quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Uma radiografia das séries temporais de homicídios nos Estados entre 2004 e 2018





O rompimento entre o PCC e o Comando Vermelho em 2016 produziu uma série de episódios sangrentos tanto no interior das prisões como nas ruas de algumas grandes cidades brasileiras. Entre outros, tivemos os confrontos no Rio Grande do Norte e Roraima em 2016 e no ano seguinte as perturbações ainda maiores no Acre, Amazonas e Ceará. Estes episódios levaram alguns especialistas e interpretar o crescimento dos homicídios no Norte e Nordeste como fruto da guerra entre as facções. (Manso e Dias, 2018, A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil.)

Com efeito, se analisarmos os gráficos das séries históricas de homicídio dos Estados das últimas décadas, é possível discernir diversos “pulsos”, ou seja, alterações intensas e transitórias nas séries de homicídios. Todavia, os gráficos nos mostram também que além dos pulsos existem tendências anteriores de crescimento na maior parte destes estados. (os gráficos completos que serviram de base a este artigo podem ser consultados no anexo)

Claro que não é apenas durante estes eventos dramáticos que ocorrem mortes decorrentes da briga entre facções criminais, que são recorrentes.  Assim mesmo, é digno de nota que o impacto real das mortes durante estes eventos transitórios no total dos homicídios é diminuto. Colocando os números em perspectiva, se tomarmos a quantidade de homicídios nos Estados entre 2004 e 2018, estes “pulsos” representam em média apenas 1% do total de mortes. Cerca de 3 mil mortes num universo de 300 mil. Vamos supor que o número de mortes real seja o dobro do número aqui estimado. Ainda assim estaríamos falando em algo em torno de 2% dos homicídios.

Para estimar este impacto tomamos nos gráficos a média de homicídios no período anterior e comparamos com a média de homicídios durantes os eventos. O mais sangrento deles teve lugar no Ceará, onde os confrontos entre facções que durou vários meses em 2017 provocaram cerca de 500 homicídios, além do número esperado.

Curiosamente, existem outros “pulsos” nas séries históricas que tem impactos superiores ao das brigas entre facções criminosas. Em São Paulo, em 2012, uma política de segurança de enfrentamento desastrosa produziu cerca de 400 mortes “adicionais”, revertendo momentaneamente uma tendência de queda que vinha desde de 2000. Impactos ainda maiores nas séries de homicídios podem ser encontrados, todavia, durante episódios de greves das polícias - especialmente greves mais prolongadas, envolvendo a Polícia Militar.



Uma greve policial em Santa Catarina em 2007 parece ter provocado um aumento de aproximadamente 600 mortos no Estado naquele ano. A greve em Pernambuco em 2017 cerca de 1000 mortos a mais e no mesmo ano, no Espírito Santo, algo em torno de 120 mortes acima da média habitual. Muitas destas mortes durante as greves policiais podem ter sido também praticadas pelas facções criminais, aproveitando para acertar contas passadas num momento de menor risco.

Em todo caso, não deixa de ser interessante observar que para os Estados, o impacto das greves policiais sobre a série de homicídios é tão grande ou mesmo maior do que o impacto das brigas entre facções. Em alguns anos, elas são um fator explicativo para o crescimento do número de homicídios e de crimes em geral, pois tem um impacto ainda maior sobre os crimes patrimoniais.

Eventos transitórios como brigas de facções e greves policiais, mesmo que intensos, não explicam, contudo, o grosso das 63 mil mortes anuais no país. Como insistimos há alguns anos, tendências seculares e águas mais profundas explicam as tendências históricas de longo prazo dos homicídios. Conjuntura econômica e águas mais rasas – como políticas de segurança - explicam outra parte deste quadro.

Uma hipótese alternativa, já repetida e detalhada em outros artigos – é que o crescimento dos homicídios, principalmente no N e NE, foi fruto indesejado do crescimento rápido da economia e da renda, que aumentou crimes patrimoniais, insegurança, armas em circulação e homicídios, num contexto de despreparo institucional do sistema de justiça criminal (contexto 1). A queda dos homicídios em alguns estados, especialmente do Sudeste, reflete um contexto diferente de crescimento econômico equilibrado, estabilidade dos crimes patrimoniais e da sensação de insegurança, num contexto de melhora de eficiência do sistema de justiça criminal e diminuição de armas em circulação. (Contexto 2)

Este padrão ajuda a entender a conjuntura criminal atual? Acreditamos que sim.

