Existem dois projetos de Lei
propondo a legalização dos jogos de azar tramitando pelo Congresso, um da
Câmara e outro do Senado. O jogo já foi permitido no Brasil, mas acabou proibido formalmente em 1946, sendo considerado uma contravenção pela Lei de
Contravenções Penais desde então.
Mesmo assim, é possível encontrar
uma banca do jogo do bicho em cada bar, uma lotérica autorizada pela Caixa
Econômica Federal em cada esquina e alguns cassinos e jogos de bingo espalhados
pela cidade, de conhecimento mais ou menos velado.
Trata-se de uma daquelas
atividades ambíguas que são incentivadas quando o administrador da jogatina é o
Estado ou que são pelo menos toleradas socialmente quando organizada por
contraventores privados que pagam em dia suas taxas para as policias. Crimes sem
vítima – como a prostituição ou o uso de drogas - nos quais ambos os lados,
comprador e vendedor da mercadoria, atuam em conluio para escapar da
fiscalização estatal.
Por outro lado, há quem os
entenda como crimes contra a sociedade, pois produzem externalidades que
prejudicam não apenas aos próprios usuários, mas também aos demais. Este
critério da existência e magnitude da externalidade deve ser levado em conta
quando se trata de avaliar em que medida um direito deve ser permitido ou
proibido.
Em princípio, um Estado liberal e
laico não deve interferir com as preferências e gostos dos indivíduos, sejam
eles o jogo, a droga, práticas sexuais, pilotar sem capacete ou portar armas.
Só que algumas destas atividades provocam malefícios coletivos graves e neste
sentido não estão em jogo apenas os direitos individuais, na medida em que os
custos são compartilhados por todos.
Jogadores compulsivos podem
dilapidar os recursos da família e sobra para os demais familiares ou para o
estado arcar com os custos dos seus excessos. Usuários crônicos de drogas podem
ter problemas escolares, no trabalho, doenças e cometer crimes para sustentar o
vício, custos que são distribuídos pelos pagadores de impostos. Armas dos
“cidadãos de bem” provocam milhares de feridos e mortos anualmente e alimentam
o mercado negro, aumentam os suicídios, os custos hospitalares, pensões.
etc. Pilotar motocicletas sem capacete ou carros sem cinto de segurança é mais
divertido, mas a quantidade e gravidade dos acidentes sem estas medidas de
precaução são enormes e toda a sociedade paga a conta. Fumo e bebida dão um
prejuízo enorme para a sociedade, mas seu uso é tão disseminado e socialmente
tolerado que o estado apenas regula seu uso, embora o prejuízo aqui seja maior
do que o das drogas ilícitas. Frequentar bordeis é permitido – mas não
explorá-los – e a prostituição é regulada em muitos países devido aos riscos
para a saúde pública.
O difícil é estimar empiricamente,
em cada um destes casos, quais são estes valores monetários e decidir quando os custos da
proibição são maiores ou menores do que os custos da liberação. Obviamente que
não se trata apenas de uma equação de custo benefício e considerações de ordem
moral são levadas em conta. No caso das armas, cintos de segurança e capacetes,
a sociedade brasileira concluiu que os direitos devem ser limitados, pois as
externalidades são muito grandes no país campeão mundial de homicídios e acidentes
de trânsito. Bebidas, fumo e prostituição, por outro lado, são tolerados e
regulados e nos dois primeiros casos
bastante taxados.
No caso das drogas – pelo menos
as de menor potencial, como a maconha – começa-se a discutir se os custos da
proibição não seriam maiores do que o da liberação. Alguns países e estados
norte-americanos legalizaram o uso recreativo da maconha e regulam e taxam a
atividade, pois as mortes e custos da guerra às drogas parecem sobrepujar os
custos do tratamento dos viciados crônicos.O mesmo raciocínio se aplica ao caso dos
jogos de azar: as externalidades da proibição seriam maiores do que as da
liberalização? Os recursos obtidos pelo
estado – como no caso da maconha nos EUA – não poderiam ser convertidos no
tratamento de usuários crônicos? O quadro abaixo resume
rapidamente os argumentos dos defensores e acusadores da proposta de
legalização do jogo.
