O economista Alfred Marchall
dizia que a história nos apresenta a sequencia dos fatos e suas coincidências,
mas que cabe à razão como interpretá-los. Complementando o raciocínio, diria
que a interpretação deve ser condizente com a sequencia de fatos e
coincidências, o que nem sempre é o caso.
Tomemos a queda recente da
criminalidade no Brasil e suas interpretações. O que sabemos sobre as
características do fenômeno? A tabela abaixo examina as variações trimestrais de
vários crimes, de 2016 a 2019, comparando com o mesmo período do ano anterior.
Variação % com relação ao mesmo
período do ano anterior – janeiro a março
|
2016
|
2017
|
2018
|
2019
|
Qtde de UFs em
queda em 2019
|
Homicídio doloso
|
3,7
|
5,9
|
-11
|
-22,2
|
22
|
Tentativa de
homicídio
|
-7
|
-3
|
-8
|
-11
|
20
|
Estupro
|
3
|
3
|
10
|
-10
|
16
|
Roubo de veículo
|
10
|
10
|
-8
|
-28
|
21
|
Furto de veículo
|
2,8
|
-3,7
|
-8,2
|
-11
|
20
|
Roubo seguido de
morte
|
12,6
|
11,4
|
-24,
|
-21,7
|
22
|
média
|
4,1
|
3,9
|
-8,2
|
-17,3
|
20,1
|
Fonte: Sinesp
A tabela nos apresenta diversos
fatos: 1) as quedas atingem todos os crimes; 2) as quedas começaram
aproximadamente em 2017; 3) as quedas são generalizadas pelos Estados e 4) as
quedas foram agudas, especialmente em 2019, e se intensificaram com o tempo.
Quaisquer que sejam as
interpretações sobre o que está ocorrendo, elas precisam explicar ou ao menos
se adequar a estas características. As explicações que vem sendo apresentadas
pelos governos e especialistas, contudo, parecem não dar conta desta realidade.
Entre as interpretações apresentadas vimos as mudanças demográficas, prisão dos
líderes das facções nos presídios federais, pacificação da luta entre as
facções criminais, projetos de segurança pública colocados em prática pelos
governos estaduais ou pelo governo federal e a melhora do cenário econômico,
entre outras. É possível pensar que várias delas estejam ocorrendo
simultaneamente e é difícil distinguir seus efeitos na realidade sem a
utilização de designs de pesquisa mais sofisticados.
De todo modo, apenas para
formarmos um mapa mental do fenômeno, coloquemos numa matriz as características
observadas da queda e suas interpretações e vejamos quais delas se adequam melhor
ou pior às estas características.
Matriz de interpretações X
características da queda
Interpretações para
a queda
|
As quedas atingem
todos os crimes
|
As quedas começaram
aproximadamente em 2017
|
As quedas são
generalizadas pelos Estados
|
As quedas são
agudas e se intensificaram com o tempo.
|
Mudanças demográficas
|
Explica melhor
queda dos homicídios, mas não queda de outros crimes
|
Mudanças demográficas
são lineares e não explicam a inflexão em 2017
|
Sim, trata-se de uma mudança nacional, ainda que em
diferentes ritmos
|
Mudanças demográficas
são lentas e não se intensificaram em 2019
|
Prisão dos líderes
das facções
|
Não explica queda
de crimes não organizados, especialmente patrimoniais
|
Ocorreram apenas em
2019
|
Apenas facções de
alguns Estados foram afetadas
|
Explica em parte a intensificação da queda em 2019
|
Pacificação entre
as facções
|
Não explica queda
de crimes não organizados, especialmente patrimoniais
|
Não há evidências
de que tenham ocorrido simultaneamente, em 2017
|
Não há conflito e
portanto não há pacificação na maioria dos Estados
|
Não explica
intensificação da queda em 2019
|
Projetos Federais
do governo Temer: Sinesp, Plano Nacional de Segurança Pública, Ministério da
Segurança
|
Projetos estruturantes,
mas que não foram implementados com a intensidade suficiente para induzir as
quedas
|
Ocorreram apenas em
2018
|
Sim, trata-se de iniciativas de abrangência nacional
|
Não explica
intensificação da queda em 2019
|
Projetos estaduais
de segurança
|
Dependendo do projeto, pode explicar a queda em
diversos tipos de crimes
|
Improvável que
vários deles tenham começado a demonstrar impacto precisamente em 2017
|
Não existem
projetos impactantes na maioria dos Estados
|
Projetos de impacto tendem a provocar quedas agudas e
poderiam explicar intensificação em 2019
|
Cenário macroeconômico
|
Melhora do cenário econômico impacta na redução de
todos os crimes, em especial os patrimoniais
|
Depois da crise de 2014 a 2016, o cenário macroeconômico
começa a mudar precisamente a partir de 2017
|
A melhora do cenário macroeconômico atinge a todos os
Estados simultaneamente
|
Melhora no cenário
econômico pode produzir mudanças agudas, mas não explica intensificação das
quedas em 2019
|
Assim, pelo que se depreende do
quadro, é possível invocar mudanças demográficas se quisermos entender porque a
tendência de queda é generalizada, é plausível que a prisão dos líderes das
facções em presídios federais tenha intensificado a queda de alguns crimes em
2019, é possível que alguns projetos de impacto adotados em alguns Estados expliquem
porquê a queda não se concentrou apenas nos homicídios e porquê se
intensificaram em 2019. Todavia, as mudanças no cenário macroeconômico parecem
ser, no geral, as que melhor se ajustam as características observadas da queda.
A que melhor se adequa “a sequencia de fatos e coincidências” históricas.
A explicação baseada nas mudanças
no cenário macroeconômico não é uma explicação ex-post-facto, como a maioria
das interpretações apresentadas. Há toda uma literatura trazendo evidências de
como PIB, desemprego, expectativas de consumo e outros indicadores econômicos
afetam os ciclos de criminalidade. A retomada do crescimento econômico aumenta
a renda e diminui o desemprego, diminui os roubos, diminui a sensação de insegurança.
Com isso há menos armas em circulação e menos homicídios. Coletam-se mais
impostos e aumentam os orçamentos públicos em segurança e os indivíduos
investem mais em proteção pessoal. Embora a economia esteja longe ainda do que
estava no período pré 2014, a melhora é visível se comparada ao período de
crise de 2014 a 2016 – que catapultou os índices criminais em 2017.
Observe-se, contudo que estamos
examinando aqui apenas os ajustes “lógicos” entre a morfologia da queda e tipos
de interpretações e variáveis explicativas. O teste lógico já ajuda a refutar
algumas conjecturas e a corroborar outras. Mas é preciso submeter estas
conjecturas aos testes de realidade, através do levantamento de dados e de
pesquisas empíricas baseadas em evidências. Se não conseguimos entender por que
os crimes estão caindo, dificilmente conseguiremos saber como continuar
estimulando esta queda.
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