e dados
de algumas poucas pesquisas empíricas.
Fatores
|
RJ
|
SP
|
preço
|
renda média domiciliar per
capita (IBGE, 2018)
|
R$ 1.689
|
R$ 1.898
|
> em SP
|
Porcentagem de estudantes
do ensino fundamental e médio das redes municipal e estadual com uso na vida
de drogas psicotrópicas em geral (exceto álcool e tabaco) por gênero e faixa
etária. Capitais. (Relatório Brasileiro sobre drogas, 2010)
|
22,3%
|
23,1%
|
> em SP
|
grau de repressão
(pensando nos confrontos do tráfico com a polícia)
|
alto
|
baixo
|
> em RJ
|
grau de monopólio
|
baixo
|
alto
|
> em SP
|
Proporção de pessoas de 14 anos ou mais de idade,
ocupadas na semana de referência em trabalhos formais[2018] IBGE -Cidades
|
65,9%
|
69,3%
|
> em RJ
|
A
renda média domiciliar é maior em São Paulo, aumentando a demanda, de modo que
o preço deveria ser maior do que no Rio. Também é ligeiramente maior a
porcentagem de jovens que já usaram droga na vida, atuando no mesmo sentido. O
monopólio do PCC no atacado da droga também contribuiria, finalmente, para
aumentar o preço da droga em São Paulo, comparativamente. Por outro lado, o
grau de repressão policial maior no Rio de Janeiro, ao menos no que se refere
às mortes de traficantes, tornaria a atividade mais arriscada, diminuindo a oferta e aumentando preços. Mas
a proporção de desocupados no Rio é um pouco maior, o que pode contribuir para
manter a oferta constante, apesar do risco maior.
No
final das contas as diferenças entre as cidades não são tão grandes e talvez os
preços se equilibrem, pois os fatores se contrabalançam, atuando ora numa, ora
noutra direção. Dificilmente os agentes têm conhecimento destes fatores, de
modo a produzir um ajuste fino nos preços. Trata-se de um mercado bastante
imperfeito, afetado como vimos pela inelasticidade do consumo, ciclos
políticos, monopólios, exército de trabalhadores na reserva, etc.
Para
entender o real funcionamento deste mercado seriam necessários mais e melhores
informações: estimativas sistemáticas de consumo, por ano e Estado, um banco de
dados sobre qualidade e preço mensal das diferentes drogas por Estado, um
indicador não enviesado da quantidade de drogas em circulação, detalhes sobre a
magnitude das operações policiais de repressão, informações sobre faturamento,
número de pessoas envolvidas no tráfico, entre outras. Estas informações são
importantes para avaliarmos se as políticas de repressão ou prevenção colocadas
em prática pelo Estado para coibir o consumo de drogas funcionam ou não.
No
momento inexiste a maior parte destas informações que poderiam fornecer um
teste empírico sobre o funcionamento deste mercado e avaliar como as políticas
públicas interferem na sua dinâmica. O que podemos fazer é apenas especulação
teórica.
De
todo modo, mesmo desconhecendo como funcionam estes mercados, as sociedades
democráticas definiram à priori que uma boa política pública nesta área deve
ter por objetivos, entre outros, reduzir o consumo, reduzir a oferta, reduzir
os danos à saúde e reduzir o poderio das organizações criminosas. Não existem
pesquisas metodologicamente rigorosas no Brasil para avaliar se estes objetivos
estão sendo alcançados. Numa opinião pouco embasada em evidências, à primeira
vista diria que caminhamos em sentido contrário. Os otimistas dirão que poderia
ser ainda pior...
Instituto Sou da Paz. APREENSÕES
DE DROGAS NO ESTADO DE SÃO PAULO. Um raio-x das apreensões de drogas segundo
ocorrências e massa. 2018
Bhaskar, V., Robin
Linacre, and Stephen Machin. "The economic functioning of online drugs
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Galenianos, Manolis, and Alessandro Gavazza. "A structural
model of the retail market for illicit drugs." American Economic Review 107.3 (2017):
858-96.
Groshkova, Teodora, et
al. "Drug affordability–potential tool for comparing illicit drug
markets." International Journal of Drug Policy 56 (2018): 187-196.
Moeller, Kim. "Drug market criminology: Combining
economic and criminological research on illicit drug markets." International Criminal Justice Review 28.3 (2018):
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