Prós
|
Contras
|
Geração de empregos
|
Riscos para a saúde
pública, como o aumento do vício
|
Aumento da
arrecadação, cujos recursos seriam investidos nas áreas sociais
|
Impacto sócio
familiar nas famílias dos viciados
|
Jogos já existem de
fato, sem regulamentação e fiscalização
|
Fortalecimento de
grupos criminosos, como os bicheiros, que seriam anistiados e teriam
atividade regularizada
|
Dinheiro é gasto em
outros países ao invés de ficar no Brasil
|
Aumento da lavagem
de dinheiro, sonegação de impostos e evasão de receitas
|
Diminuição da
corrupção hoje existente por conta da ilegalidade
|
Religião recrimina
os jogos de azar
|
Fomento ao turismo
|
É inconstitucional,
pois é crime punido pela Lei de Contravenções Penais de 1941
|
Viciados seriam
cadastrados e tratados, ao contrário do que ocorre atualmente
|
|
Estado não deve
interferir na liberdade individual e nas iniciativas empresariais
|
|
Lavar dinheiro com o
jogo é alternativa cara e chama a atenção
|
|
Estado já explora
jogos de azar no Brasil, através das loterias
|
Os que são contrários à medida argumentam que a liberalização pode aumentar o número de viciados
(ludopatas) trazendo riscos para a saúde pública. O jogo é extremamente viciante para algumas pessoas, afetando suas relações sociais, produtividade, finanças e saúde psíquica, entre outros aspectos. O vicio interfere não apenas na vida dos viciados, mas afeta todas as pessoas próximas.
Alguns projetos propõem a anistia
para os atuais contraventores e os críticos argumentam que estes grupos criminosos
teriam sua atividade regularizada e se transformariam nos principais
organizadores por traz dos cassinos e bingos, uma vez que já contam com recursos
materiais e humanos para entrar neste mercado. A legalização facilitaria a
lavagem de dinheiro obtido ilegalmente. Finalmente, a atividade seria
inconstitucional, uma vez que proibida pela Lei de Contravenções Penais e
reprovável segundo os preceitos religiosos.
Em contrapartida, os grupos pró
jogo argumentam que a atividade geraria milhares de empregos e aumentaria a
arrecadação, cujos recursos poderiam ser investidos em gastos sociais ou na
segurança pública. Milhões são perdidos com os brasileiros que vão jogar no
exterior, onde a prática é permitida e outros milhões deixam de vir com o
turismo, caso o jogo fosse legalizado. Estes recursos poderiam ser utilizados
no tratamento dos usuários crônicos e o ganho seria mais do que compensador
para a sociedade.
Embora proibido, argumenta-se que
o jogo existe de fato e a legalização permitiria regular e fiscalizar melhor a
atividade. Como se trata de atividade ilegal, o jogo hoje estimula a corrupção
policial e ninguém pode aferir a honestidade dos resultados, como no caso das
máquinas de vídeo pôquer programadas para ganhar.
Quanto às questões morais e legais,
contra argumentam apontando que o Estado, com suas dezenas de loterias, já é
hoje, hipocritamente, o maior explorador e beneficiário dos jogos de azar e que
o Estado ou as religiões não tem o direito de determinar como os cidadãos
investem seu tempo e dinheiro. Finalmente, os defensores da liberalização dos
jogos sugerem que é muito caro e contraproducente lavar dinheiro através do
jogo, uma vez que os impostos são elevados e chamaria muito a atenção das
autoridades. Outras atividades legais seriam muito mais eficientes para esta
finalidade.
Vê-se assim que a questão envolve
argumentos econômicos, morais e legais e que faltam estudos independentes e
neutros para subsidiar a decisão, exatamente como no caso da legalização das
drogas. Quantos empregos seriam criados com a legalização? Do total de
usuários, que porcentagem pode ser considerada como “crônica” ou dependente?
Quais os custos do tratamento destes dependentes? Quanto seria ganho em
arrecadação ou quanto perdemos com os “custos de oportunidade” (turistas que
deixam de vir ao Brasil)? Como evitar que os grupos contraventores atuais
assumam papel de liderança na eventual legalização? Como dificultar a lavagem
de dinheiro?
O grande problema dos atuais
projetos tramitando no legislativo é que eles não respondem na prática a vários
destes questionamentos. São vagos e frouxos e assim afastam muitos dos que
seriam favoráveis à legalização. Enquanto todas estas principais arestas não
tiverem sido devidamente aparadas, é melhor não apostarmos na legalização. Quem
gosta de incertezas são os jogadores. Os administradores de recursos públicos
não podem se dar a este luxo. Até porque, estão apostando com o nosso dinheiro.
E para além das evidências
empíricas e do cálculo de custo benefício, existe a questão de fundo sobre que
tipo de sociedade nós queremos ser.
Nenhum comentário:
Postar um comentário