Tulio Kahn
A proposta do governador do Paraná, Ratinho Junior, de conferir aos Estados
brasileiros autonomia para legislar em matéria penal reacende um debate
relevante sobre a organização federativa do país e os limites constitucionais
da descentralização legislativa. Trata-se de uma ideia com repercussões
importantes para o equilíbrio entre a uniformidade normativa e a autonomia dos
entes subnacionais, exigindo uma análise cuidadosa à luz de comparações internacionais,
do histórico jurídico-institucional brasileiro e das potenciais consequências
práticas dessa descentralização.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 22, inciso I, que
compete privativamente à União legislar sobre direito penal. Esse dispositivo
reflete uma tradição centralizadora que remonta ao período imperial e foi
mantida nas constituições republicanas subsequentes. A lógica por trás dessa
centralização é garantir a igualdade jurídica entre os cidadãos de diferentes
partes do território nacional, além de assegurar segurança jurídica,
previsibilidade e coesão no sistema penal. Permitir que os Estados criem suas
próprias leis penais implicaria o risco de que uma mesma conduta fosse
considerada crime em um Estado e perfeitamente legal em outro, minando os
princípios de isonomia e universalidade do direito penal.
Ainda assim, o modelo federativo brasileiro já admite alguma flexibilidade
normativa nos campos da segurança pública e da execução penal. Os Estados podem
legislar concorrentemente sobre direito penitenciário (art. 24, I) e editar
normas administrativas para a organização das polícias civis e militares.
Diversas inovações ocorreram nesse espaço de manobra, como os programas de
tolerância zero, políticas de mediação de conflitos, centrais de alternativas
penais e medidas de contenção da criminalidade local. No entanto, esses
arranjos não envolvem a criação de novos tipos penais ou penas, o que permanece
como exclusividade da União.
A comparação com outros países federativos é instrutiva. Nos Estados Unidos,
os estados possuem códigos penais próprios, o que resulta em grande diversidade
normativa. Crimes como homicídio, posse de drogas, furto ou mesmo o aborto
podem ser tratados de maneiras substancialmente diferentes conforme a
jurisdição. Esse modelo, embora permita maior adaptação local e experimentação,
também gera críticas quanto à desigualdade de tratamento, à insegurança
jurídica e à complexidade do sistema. Além disso, o país conta com um sistema
judicial complexo e recursos materiais significativos para lidar com essas
diferenças. Na Alemanha, por outro lado, a legislação penal material é federal,
mas a execução penal e certos procedimentos são descentralizados e conduzidos
pelos Länder. Esse arranjo permite alguma adaptação local sem comprometer a
uniformidade do sistema jurídico penal. O Canadá segue caminho semelhante, com
legislação penal unificada e espaço para variações nos programas de justiça
restaurativa e na aplicação de penas, respeitando os direitos fundamentais
garantidos pela Carta de Direitos e Liberdades.
Esses modelos indicam que há espaço para descentralização em aspectos
administrativos, procedimentais ou de execução, mas a legislação penal material
permanece, na maior parte dos casos, como competência federal. A razão central
está na necessidade de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos,
assegurando que o poder de punir — expressão máxima da força do Estado — seja
exercido de forma equânime e controlada.
No Brasil, não há precedentes constitucionais que autorizem os Estados a
legislar sobre matéria penal. Tentativas nesse sentido, como leis estaduais que
buscaram proibir o uso de celulares em presídios ou impor sanções a
estabelecimentos que vendessem bebidas alcoólicas em determinados horários, foram
sistematicamente invalidadas pelo Supremo Tribunal Federal por invadirem a
competência da União. Mesmo projetos de lei no Congresso que propunham
flexibilizações nessa regra esbarraram em questionamentos sobre a
constitucionalidade e os riscos federativos associados.
Os defensores da proposta de Ratinho Junior argumentam que os Estados
enfrentam realidades criminais muito distintas, o que justificaria certa
liberdade para adaptar suas normas penais. Estados como São Paulo e Paraná, com
estruturas de segurança mais robustas, poderiam adotar políticas mais
rigorosas, enquanto estados da Amazônia Legal poderiam ter normas específicas
para combater crimes ambientais e conflitos fundiários. Sustenta-se ainda que a
descentralização favoreceria a inovação e a responsabilização política local,
criando incentivos para que os governos estaduais desenvolvessem respostas mais
eficazes ao crime. Além disso, a morosidade do Congresso Nacional em reagir a
novas formas de criminalidade — como cibercrimes ou novas drogas sintéticas —
seria mitigada pela capacidade legislativa estadual mais ágil e sensível às
urgências locais.
Entretanto, os argumentos contrários à proposta são numerosos e
substanciais. Em primeiro lugar, permitir legislações penais distintas entre os
Estados comprometeria o princípio da isonomia, resultando em cidadãos sendo
julgados e punidos de maneira desigual por condutas semelhantes. Além disso,
tal fragmentação normativa dificultaria a atuação das instituições de segurança
pública e do Judiciário em crimes transfronteiriços, que exigem coordenação
interestadual. Há ainda o risco de proliferação de legislações populistas,
punitivistas e ineficazes, adotadas por pressão midiática ou eleitoral,
aprofundando o já grave problema de superlotação carcerária. Ademais, uma
mudança como essa exigiria reforma constitucional profunda e abriria
precedentes para disputas federativas mais amplas e instabilidades jurídicas
significativas.
Diante desse cenário, parece mais prudente adotar um modelo que preserve a
centralização da legislação penal material, mas amplie o espaço para inovação
subnacional em políticas de prevenção e repressão. Os Estados poderiam, por
exemplo, instituir programas de justiça restaurativa, penas alternativas,
mediação penal e sistemas de monitoramento eletrônico mais eficazes, além de
experimentar novas tecnologias na prevenção da reincidência e na investigação
de delitos. A literatura sobre federalismo penal, como os trabalhos de Sara Sun
Beale (2004) e James Q. Whitman (2003), mostra que políticas penais
descentralizadas só funcionam adequadamente quando acompanhadas de forte
coordenação intergovernamental, sistemas de responsabilização e garantia de
direitos fundamentais.
Uma proposta concreta seria a criação de um Marco Nacional de Inovação Penal
Subnacional, permitindo que os Estados, por meio de convênios com o Ministério
da Justiça e com supervisão do Conselho Nacional de Justiça, desenvolvessem
projetos-piloto em políticas criminais, desde que ancorados em evidências
empíricas e submetidos à avaliação independente. Isso preservaria a unidade
normativa do sistema penal brasileiro ao mesmo tempo que promoveria a
experimentação responsável e adaptada às realidades locais.
Assim, a proposta de dar autonomia legislativa penal aos Estados, embora
sedutora em termos de resposta rápida à criminalidade, apresenta mais riscos do
que benefícios no contexto brasileiro atual. A alternativa mais promissora é
fortalecer os espaços de inovação subnacional dentro dos marcos constitucionais
existentes, com foco em prevenção, execução penal e reabilitação, sem romper
com os fundamentos do Estado de Direito e da federação brasileira.
Referências
·
Esse artigo foi parcialmente escrito com
auxílio do ChatGpt
BEALE, Sara Sun. Too
Many and Yet Too Few: New Principles to Define the Proper Limits for Federal
Criminal Jurisdiction. Hastings Law Journal, v. 46, 2004.
WHITMAN, James Q. Harsh
Justice: Criminal Punishment and the Widening Divide Between America and Europe.
Oxford University Press, 2003.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.
37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2018.
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