Uma das justificativas do governo federal para a criação da PEC da segurança é a padronização das informações criminais. Não é preciso necessariamente uma PEC para isso, mas antes um grande esforço administrativo, estudos, consulta a operadores e especialistas, para construir alguns consensos mínimos entre os Estados. De todo modo a preocupação é válida e o governo federal avançou muito na construção de uma base nacional de informações criminais nas últimas décadas.
Para alguns tipos de informações
– sexo, idade, escolaridade da vítima ou do autor, local e data da ocorrência,
tipo de meio utilizado, etc. está padronização não apresenta grandes desafios. Embora
até definições aparentemente corriqueiras, como sexo, hoje em dia podem dar
margem a várias categorizações e interpretações...
Outras informações, porém, são
bem mais difíceis de serem padronizadas e tomo aqui como exemplo as informações
sobre drogas. É crucial para qualquer país ter bons dados sobre drogas, como
tipos, quantidade, qualidade, preços, rotas, incidência de uso, para que se possam
traçar políticas efetivas de prevenção e repressão ao uso e tráfico.
Quantidade, qualidade e preço das drogas, em alguns países, são utilizados como
indicadores de sucesso da política de controle, supondo-se que o combate eficaz
faz diminuir a quantidade de apreensões e simultaneamente piorar a qualidade e
aumentar o preço da droga.
Mas montar um bom sistema informacional
sobre o tema não é tarefa simples. É preciso pensar antes de tudo em questões
filosóficas sobre o que é droga e se estamos incluindo aqui as danosas drogas
legais, como remédios, o álcool e o tabaco. O que é droga ilegal, por sua vez,
depende também de contexto, época e lugar, como nos recordam os exemplos da
ayahuasca, da Lei Seca nos anos 20 e de Freud recomendando cocaína aos
pacientes.
Existem ainda as novas drogas
sintéticas, muitas delas sequer catalogadas pelos órgãos policiais. Também é
preciso lembrar-se de produtos que, embora legais – cola de sapateiro, éter,
benzina, etc. podem ser utilizados indevidamente como drogas. E dos insumos
utilizados na produção de coca e outras drogas. Assim, estamos diante de uma
lista imensa de itens monitoráveis, que vão muito além de maconha, haxixe,
cocaína, heroína, crack, oxi, anfetaminas, etc., para mencionar algumas das
principais. Em algum momento é preciso jogar as menos comuns numa grande
categoria “outras drogas”.
Uma segunda dificuldade é que às
vezes o que tem aparência de droga, não é. E o que não tem aparência é, como no
caso da transformação da cocaína em selos de papel dissolvíveis, que circulam
nos presídios. No momento da apreensão, o policial não tem como afirmar se o
objeto é realmente droga e de que droga está se falando. Para isso é preciso
enviar o material apreendido para a perícia, cujos laudos determinarão se são
drogas e de que tipo.
Semelhante problema encontramos
na mensuração do peso, já que é preciso vários tipos de balanças para estimar
corretamente o peso da mercadoria apreendida. É a perícia que estima
corretamente o peso, algo que necessita de precisão, ainda mais agora que a
quantidade objetiva da droga apreendida pode determinar a decisão da justiça
- conjuntamente a outros elementos –
para classificar o caso como uso ou tráfico[1].
O Boletim de Ocorrência das polícias traz geralmente apenas estimativas
imprecisas do tipo e da quantidade de droga.
Na tabela abaixo vemos exemplos de
como a apreensão de drogas costuma a ser registrada nos boletins de ocorrência.
A nomenclatura do objeto apreendido muda conforme o tipo de droga e segundo
variações regionais usadas pelo tráfico: balinhas, buchas, trouxinhas, etc. As
unidades de medida, como discutido, são às vezes bastante imprecisas, do tipo,
“uma porção“. Descreve-se também o objeto apreendido pela forma de acondicionamento,
tal como “caixas”, “potes” e outros. A descrição é do tipo “2 buchas de
maconha”, “3 invólucros pequenos com haxixe”, “Quatro papelotes de cocaína”, uma
porção de heroína”, e por ai afora.
Exemplos de descrição de drogas
apreendidas
NOMENCLATURA |
UNIDADE |
ACONDICIONAMENTO |
||
BALINHAS |
G / GRAMAS |
AMPOLA |
||
BARRAS / BARRINHAS |
GRANDE |
CAIXAS |
||
BOMBINHAS |
KG / KILOS |
EMBALAGEM / EMBRULHO |
||
BUCHA |
MAIORES |
FRASCOS |
||
CARTELA |
MÉDIO / MEDIANO |
INVÓLUCRO |
||
CIGARROS |
MENORES |
PACOTE |
||
COMPRIMIDOS |
PÉ / PÉS / MUDAS |
PAPEL ALUMÍNIO / FILME |
||
PAPELOTE |
PEDAÇO |
POTES |
||
PEDRA |
PEQUENO |
RECIPIENTE |
||
PETECA |
PORÇÃO / PORÇÕES |
SACO ZIP LOCK |
||
PINOS |
VÁRIAS |
SACOLA |
||
SACOLÉ |
TUBO PLÁSTICO |
|||
SAQUINHOS / SACOLETES |
VASILHA |
|||
TABLETE |
||||
TIJOLO |
||||
TROUXA / TROUXINHA |
Mas quanto pesa um papelote de
cocaína? Ou uma pedra de crack? Existem variações regionais ou os criminosos
criaram um sistema para padronizar pesos e medidas, antecipando-se ao MJ? Como
determinar qual o tamanho (e peso, portanto) de uma caixa, um pacote ou pote,
uma vez que há uma infinidade de possibilidades no mercado de invólucros?
