terça-feira, 13 de março de 2018

Igualdade e justiça no velho testamento



Meu filho completou 13 anos em fevereiro e como judeus faremos em breve seu “barmitzvá”, ocasião em que um jovem sobe pela primeira vez ao altar da sinagoga para ler um trecho da Bíblia. A cerimonia marca a maioridade religiosa e coube a ele a leitura do início do livro de Levítico (Parashá Vaikrá), que se lê em março e é uma espécie de manual de instruções detalhado para os sacerdotes levitas sobre como oferecer corretamente os sacrifícios no templo e outros rituais de purificação, dieta e expiação de pecados. Quase metade dos 613 mandamentos judaicos aparece no Levítico, cuja leitura é à primeira vista tão empolgante quanto à de uma lista telefônica. (algo desconhecido para esta geração)

Instado a fazer um breve comentário durante a cerimonia, a inspiração não me vinha. Compreensível diante de um trecho bíblico que discorre em detalhes sobre como degolar novilhos e cabras, destrinchar pombos, o que fazer com os rins e a gordura ou sobre as vestes sacerdotais, regras de pureza e impureza e assuntos tão empolgantes quanto. Aparentemente nada muito inspirador para um jovem de 13 anos interessado em Iphones e Youtubers ou para manter a congregação acordada.

Mas eis que a luz se fez e me deparei nestes dias com um vídeo que viralizou no Facebook e que mostra resumidamente a estória de uma menina de uns sete ou oito anos de idade que chega a uma loja de joias querendo comprar um colar para a irmã, que cuidava dela e das irmãs menores desde que a mãe falecera. O dono da loja pergunta: quanto dinheiro você tem? A menina então desembrulha um lencinho com algumas notas amarrotadas e moedas e entrega tudo ao comerciante. Ele pega o dinheiro, embrulha o colar um pacote bem bonito e dá para a menina. No dia seguinte, a irmã mais velha aparece na joalheria com o colar e diz que deve ter ocorrido algum engano, pois o presente era muito caro e a irmãzinha só tinha alguns trocados para dar. O comerciante então responde: na verdade ela pagou mais do que todos os outros clientes, pois ela deu tudo o que tinha. A lição subjacente é de que o sacrifício do pobre tem tanto ou mais valor do que o sacrifício do rico, pois o valor relativo da oferta depende da riqueza de cada um.

Há cerca de 150 anos, um neto de rabinos chamado Karl Marx, talvez o último grande profeta judaico, popularizará este conceito de justiça redistributiva com a fórmula “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Também aqui aparece um conceito de justiça que não é o de igualdade formal burguesa ou equivalência absoluta, mas sim relativa à capacidade de contribuição de cada pessoa. (O problema do socialismo não é este conceito de igualdade, que é bíblico e aristotélico, mas o de que ele não supre as necessidades de cada um, uma vez que não estimula as pessoas a produzirem de acordo com sua capacidade).

Ocorre que este conceito de justiça “não igualitária”, como tantos outros conceitos, ideias e valores, já estavam presentes no Velho Testamento e o trecho dos sacrifícios no templo narrado pelo Levítico ilustra algumas vezes esta mesma ideia de justiça presente no vídeo do Facebook e em Marx.

Os sacrifícios poderiam ser feitos com animais de diferentes valores ou com outros bens mais populares, como farinha ou azeite, incenso, sal, de modo que todos – ricos e pobres - pudessem oferecer alguma coisa ao templo e expiar seus pecados. Mas RASHI (Rabino francês Shlomo Yitzhaki, famoso comentarista medieval dos textos sagrados), examinando com cuidado a terminologia, observa que o texto usa uma expressão diferente quando fala da oferta de bois ou de farinha. No caso dos animais mais caros, ofertados pelos ricos, o texto diz, “quando um homem faz a oferta de...”. Mas no caso da farinha o texto muda para “se uma alma faz a oferta de...”. Por que só aqui a expressão “alma” é utilizada? Segundo RASHI, isto significa que a oferta dos pobres é mais relevante para D´us do que a oferta dos ricos. A ideia subjacente é que a oferta de um bem que te sobra é menos valiosa do que a oferta de um bem que te falte. Quando um pobre doa sua farinha, azeite ou sal, ele tira a comida de sua própria casa e família. É como se tivesse sacrificado sua própria “alma”. Pode ser um sacrifício menor em termos absolutos, porém é maior em termos relativos.

Presente aqui implicitamente esta ainda a ideia de que se espera mais das pessoas mais capazes ou com maiores responsabilidades. Elas devem ser exemplares para as demais e, por conseguinte, punidas com maior rigor no caso das faltas. De novo, estamos falando de um conceito de justiça dentro da qual a lei não é igual para todos (isonomia). Mas antes de justiça vista aristotelicamente como “tratar desigualmente aos desiguais, na medida de sua desigualdade”. Ou de “justiça formal” versus “justiça material”. Ressalte-se que não estamos falando aqui de “caridade”, como deixar o que sobra da colheita para viúvas e órfãos – mas de justiça: no caso em questão os pobres não estão recebendo, mas sim ofertando coisas. Só que na medida de sua capacidade. Conceito interessante, para uma sociedade que se acostumou a pensar justiça como caridade, onde os pobres só devem, sempre, receber.

Estas diferenças entre os sacrifícios de ricos e pobres sugeridas pelo Levítico e o conceito de igualdade que ele propõe, não são apenas curiosidades históricas sem importância para os dias de hoje. Ao contrário, esta noção de que para ser materialmente justo é preciso às vezes tratar os desiguais desigualmente está na maioria das constituições e em dezenas de políticas públicas. É o que chamamos modernamente de discriminação positiva.  Só para exemplificar, a lei dá mais dias de licença maternidade para as mulheres, que se aposentam também mais cedo do que os homens. Estabelece cotas para minorias e deficientes nos concursos. A Justiça Trabalhista trata o empregado como “hiposuficiente” frente ao empregador e interpreta as provas duvidosas em favor do operário (“in dubio, pro misero”). Crianças e adolescentes não são tratados como adultos pela legislação penal e idosos desfrutam de uma série de discriminações compensatórias, como atendimento ou vagas preferenciais. E nenhuma destas situações – ao contrário do auxílio moradia para os juízes - viola a constituição ou o princípio da igualdade.

Vemos então como é possível resgatar num texto de milhares de anos conceitos e ensinamentos válidos para os dias de hoje. Não se fazem mais, felizmente, sacrifícios de animais no templo, mas muitos dos conceitos ali expostos são perenes. Conceitos e valores que são mais importantes do que os rituais propriamente ditos e que são o grande legado do judaísmo para o mundo.

Que este barmitzvá seja a primeira de muitas vezes em que você se debruçará sobre os textos sagrados em busca de sabedoria!






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