quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Queda da criminalidade no Brasil: características e interpretações.



O economista Alfred Marchall dizia que a história nos apresenta a sequencia dos fatos e suas coincidências, mas que cabe à razão como interpretá-los. Complementando o raciocínio, diria que a interpretação deve ser condizente com a sequencia de fatos e coincidências, o que nem sempre é o caso.

Tomemos a queda recente da criminalidade no Brasil e suas interpretações. O que sabemos sobre as características do fenômeno? A tabela abaixo examina as variações trimestrais de vários crimes, de 2016 a 2019, comparando com o mesmo período do ano anterior.

Variação % com relação ao mesmo período do ano anterior – janeiro a março

2016
2017
2018
2019
Qtde de UFs em queda em 2019
Homicídio doloso
3,7
5,9
-11
-22,2
22
Tentativa de homicídio
-7
-3
-8
-11
20
Estupro
3
3
10
-10
16
Roubo de veículo
10
10
-8
-28
21
Furto de veículo
2,8
-3,7
-8,2
-11
20
Roubo seguido de morte
12,6
11,4
-24,
-21,7
22
média
4,1
3,9
-8,2
-17,3
20,1
Fonte: Sinesp

A tabela nos apresenta diversos fatos: 1) as quedas atingem todos os crimes; 2) as quedas começaram aproximadamente em 2017; 3) as quedas são generalizadas pelos Estados e 4) as quedas foram agudas, especialmente em 2019, e se intensificaram com o tempo.

Quaisquer que sejam as interpretações sobre o que está ocorrendo, elas precisam explicar ou ao menos se adequar a estas características. As explicações que vem sendo apresentadas pelos governos e especialistas, contudo, parecem não dar conta desta realidade. Entre as interpretações apresentadas vimos as mudanças demográficas, prisão dos líderes das facções nos presídios federais, pacificação da luta entre as facções criminais, projetos de segurança pública colocados em prática pelos governos estaduais ou pelo governo federal e a melhora do cenário econômico, entre outras. É possível pensar que várias delas estejam ocorrendo simultaneamente e é difícil distinguir seus efeitos na realidade sem a utilização de designs de pesquisa mais sofisticados.

De todo modo, apenas para formarmos um mapa mental do fenômeno, coloquemos numa matriz as características observadas da queda e suas interpretações e vejamos quais delas se adequam melhor ou pior às estas características.

  

Matriz de interpretações X características da queda
Interpretações para a queda
As quedas atingem todos os crimes
As quedas começaram aproximadamente em 2017
As quedas são generalizadas pelos Estados
As quedas são agudas e se intensificaram com o tempo.

Mudanças demográficas
Explica melhor queda dos homicídios, mas não queda de outros crimes
Mudanças demográficas são lineares e não explicam a inflexão em 2017
Sim, trata-se de uma mudança nacional, ainda que em diferentes ritmos
Mudanças demográficas são lentas e não se intensificaram em 2019
Prisão dos líderes das facções
Não explica queda de crimes não organizados, especialmente patrimoniais
Ocorreram apenas em 2019
Apenas facções de alguns Estados foram afetadas
Explica em parte a intensificação da queda em 2019
Pacificação entre as facções
Não explica queda de crimes não organizados, especialmente patrimoniais
Não há evidências de que tenham ocorrido simultaneamente, em 2017
Não há conflito e portanto não há pacificação na maioria dos Estados
Não explica intensificação da queda em 2019
Projetos Federais do governo Temer: Sinesp, Plano Nacional de Segurança Pública, Ministério da Segurança
Projetos estruturantes, mas que não foram implementados com a intensidade suficiente para induzir as quedas
Ocorreram apenas em 2018
Sim, trata-se de iniciativas de abrangência nacional
Não explica intensificação da queda em 2019
Projetos estaduais de segurança
Dependendo do projeto, pode explicar a queda em diversos tipos de crimes
Improvável que vários deles tenham começado a demonstrar impacto precisamente em 2017
Não existem projetos impactantes na maioria dos Estados
Projetos de impacto tendem a provocar quedas agudas e poderiam explicar intensificação em 2019
Cenário macroeconômico
Melhora do cenário econômico impacta na redução de todos os crimes, em especial os patrimoniais
Depois da crise de 2014 a 2016, o cenário macroeconômico começa a mudar precisamente a partir de 2017
A melhora do cenário macroeconômico atinge a todos os Estados simultaneamente
Melhora no cenário econômico pode produzir mudanças agudas, mas não explica intensificação das quedas em 2019

Assim, pelo que se depreende do quadro, é possível invocar mudanças demográficas se quisermos entender porque a tendência de queda é generalizada, é plausível que a prisão dos líderes das facções em presídios federais tenha intensificado a queda de alguns crimes em 2019, é possível que alguns projetos de impacto adotados em alguns Estados expliquem porquê a queda não se concentrou apenas nos homicídios e porquê se intensificaram em 2019. Todavia, as mudanças no cenário macroeconômico parecem ser, no geral, as que melhor se ajustam as características observadas da queda. A que melhor se adequa “a sequencia de fatos e coincidências” históricas.

A explicação baseada nas mudanças no cenário macroeconômico não é uma explicação ex-post-facto, como a maioria das interpretações apresentadas. Há toda uma literatura trazendo evidências de como PIB, desemprego, expectativas de consumo e outros indicadores econômicos afetam os ciclos de criminalidade. A retomada do crescimento econômico aumenta a renda e diminui o desemprego, diminui os roubos, diminui a sensação de insegurança. Com isso há menos armas em circulação e menos homicídios. Coletam-se mais impostos e aumentam os orçamentos públicos em segurança e os indivíduos investem mais em proteção pessoal. Embora a economia esteja longe ainda do que estava no período pré 2014, a melhora é visível se comparada ao período de crise de 2014 a 2016 – que catapultou os índices criminais em 2017.

Observe-se, contudo que estamos examinando aqui apenas os ajustes “lógicos” entre a morfologia da queda e tipos de interpretações e variáveis explicativas. O teste lógico já ajuda a refutar algumas conjecturas e a corroborar outras. Mas é preciso submeter estas conjecturas aos testes de realidade, através do levantamento de dados e de pesquisas empíricas baseadas em evidências. Se não conseguimos entender por que os crimes estão caindo, dificilmente conseguiremos saber como continuar estimulando esta queda.

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