sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Recordar é viver

Por um novo sistema federal de segurança pública



A criação da secretaria nacional de segurança pública em 1997 e do Plano e Fundo Nacional nos anos seguintes foram marcos importantes do envolvimento federal na esfera da segurança, marcos que sinalizaram uma mudança significativa com relação ao paradigma anterior, segundo o qual o problema da segurança dizia respeito somente aos estados, detentores das polícias civil e militar. 

É claro que através da polícia federal, rodoviária federal, Abin, receita e outros órgãos o governo federal atuava já no âmbito da segurança pública, até porque a constituição lhe atribuí um espaço de atuação legítimo no que diz respeito ao combate dos crimes federais, interestaduais e no controle de fronteiras.

Mas o recrudescimento da criminalidade em todo país e o aumento da sensação de insegurança da população – que passou a considerá-la, ao lado da inflação e do desemprego um dos mais sérios problemas nacionais – fez com que mudasse de patamar o envolvimento federal na questão: além das inovações já citadas foram criados, entre outros projetos, a Secretaria Nacional anti-drogas e o fundo nacional anti-drogas, e departamento penitenciário e o fundo penitenciário nacional, o sistema infoseg, as centrais de penas alternativas e vários outros projetos relevantes.

Ocorre que este envolvimento federal  foi se dando de modo um tanto errático, ao sabor das crises e tragédias nacionais – um “gerenciamento de pânico” em paralelo ao que no âmbito  penal os juristas denominaram de “legislação de pânico”, entendendo com isso um processo improvisado ao qual falta uma visão de conjunto e o encaixe com as demais elementos do sistema.

O Ministério da Justiça abraçou boa parte dos novos órgãos e funções criados, sem que para isso tivesse redimensionado sua estrutura física, orçamentária e funcional, tornando-se num superministério – no sentido de suas atribuições – por onde circulam um sem número de demandas relativas aos índios, estrangeiros, consumidores, presídios, policiais, minorias, direitos humanos e toda sorte de questões envolvendo os problemas legais do governo e seus administradores. Para lidar com todos estes problemas, apesar da criação da Senasp e do Depen, o Ministério continua a contar com um só titular, uma só Secretaria Executiva, um só chefe de gabinete, uma só consultoria jurídica, um só prédio e os acréscimos de funcionários e recursos não foram suficientes para compensar as novas atividades. Projetos relevantes de todas as áreas ficam atolados no meio da precária estrutura administrativa do Ministério da Justiça, não obstante o empenho de seus quadros. Por conta desta precariedade estrutural o governo federal é obrigado a recorrer ao Pnud e outros órgãos do sistema ONU para contratar pessoal qualificado e angariar recursos para projetos cruciais, como o de treinamento de policiais e do Infoseg, que até hoje não foram incorporados ao orçamento permanente do Ministério.

Ao mesmo tempo – por conta das virtudes dos seus ocupantes e das inúmeras funções já acumuladas pelo Ministério da Justiça – o Gabinete de Segurança Institucional da presidência – que outrora desempenhava apenas a função de uma casa militar para cuidar da segurança pessoal do presidente e familiares -  foi concentrando sob sua coordenação diversos órgãos e recursos importantes, como a Secretaria Nacional Anti-drogas e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) entre outros.

As seqüelas desta engenharia institucional de improviso são muitas e de conseqüências funestas para a gestão da segurança pública: a Agência de Inteligência (que por lei é impedida de fazer escutas !) não se reporta diretamente ao presidente mas a um intermediário com status de ministro; a política nacional com relação às drogas está dividida entre dois órgãos, cuja disputa já causou a queda de um ministro e do secretário nacional anti-drogas; o ministro da justiça, envolto em inúmeras e diferentes questões, não controla efetivamente a polícia federal e rodoviária federal e não tem tempo suficiente na agenda para se dedicar com o afinco necessário à gestão cotidiana da segurança; não há um espaço nem quem articule ações preventivas em conjunto com outros ministérios da área social do governo; a inteligência está fracionada entre a Abin e a Polícia Federal; tanto a Senasp quanto a Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e a Abin realizam cursos e treinamentos sem que haja uma estrutura que procure coordenar as iniciativas entre elas; há uma disputa interna velada sobre quem administrará o Infoseg, disputado também pela Polícia Federal.

Independentemente de quem venha a ganhar as próximas eleições, a criação de um eventual futuro Ministério da Segurança Pública representaria a continuidade do avanço do envolvimento federal na esfera da segurança, aglutinando secretarias e recursos hoje divididos pelo Ministério da Justiça e Gabinete de Segurança Institucional.

A criação do novo ministério dedicado exclusivamente ao tema da segurança daria também oportunidade para a escolha de um novo tipo de titular, um gestor não necessariamente ligado aos escritórios privados de direito criminal, como tem sido a praxe, já que o problema fundamental não é de ordem legal mas de gestão eficiente de recursos do sistema federal de segurança. A elevação de status da questão da segurança contribuiria também para preservar os já escassos recursos destinados à área, sistematicamente contingenciados pela fazenda nos últimos anos. Contribuiria também para buscar novos recursos através de empréstimos internacionais, para estimular a vinda de profissionais qualificados da administração pública federal que querem trabalhar num órgão prestigiado, para coordenar a administração dos três fundos nacionais. Dentro da estrutura deste ministério, à Senasp caberia o papel de coordenar efetivamente as ações das Polícias Federal e Rodoviária Federal, e uma nova Secretaria seria adicionada ao Ministério, para cuidar exclusivamente de ações de prevenção e articulação com outros órgãos dentro de fora do governo.

Um Ministério da Segurança Pública, se não é a panacéia para todos os problemas de segurança do país, contribuiria para dar maior organicidade a uma política nacional de segurança, com planejamento e estrutura adequados à dimensão da tarefa, em substituição à colcha de retalhos que é o atual sistema federal de segurança, que a rigor não pode ser chamado sequer de sistema. É o crime, ao final, quem se beneficia com nossa falta de recursos e organização.


Tulio Kahn, 40, é doutor em ciência política pela USP e coordenador de análise e planejamento da SSP/SP. Foi diretor do Departamento Nacional de Segurança Pública e um dos idealizadores do Plano Nacional de Segurança Pública do governo FHC

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