Passado o momento mais crítico da crise econômica de 2014, começamos a assistir nos anos seguintes diversos estados (doze) com quedas, por exemplo, nos roubos de veículos, invertendo a tendência de crescimento anterior. A melhora da conjuntura econômica pode explicar em parte esta inversão de tendência. Com a queda nos roubos, temos (em hipótese), uma queda na sensação de insegurança e na quantidade de armas em circulação, ajudando a diminuir os homicídios. Este padrão explicaria razoavelmente bem os movimentos de queda dos roubos e homicídios simultaneamente em AL, DF, GO, MG, PB, PR, RJ, RS, SC e SP. Note-se a presença de dois estados Nordestinos no grupo, formado basicamente por estados do Sul e Sudeste, pertencentes ao contexto 1.

Num outro extremo temos a continuidade do contexto 2 em outros Estados, com crescimento histórico e linear tanto do crime patrimonial quanto dos homicídios, como nos casos dos Estados de AC, PA, RN, TO e AM. A maioria da região Norte, com exceção do RN. Enquanto os Estados do Nordeste parecem ter acordado para a explosão dos homicídios e procurado traçar novas políticas de segurança, o Norte parece ainda inerte.

Estado
HD
DESDE
RV
DESDE
AL
CAI
2014
CAI
2016
DF
CAI
2014
CAI
2016
GO
CAI
2015
CAI
2016
MG
CAI
2016
CAI
2017
PB
CAI
2015
CAI
2016
PR
CAI
2008
CAI
2016
RJ
CAI
2004
CAI
2018
RS
CAI
2017
CAI
2015
SC
CAI
2018
CAI
2016
SP
CAI
2003
CAI
2014
AP
CAI
2016
NI

CE
CAI
2017
SOBE
2004
ES
CAI
2010
SOBE
2004
PE
CAI
2017
SOBE
2004
PI
CAI
2016
SOBE
2004
SE
CAI
2017
SOBE
2004
MT*
CAI
2015
SOBE
2011
MA*
CAI
2015
SOBE
2004
BA*
ESTÁVEL
2014
CAI
2015
RO
ESTÁVEL

CAI
2016
MS
ESTÁVEL

ESTÁVEL

RR
ESTÁVEL

SOBE
2014
AC
SOBE
2004
SOBE
2007
PA
SOBE
2004
SOBE
2004
RN
SOBE
2004
SOBE
2004
TO
SOBE
2004
SOBE
2004
AM
SOBE
2004
SOBE
2004
Fonte: SSPs
* capitais

Interessante observar um grupo intermediário de Estados que estão tendo queda dos homicídios de 2015 para cá, não obstante a continuidade do crescimento dos crimes patrimoniais, como o roubo de veículos. Neste grupo estão por exemplo CE, ES, PE, PI, SE, MT e MA. Observe-se que em pelo menos três destes Estados (CE, ES e PE) algumas gestões adotaram políticas de segurança específicas para lidar com os homicídios (Ceará Pacífico, Ocupação Social, Pacto pela Vida, etc.). Embora atrapalhados por brigas de facções e greves policiais, são exemplos de que o foco na diminuição dos homicídios surte efeitos, mesmo com a continuidade do crescimento dos crimes patrimoniais. Finalmente, um grupo de Estados onde a situação dos homicídios é estável, BA, RO, MS e RR, o que é um alento pois BA, RO e RR são estados do Norte e Nordeste, a maioria dos quais está enquadrada dentro do contexto 2 acima descrito.

O arcabouço teórico dos Contextos 1 e 2 parece assim dar conta de explicar, ao menos em parte, tanto momentos de aumento como de queda dos homicídios. Brigas de facções são eventos transitórios cujo impacto sobre o aumento dos homicídios é diminuto. Assim como diminuto foi o papel do crime organizado para explicar a queda dos homicídios em São Paulo.  

Os processos de queda dos homicídios recente observado em 18 Estados são lentos e graduais e pela sua morfologia sugerem antes a validade da teoria dos contextos do que alguma pretensa pax criminosa, algum acordão entre criminosos e governos para encerrar a violência. Mas este já é outro tema. Remeto os leitores interessados aos gráficos e dados que subsidiaram estas análises. Valem mais do que mil palavras!

Anexo:

https://www.researchgate.net/publication/328676074_Tendencias_de_homicidios_e_roubo_de_veiculos_nos_Estados_entre_2004_e_2018

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