Tulio Kahn
A proposta legislativa em tramitação no estado do Paraná, que visa obrigar
condenados definitivamente pela Justiça a arcarem com os custos da atuação
policial em seus casos, reabre um debate complexo sobre os limites da
responsabilização penal e os fundamentos do financiamento do sistema de justiça
criminal. O projeto estabelece que os valores pagos pelo condenado, que
englobariam despesas com diligências, captura e investigação policial, seriam
revertidos a um fundo destinado à própria segurança pública. Tal iniciativa,
ainda que inédita nos moldes amplos sugeridos, encontra ecos parciais em
experiências internacionais, especialmente no contexto de países com sistemas
federativos e modelos penais descentralizados.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a cobrança de taxas e custas judiciais de
condenados é amplamente praticada, sob a justificativa de que o usuário do
sistema deve arcar com parte dos seus custos. Os chamados court costs e
criminal fees são impostos em muitos estados para cobrir serviços como perícias,
assistência jurídica e manutenção do sistema judicial. Em algumas jurisdições,
essas cobranças se estendem até mesmo a custos administrativos de prisão e
liberdade condicional. Contudo, é importante observar que essas taxas raramente
incluem diretamente os custos da investigação policial, uma vez que esta é
considerada uma função essencial do Estado, financiada por meio de impostos e
destinada à coletividade. A Suprema Corte de Michigan, por exemplo, tem
permitido a cobrança de determinadas taxas desde que haja autorização
legislativa clara e critérios objetivos para sua imposição, evitando o que
seria uma delegação inconstitucional de poder de tributar, como analisado por
entidades como o Mackinac Center for Public Policy.
Na Alemanha, adota-se o princípio de que o condenado deve reembolsar
determinadas despesas do processo, como honorários de defensores públicos e
custas processuais, mas não os custos da investigação policial. A lógica
adotada no direito penal alemão reconhece a natureza pública e indelegável da
atividade policial e a considera parte do dever geral do Estado de manter a
ordem e proteger os direitos fundamentais. Similarmente, no Canadá e na
Irlanda, embora haja mecanismos de recuperação de ativos criminosos — como o
confisco de bens por meio do Criminal Assets Bureau irlandês — não se impõe ao
réu o pagamento direto das despesas operacionais da polícia, sendo os valores
arrecadados revertidos para o erário público e não para fundos corporativos das
agências responsáveis.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece a gratuidade da
jurisdição penal e protege o condenado contra penas que extrapolem a privação
de liberdade. A imposição de encargos financeiros ao condenado, especialmente
quando relacionados a serviços estatais prestados de forma obrigatória e
unilateral, suscita dúvidas constitucionais relevantes. A dignidade da pessoa
humana, fundamento da República (art. 1º, III), e os princípios da isonomia e
da vedação de penas cruéis ou desproporcionais (art. 5º, incisos III e XLVII),
seriam diretamente tensionados por uma legislação que impusesse a condenados
financeiramente vulneráveis o ônus de custear ações estatais que não foram
voluntariamente solicitadas, mas sim exercidas como parte do dever do Estado de
investigar e punir crimes. Além disso, a exigência de lei específica para a
criação ou majoração de tributos (art. 150, I) também representa um obstáculo
jurídico, já que a cobrança poderia ser interpretada como uma taxa disfarçada
de pena, em evidente desvio de finalidade.
Ainda que se reconheça a racionalidade aparente da proposta, baseada na
ideia de que o autor de um crime deve assumir os custos que impôs à sociedade,
os riscos de se instituir uma medida como essa são significativos. Há o perigo
concreto de se aprofundar a criminalização da pobreza, com indivíduos sem
recursos acumulando dívidas impagáveis com o Estado, o que dificultaria ainda
mais sua reintegração social. A medida poderia, inclusive, reforçar ciclos de
reincidência, já que o endividamento do ex-presidiário comprometeria sua
capacidade de recomeço. Além disso, há o risco de induzir os órgãos de
persecução penal a aumentarem o custo das investigações ou multiplicarem
diligências como forma de arrecadação, comprometendo a imparcialidade e a
racionalidade da ação estatal.
Por outro lado, defensores da proposta argumentam que ela promoveria justiça
distributiva, responsabilizando o autor do crime pelos danos econômicos
causados à coletividade. Além disso, os recursos obtidos poderiam financiar
melhorias nas corporações policiais, modernizando equipamentos, treinamentos e
condições de trabalho. Trata-se, segundo essa visão, de um incentivo à
eficiência do sistema penal e um desestímulo à prática criminosa, ao associar
custos concretos à violação da norma penal.
No entanto, mesmo que se considere legítimo o objetivo de melhorar o
financiamento das instituições de segurança pública, parece mais adequado
buscar alternativas que não comprometam princípios constitucionais
fundamentais. Entre essas alternativas, destaca-se o fortalecimento dos
mecanismos de recuperação de ativos obtidos de forma ilícita, com a reversão
dos valores para fundos públicos de segurança, conforme já previsto na
legislação brasileira sobre lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito. Outra
possibilidade seria a ampliação do uso de penas patrimoniais em substituição à
pena privativa de liberdade, nos casos em que o crime permitir tal
substituição, desde que respeitados os princípios da proporcionalidade e da
capacidade contributiva.
Em conclusão, a proposta legislativa paranaense representa uma inovação que,
embora motivada por preocupações legítimas com a sustentabilidade fiscal da
segurança pública, suscita sérias objeções jurídicas e éticas. A atividade
policial deve permanecer como função essencial do Estado, custeada por toda a
sociedade e exercida de forma equitativa. A responsabilização do condenado deve
ser proporcional, razoável e orientada pela proteção de seus direitos
fundamentais, não sendo compatível com mecanismos que possam aprofundar
desigualdades sociais ou comprometer a natureza pública da repressão estatal.
Para que políticas de responsabilização financeira possam ser discutidas de
maneira construtiva, é necessário que estejam ancoradas em estudos empíricos,
comparações internacionais robustas e, sobretudo, no respeito ao arcabouço
constitucional vigente.
Referências
· Este
artigo foi escrito com auxílio do Chagpt
·
BEALE, Sara Sun. Too Many and Yet Too Few: New Principles to Define the Proper
Limits for Federal Criminal Jurisdiction. Hastings Law Journal, v. 46,
2004.
MACKINAC CENTER FOR PUBLIC POLICY. Is it Constitutional to Require Criminal
Defendants to Fund Their Own Prosecution? Disponível em: https://www.mackinac.org/is-it-constitutional-to-require-criminal-defendants-to-fund-their-own-prosecution.
Brennan Center for Justice.
The Steep Costs of Criminal Justice Fees and Fines. Disponível em: https://www.brennancenter.org/our-work/research-reports/steep-costs-criminal-justice-fees-and-fines.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
WHITMAN, James Q. Harsh Justice: Criminal Punishment and the Widening Divide
Between America and Europe. Oxford University Press, 2003.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2018.
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