Resolvido o problema da pesagem de
forma mais ou menos precisa, temos os problemas interpretativos, como já
discutimos com relação a outros indicadores na área de segurança. A
distribuição dos pesos é bastante assimétrica, com poucos casos envolvendo
apreensões gigantescas e uma grande quantidade de casos envolvendo pequenas
quantidades de drogas.
São Paulo é um dos poucos estados
que estima e divulga entre as estatísticas de produtividade a quantidade de
drogas apreendidas pelas polícias em cada ocorrência, em gramas, por tipo de
droga.
Como é possível observar na
tabela, a média é altamente inflacionada pela existência de algumas dezenas de
grandes apreensões. Nestes casos é preciso usar a mediana ou algum estimador de
média que exclua os casos extremos, como M de Huber. Usar a média é produzir
uma visão bastante equivocada do problema. Em média, cada ocorrência envolvendo
cocaína implicou na apreensão de aproximadamente 1 quilo da droga...enquanto a
mediana nos mostra 29 g e o M de Huber 35 g.
Quantidade apreendida por
natureza da droga, São Paulo, 2024
NATUREZA_APURADA |
Média |
Mediana |
Estimador M de Hubera |
|
QTDE (GRAMAS) |
COCAÍNA |
1018.91 |
29.00 |
35.36 |
CRACK |
201.72 |
14.00 |
16.81 |
|
MACONHA |
2984.01 |
38.00 |
48.50 |
|
OUTROS |
895.34 |
17.00 |
21.78 |
SSP-SP
A base de São Paulo com 130.795
BOs permite inferir, por exemplo, que no ano passado 57,3% das apreensões de
cocaína envolveram até 40 gramas de drogas apreendidas, ocorrendo o mesmo com
75,2% das apreensões de crack, 51,1% das apreensões de maconha e 65,5% das
apreensões de outras drogas. Em suma, muitos casos com pouca droga e poucos com
muita. Trata-se de informação relevante do ponto de vista da política pública,
quando se procura estabelecer critérios “objetivos” para a distinção entre
usuários e traficantes.
É possível e desejável, portanto melhorar
este sistema de registro das polícias estaduais– começando pela criação de
preenchimento com máscaras (permitindo apenas campos numéricos para descrever
quantidades) e tabelas pré-definidas de preenchimento, ao invés de usar campos
abertos, que admitem quaisquer variações das mesmas palavras. Estabelecer uma
média ou mediana de quanto pesa em gramas um cigarro de maconha ou um pino de
cocaína. Coletar junto aos suspeitos dados sobre o valor das drogas.
Mas ao final é preciso se
perguntar se não estamos pedindo ao BO informações além das que ele pode
fornecer com um mínimo de qualidade. Vale a pena investir no refinamento desta
coleta ou é melhor buscar estas informações em outras fontes, como laudos e
estudos específicos?
Muitas informações sobre crimes
são obtidas apenas depois que a investigação tem início, com a coleta de
provas, dados periciais, oitiva de testemunhas. É o caso da “motivação” dos
homicídios, que quando (raramente) aparece, é só nas etapas finais. Do uso de
álcool ou drogas pelas vítimas e suspeitos, coletados nos laudos toxicológicos.
Da “causa mortis”, em mortes dúbias. BO não é fonte boa para estas informações.
Talvez um próximo passo para a
obtenção deste tipo de informação, seja integrar as bases de Boletins de
Ocorrência com as bases de laudos da Polícia Científica, de Inquéritos do
Ministério Público, de sentenças da
Justiça, de execuções da pena do sistema Carcerário. Nos anos 80 em São Paulo –
quando computadores, softwares e programadores eram caríssimos e exclusivos de
algumas poucas instituições - como a Prodesp -, o sistema de informações
criminais nasceu integrando as informações destes diversos órgãos, apesar da
cultura de supressão de informações interinstitucional.
O barateamento de computadores,
programas e programadores teve como externalidade negativa a separações das
bases de dados do sistema de justiça criminal. São poucos os Estados onde é
possível acompanhar um suspeito de crime do momento em que ele é abordado pela
Polícia Militar até o momento em que cumpriu sua pena no sistema prisional ou é
atendido em um programa para egressos. Neste percurso um individuo percorre
diversas bases de dados – chamados do Copom, Boletim de Ocorrência, laudos da
Polícia Técnica, base fotográfica, base de DNA, Inquérito no MP, decisões da
Justiça, bases do sistema penitenciário, base do programa de egressos, etc. O
pulo do gato está em conseguir unir estas diversas bases.
Estas inciativas não são incompatíveis
e é possível ao mesmo tempo aperfeiçoar o sistema de coleta das polícias,
integrar as bases policiais com as bases dos outros órgãos do sistema de
justiça e financiar pesquisas ad hoc
sobre temas de interesse não cobertos adequadamente pelos dados
administrativos. É preciso saber pedir de cada fonte, com suas características
próprias, aquilo que elas podem oferecer!
O registro policial traz sempre o
dado do “calor da hora”, muitas vezes impreciso, pelas condições em que são
coletados. Seja para fins de investigação ou para traçar boas políticas
públicas para a prevenção e repressão às drogas, é preciso complementa-los com
dados coletados “no frio dos anos”.
[1]
Outro imbróglio é definir que quantidade de droga corresponde a cada suspeito
numa ocorrência. Suponhamos 1 quilo de maconha apreendido num veículo com 4
suspeitos. Atribuímos este quilo a cada suspeito? Apenas ao proprietário do
veículo? Ao motorista? Dividimos por 4, ficando cada um responsável por 250g? Aceitamos
a versão dos suspeitos, que colocarão a responsabilidade no menor?
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