Túlio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Há algumas semanas um colega me solicitou que identificasse municípios que tinham uma boa atuação na área da segurança pública com o intuito de organizar uma premiação para os melhores.
Sabe-se que há muitos anos os municípios começaram a colaborar na esfera da segurança e um número cada vez maior deles vem tomando iniciativas neste sentido, premidos pelo aumento da criminalidade e da sensação de insegurança da população. Apesar deste esforço e dos recursos envolvidos, são poucas as fontes de informação e as avaliações sobre como vem atuando e com quais resultados.
Uma avaliação como esta é bastante complexa e envolve problemas conceituais, metodológicos, informações atualizadas sobre o que os municípios fazem nesta esfera (inputs), quando as principais iniciativas foram tomadas, o grau em que foram realmente implementadas e dados longitudinais sobre crimes, contravenções ou indicadores de sensação de insegurança (outputs).
Do ponto de vista conceitual, dadas as limitações institucionais, legais e orçamentárias dos municípios, o que se pode legitimamente esperar como “resultados” deste esforço complementar? Queda nos homicídios? No tráfico de drogas ou roubo de carga ou bancos? Creio que o mais realista seria esperar alguma alteração nas pequenas contravenções, na desordem física e social das cidades ou na sensação de segurança do cidadão.
Mesmo escolhendo os indicadores mais adequados para mensurar os resultados deste esforço, como garantir que uma eventual melhora nos índices se deve exclusivamente ou ao menos em grande parte ao esforço municipal e não a outras iniciativas concomitantes? O porte do município, região em que estão localizados e tipo de atividade econômica afetam fortemente o tipo e volume de crimes locais. Sem controlar estes fatores, entre outros, é difícil tentar qualquer comparação entre eles. Dada a grande heterogeneidade existente, seria correto comparar o desempenho de uma cidade de 10 mil habitantes com uma de 500 mil? Uma cidade na região metropolitana do Sudeste com uma do interior nordestino? Uma industrial com uma predominantemente agrícola? Estas questões já são relevantes quando tentamos comparar Estados, mas ainda mais relevantes no caso de cidades.
Avaliações limitadas já foram realizadas – por mim mesmo e outros pesquisadores – com relação a políticas específicas, como a Lei Seca ou alterações nos limites de velocidade das vias. Neste caso, a tarefa era mais simples, pois tratavam-se de iniciativas que não existiam anteriormente, de alçada exclusivamente municipal, com efeitos esperados sobre os crimes e acidentes envolvendo o consumo de álcool etc. Uma análise de séries temporais destes indicadores, seguindo um design “antes-depois-com grupo de controle” funciona razoavelmente bem para testar impactos. Mas avaliar de maneira ampla diversas iniciativas, estabelecidas em datas diferentes, com diferentes níveis de implementação, sem controlar centenas de variáveis que podem ter afetado os resultados, é bastante temerário, para dizer o mínimo.
Há também a questão de onde encontrar os indicadores adequados, uma série histórica mais ou menos padronizada dos resultados esperados. Existe, mal ou bem, um esforço federal para compilar informações de vitimização, atividade policial e criminal dos Estados, mas nada parecido para os mais de 5.500 municípios do País, com exceção talvez das mortes por causas externas compiladas pelo Datasus do Ministério da Saúde. Alguns destes dados criminais são disponibilizados pelos Estados, desagregados por cidades, através do SINESP, mas infelizmente não são divulgados para pesquisadores e muito menos para o público.
Sendo assim, se a intenção é encontrar bons exemplos e melhores práticas de atuação municipal na segurança, sem apelar para casos anedóticos e excepcionais, talvez uma das únicas alternativas neste momento seja recorrer aos indicadores de “input”, em outras palavras, ao que os municípios estão fazendo na área da segurança pública. Felizmente, para pesquisadores e gestores, o IBGE realiza desde 1999 a pesquisa MUNIC – Pesquisa de Informações Básicas Municipais – que “efetua, periodicamente, um levantamento pormenorizado de informações sobre a estrutura, a dinâmica e o funcionamento das instituições públicas municipais, em especial a prefeitura, compreendendo, também, diferentes políticas e setores que envolvem o governo municipal e a municipalidade.”
A pesquisa MUNIC de 2014, por exemplo, fez um levantamento específico sobre a estrutura e atuação dos municípios na segurança, cobrindo dezenas de variáveis. Entre todas, selecionei 10 que julgo mais representativas da atuação municipal na segurança, embora outros analistas pudessem ter selecionado critérios diferentes.
