quinta-feira, 3 de julho de 2025

Descentralização legislativa em matéria penal

 


Tulio Kahn

A proposta do governador do Paraná, Ratinho Junior, de conferir aos Estados brasileiros autonomia para legislar em matéria penal reacende um debate relevante sobre a organização federativa do país e os limites constitucionais da descentralização legislativa. Trata-se de uma ideia com repercussões importantes para o equilíbrio entre a uniformidade normativa e a autonomia dos entes subnacionais, exigindo uma análise cuidadosa à luz de comparações internacionais, do histórico jurídico-institucional brasileiro e das potenciais consequências práticas dessa descentralização.

A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 22, inciso I, que compete privativamente à União legislar sobre direito penal. Esse dispositivo reflete uma tradição centralizadora que remonta ao período imperial e foi mantida nas constituições republicanas subsequentes. A lógica por trás dessa centralização é garantir a igualdade jurídica entre os cidadãos de diferentes partes do território nacional, além de assegurar segurança jurídica, previsibilidade e coesão no sistema penal. Permitir que os Estados criem suas próprias leis penais implicaria o risco de que uma mesma conduta fosse considerada crime em um Estado e perfeitamente legal em outro, minando os princípios de isonomia e universalidade do direito penal.

Ainda assim, o modelo federativo brasileiro já admite alguma flexibilidade normativa nos campos da segurança pública e da execução penal. Os Estados podem legislar concorrentemente sobre direito penitenciário (art. 24, I) e editar normas administrativas para a organização das polícias civis e militares. Diversas inovações ocorreram nesse espaço de manobra, como os programas de tolerância zero, políticas de mediação de conflitos, centrais de alternativas penais e medidas de contenção da criminalidade local. No entanto, esses arranjos não envolvem a criação de novos tipos penais ou penas, o que permanece como exclusividade da União.

A comparação com outros países federativos é instrutiva. Nos Estados Unidos, os estados possuem códigos penais próprios, o que resulta em grande diversidade normativa. Crimes como homicídio, posse de drogas, furto ou mesmo o aborto podem ser tratados de maneiras substancialmente diferentes conforme a jurisdição. Esse modelo, embora permita maior adaptação local e experimentação, também gera críticas quanto à desigualdade de tratamento, à insegurança jurídica e à complexidade do sistema. Além disso, o país conta com um sistema judicial complexo e recursos materiais significativos para lidar com essas diferenças. Na Alemanha, por outro lado, a legislação penal material é federal, mas a execução penal e certos procedimentos são descentralizados e conduzidos pelos Länder. Esse arranjo permite alguma adaptação local sem comprometer a uniformidade do sistema jurídico penal. O Canadá segue caminho semelhante, com legislação penal unificada e espaço para variações nos programas de justiça restaurativa e na aplicação de penas, respeitando os direitos fundamentais garantidos pela Carta de Direitos e Liberdades.

Esses modelos indicam que há espaço para descentralização em aspectos administrativos, procedimentais ou de execução, mas a legislação penal material permanece, na maior parte dos casos, como competência federal. A razão central está na necessidade de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, assegurando que o poder de punir — expressão máxima da força do Estado — seja exercido de forma equânime e controlada.

No Brasil, não há precedentes constitucionais que autorizem os Estados a legislar sobre matéria penal. Tentativas nesse sentido, como leis estaduais que buscaram proibir o uso de celulares em presídios ou impor sanções a estabelecimentos que vendessem bebidas alcoólicas em determinados horários, foram sistematicamente invalidadas pelo Supremo Tribunal Federal por invadirem a competência da União. Mesmo projetos de lei no Congresso que propunham flexibilizações nessa regra esbarraram em questionamentos sobre a constitucionalidade e os riscos federativos associados.

Os defensores da proposta de Ratinho Junior argumentam que os Estados enfrentam realidades criminais muito distintas, o que justificaria certa liberdade para adaptar suas normas penais. Estados como São Paulo e Paraná, com estruturas de segurança mais robustas, poderiam adotar políticas mais rigorosas, enquanto estados da Amazônia Legal poderiam ter normas específicas para combater crimes ambientais e conflitos fundiários. Sustenta-se ainda que a descentralização favoreceria a inovação e a responsabilização política local, criando incentivos para que os governos estaduais desenvolvessem respostas mais eficazes ao crime. Além disso, a morosidade do Congresso Nacional em reagir a novas formas de criminalidade — como cibercrimes ou novas drogas sintéticas — seria mitigada pela capacidade legislativa estadual mais ágil e sensível às urgências locais.

Entretanto, os argumentos contrários à proposta são numerosos e substanciais. Em primeiro lugar, permitir legislações penais distintas entre os Estados comprometeria o princípio da isonomia, resultando em cidadãos sendo julgados e punidos de maneira desigual por condutas semelhantes. Além disso, tal fragmentação normativa dificultaria a atuação das instituições de segurança pública e do Judiciário em crimes transfronteiriços, que exigem coordenação interestadual. Há ainda o risco de proliferação de legislações populistas, punitivistas e ineficazes, adotadas por pressão midiática ou eleitoral, aprofundando o já grave problema de superlotação carcerária. Ademais, uma mudança como essa exigiria reforma constitucional profunda e abriria precedentes para disputas federativas mais amplas e instabilidades jurídicas significativas.

Diante desse cenário, parece mais prudente adotar um modelo que preserve a centralização da legislação penal material, mas amplie o espaço para inovação subnacional em políticas de prevenção e repressão. Os Estados poderiam, por exemplo, instituir programas de justiça restaurativa, penas alternativas, mediação penal e sistemas de monitoramento eletrônico mais eficazes, além de experimentar novas tecnologias na prevenção da reincidência e na investigação de delitos. A literatura sobre federalismo penal, como os trabalhos de Sara Sun Beale (2004) e James Q. Whitman (2003), mostra que políticas penais descentralizadas só funcionam adequadamente quando acompanhadas de forte coordenação intergovernamental, sistemas de responsabilização e garantia de direitos fundamentais.

Uma proposta concreta seria a criação de um Marco Nacional de Inovação Penal Subnacional, permitindo que os Estados, por meio de convênios com o Ministério da Justiça e com supervisão do Conselho Nacional de Justiça, desenvolvessem projetos-piloto em políticas criminais, desde que ancorados em evidências empíricas e submetidos à avaliação independente. Isso preservaria a unidade normativa do sistema penal brasileiro ao mesmo tempo que promoveria a experimentação responsável e adaptada às realidades locais.

Assim, a proposta de dar autonomia legislativa penal aos Estados, embora sedutora em termos de resposta rápida à criminalidade, apresenta mais riscos do que benefícios no contexto brasileiro atual. A alternativa mais promissora é fortalecer os espaços de inovação subnacional dentro dos marcos constitucionais existentes, com foco em prevenção, execução penal e reabilitação, sem romper com os fundamentos do Estado de Direito e da federação brasileira.

Referências

·      Esse artigo foi parcialmente escrito com auxílio do ChatGpt

BEALE, Sara Sun. Too Many and Yet Too Few: New Principles to Define the Proper Limits for Federal Criminal Jurisdiction. Hastings Law Journal, v. 46, 2004.

WHITMAN, James Q. Harsh Justice: Criminal Punishment and the Widening Divide Between America and Europe. Oxford University Press, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

 

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