Meu filho completou 13 anos em
fevereiro e como judeus faremos em breve seu “barmitzvá”, ocasião em que um
jovem sobe pela primeira vez ao altar da sinagoga para ler um trecho da Bíblia.
A cerimonia marca a maioridade religiosa e coube a ele a leitura do início do
livro de Levítico (Parashá Vaikrá), que se lê em março e é uma espécie de
manual de instruções detalhado para os sacerdotes levitas sobre como oferecer corretamente
os sacrifícios no templo e outros rituais de purificação, dieta e expiação de
pecados. Quase metade dos 613 mandamentos judaicos aparece no Levítico, cuja
leitura é à primeira vista tão empolgante quanto à de uma lista telefônica.
(algo desconhecido para esta geração)
Instado a fazer um breve
comentário durante a cerimonia, a inspiração não me vinha. Compreensível diante
de um trecho bíblico que discorre em detalhes sobre como degolar novilhos e
cabras, destrinchar pombos, o que fazer com os rins e a gordura ou sobre as vestes
sacerdotais, regras de pureza e impureza e assuntos tão empolgantes quanto. Aparentemente
nada muito inspirador para um jovem de 13 anos interessado em Iphones e
Youtubers ou para manter a congregação acordada.
Mas eis que a luz se fez e me
deparei nestes dias com um vídeo que viralizou no Facebook e que mostra resumidamente
a estória de uma menina de uns sete ou oito anos de idade que chega a uma loja
de joias querendo comprar um colar para a irmã, que cuidava dela e das irmãs menores
desde que a mãe falecera. O dono da loja pergunta: quanto dinheiro você tem? A
menina então desembrulha um lencinho com algumas notas amarrotadas e moedas e
entrega tudo ao comerciante. Ele pega o dinheiro, embrulha o colar um pacote
bem bonito e dá para a menina. No dia seguinte, a irmã mais velha aparece na
joalheria com o colar e diz que deve ter ocorrido algum engano, pois o presente
era muito caro e a irmãzinha só tinha alguns trocados para dar. O comerciante
então responde: na verdade ela pagou mais do que todos os outros clientes, pois
ela deu tudo o que tinha. A lição subjacente é de que o sacrifício do pobre tem
tanto ou mais valor do que o sacrifício do rico, pois o valor relativo da
oferta depende da riqueza de cada um.
Há cerca de 150 anos, um neto de
rabinos chamado Karl Marx, talvez o último grande profeta judaico, popularizará
este conceito de justiça redistributiva com a fórmula “de cada qual, segundo
sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Também aqui aparece um
conceito de justiça que não é o de igualdade formal burguesa ou equivalência
absoluta, mas sim relativa à capacidade de contribuição de cada pessoa. (O
problema do socialismo não é este conceito de igualdade, que é bíblico e
aristotélico, mas o de que ele não supre as necessidades de cada um, uma vez
que não estimula as pessoas a produzirem de acordo com sua capacidade).
Ocorre que este conceito de
justiça “não igualitária”, como tantos outros conceitos, ideias e valores, já
estavam presentes no Velho Testamento e o trecho dos sacrifícios no templo narrado
pelo Levítico ilustra algumas vezes esta mesma ideia de justiça presente no
vídeo do Facebook e em Marx.
Os sacrifícios poderiam ser
feitos com animais de diferentes valores ou com outros bens mais populares,
como farinha ou azeite, incenso, sal, de modo que todos – ricos e pobres -
pudessem oferecer alguma coisa ao templo e expiar seus pecados. Mas RASHI (Rabino
francês Shlomo Yitzhaki, famoso comentarista medieval dos textos sagrados),
examinando com cuidado a terminologia, observa que o texto usa uma expressão
diferente quando fala da oferta de bois ou de farinha. No caso dos animais mais
caros, ofertados pelos ricos, o texto diz, “quando um homem faz a oferta de...”.
Mas no caso da farinha o texto muda para “se uma alma faz a oferta de...”. Por que
só aqui a expressão “alma” é utilizada? Segundo RASHI, isto significa que a
oferta dos pobres é mais relevante para D´us do que a oferta dos ricos. A ideia
subjacente é que a oferta de um bem que te sobra é menos valiosa do que a
oferta de um bem que te falte. Quando um pobre doa sua farinha, azeite ou sal,
ele tira a comida de sua própria casa e família. É como se tivesse sacrificado
sua própria “alma”. Pode ser um sacrifício menor em termos absolutos, porém é
maior em termos relativos.
Presente aqui implicitamente esta
ainda a ideia de que se espera mais das pessoas mais capazes ou com maiores responsabilidades.
Elas devem ser exemplares para as demais e, por conseguinte, punidas com maior
rigor no caso das faltas. De novo, estamos falando de um conceito de justiça
dentro da qual a lei não é igual para todos (isonomia). Mas antes de justiça
vista aristotelicamente como “tratar desigualmente aos desiguais, na medida de
sua desigualdade”. Ou de “justiça formal” versus “justiça material”. Ressalte-se
que não estamos falando aqui de “caridade”, como deixar o que sobra da colheita
para viúvas e órfãos – mas de justiça: no caso em questão os pobres não estão
recebendo, mas sim ofertando coisas. Só que na medida de sua capacidade.
Conceito interessante, para uma sociedade que se acostumou a pensar justiça
como caridade, onde os pobres só devem, sempre, receber.
Estas diferenças entre os
sacrifícios de ricos e pobres sugeridas pelo Levítico e o conceito de igualdade
que ele propõe, não são apenas curiosidades históricas sem importância para os
dias de hoje. Ao contrário, esta noção de que para ser materialmente justo é preciso
às vezes tratar os desiguais desigualmente está na maioria das constituições e
em dezenas de políticas públicas. É o que chamamos modernamente de
discriminação positiva. Só para
exemplificar, a lei dá mais dias de licença maternidade para as mulheres, que
se aposentam também mais cedo do que os homens. Estabelece cotas para minorias
e deficientes nos concursos. A Justiça Trabalhista trata o empregado como
“hiposuficiente” frente ao empregador e interpreta as provas duvidosas em favor
do operário (“in dubio, pro misero”). Crianças e adolescentes não são tratados
como adultos pela legislação penal e idosos desfrutam de uma série de discriminações
compensatórias, como atendimento ou vagas preferenciais. E nenhuma destas
situações – ao contrário do auxílio moradia para os juízes - viola a
constituição ou o princípio da igualdade.
Vemos então como é possível
resgatar num texto de milhares de anos conceitos e ensinamentos válidos para os
dias de hoje. Não se fazem mais, felizmente, sacrifícios de animais no templo,
mas muitos dos conceitos ali expostos são perenes. Conceitos e valores que são
mais importantes do que os rituais propriamente ditos e que são o grande legado
do judaísmo para o mundo.
Que este barmitzvá seja a
primeira de muitas vezes em que você se debruçará sobre os textos sagrados em
busca de sabedoria!
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