1 – Caracterização do órgão gestor;
2 – Conselho de Segurança Pública – existência;
3 – O conselho é paritário?;
4 – Quantidade de reuniões do conselho nos últimos 12 meses;
5 – Conselho comunitário de segurança pública – existência;
6 – Fundo de segurança pública – existência;
7 – Plano de segurança pública – existência;
8 – Guarda municipal – existência;
9 – Guarda treinada e/ou capacitada;
10 – Órgão de controle da guarda.
Assim, neste meu “tipo ideal” de atuação municipal em segurança, o município deveria ter algum tipo de órgão gestor superior de, mesmo que não seja uma secretaria de segurança exclusiva, que seria o melhor dos mundos. Deveria também contar com um Conselho de Segurança Pública, órgão superior de aconselhamento com composição preferencialmente paritária entre governo e sociedade civil, e que se reúne pelo menos 1 vez ao ano (meus critérios nem sempre são rigorosos…). Além deste “conselhão” de especialistas, também deveria contar com conselhos comunitários de segurança, em nível local e com participação da comunidade. Fazem parte ainda do “pacote premium” a existência de um Fundo Municipal de Segurança Pública e de um Plano Municipal de Segurança Pública. Ter uma guarda municipal é quesito de excelência e melhor ainda se a guarda tiver alguma rotina de treinamento e capacitação, mesmo que seja apenas no ingresso, embora o melhor fosse um treinamento periódico. Finalmente, a existência de um órgão de controle interno (corregedoria) ou externo (ouvidoria) para receber denúncias e fiscalizar a atuação da guarda. Muitas outras iniciativas e órgãos poderiam ser acrescentados a esta lista “ideal”, mas se formos demasiado exigentes, os pequenos municípios serão prejudicados, pois poucos poderiam arcar com a estrutura e custos envolvidos e é preciso ser minimamente realista.
Com efeito, se considerarmos todos os critérios escolhidos cumulativamente, apenas três municípios de todo o País poderiam ser classificados como “ideais”. A tabela abaixo mostra como estas diferentes estruturas e requisitos são distribuídos pelos municípios, tomando os itens isoladamente e cumulativamente.
Tomando os quesitos isoladamente, vemos que 22,6% dos municípios contam com algum tipo de órgão gestor da segurança, seja ele um órgão da administração indireta, secretaria conjunta ou exclusiva, setor subordinado à outra secretaria ou diretamente ao prefeito. Alguma estrutura para lidar com tema é, portanto, a estratégia mais frequente dos municípios, seguida da existência de uma guarda municipal (19,4%). Planos e fundos de segurança são, por outro lado, iniciativas mais raras, adotadas por somente 5% dos municípios.
A questão se complica quando começamos a analisar estas estratégias em conjunto, em busca de nossa “cidade ideal”. Como se pode ver na última coluna da tabela, apenas 14,1% tem ao mesmo tempo uma guarda e um órgão gestor de segurança. A porcentagem cai para 6% se acrescentarmos um órgão de controle e algum tipo de treinamento. E para 1,65% se adicionarmos a estes critérios a existência de um plano de segurança. Finalmente, para menos de 1% se incluirmos cumulativamente os demais critérios. Em resumo, apenas uma minoria ínfima de municípios (0,05%) seria avaliada positivamente, segundo os critérios selecionados: 3 atendem a todos os 10 quesitos, 4 atendem a 9 quesitos, 5 cidades a 8 quesitos e assim por diante.
Para quem tem curiosidade, as 5 cidades premiadas utilizando estes filtros seriam Niterói, Campinas, Diadema, Itatiba e Canoas – a lista completa de cidades e critérios pode ser encontrada aqui.
Como observado, em geral apenas os municípios maiores e com mais recursos conseguem atender à maioria dos quesitos, pois a atuação na segurança é custosa em termos de recursos humanos e financeiros. Se considerarmos o básico do básico, o atendimento apenas aos cinco primeiros quesitos – ter uma guarda, órgão gestor, órgão de controle, treinamento e plano de segurança – ainda assim apenas 1,6% dos municípios (92) seriam avaliados positivamente em termos de atuação na segurança. Percebe-se, assim, que a atuação municipal é ainda bastante incipiente e existe espaço para aperfeiçoar o que as cidades vêm fazendo pela segurança.
Sabemos alguma coisa do que as cidades estão tentando fazer graças ao IBGE. A pergunta de 1 milhão de dólares é: este esforço traz resultados? A resposta a esta pergunta é muito mais complexa: caberia à Senasp e aos órgãos de financiamento de pesquisas incentivar a comunidade acadêmica a tentar respondê-la. É muito dinheiro e esforço investido pelos municípios em segurança, cujos orçamentos estão à mingua. E neste aspecto avaliativo estamos no Brasil quase sempre como a Justiça: de olhos vendados!
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