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quinta-feira, 23 de agosto de 2018
Senta que lá vem correlação: governo disponibiliza dados criminais nacionais
Desde que foi criada em 1997, a Secretaria Nacional de Segurança Pública passou a coletar dados criminais e de atividades policiais das secretarias de segurança pública estaduais, na tentativa de elaborar uma política nacional de segurança, identificar tendências ou avaliar impacto de projetos patrocinados pelo Ministério da Justiça, entre outros objetivos. Tenho comigo planilhas de coleta da Senasp de 1998, solicitando dados retroativos a 1996, de modo que podemos datar dai o primeiro esforço sistemático de construção de um sistema nacional de indicadores de segurança. Nem tudo na história do Brasil começou com a “mudança de paradigma” das gestões petistas e nem parou depois delas.
Em 2002, na minha curta passagem pelo Ministério da Justiça na gestão do Secretário Jose Vicente da Silva, organizamos com base nas planilhas envidas pelos Estados o que foi o primeiro e último balanço anual de tendências criminais nacionais, divulgando atravé de um boletim e coletiva de imprensa no auditório do MJ os dados criminais dos estados e capitais, relativos aos anos de 2000 e 2001.
De 2003 em diante houve um aperfeiçoamento gradativo na coleta, padronização, cobertura e sistematização das estatísticas criminais e de atividades policiais. A partir de 2004 os dados passaram a ser coletados mensalmente, através de formulários eletrônicos, para todos os municípios maiores de 100 mil habitantes e desde 2013 para todos os municípios. Não obstante a melhora na qualidade da informação, estas nunca mais foram publicamente analisadas e comentadas pelo governo federal, seja por receio de que os números tivessem ainda problemas de qualidade, seja por receio de que fossem bons o bastante para mostrar o desgoverno que ocorria em alguns estados. De todo modo, o papel do governo federal é de coletar, padronizar e divulgar as informações e não necessariamente de interpretá-las.
Em 2006 um grupo de pesquisadores do qual fiz parte fundou o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e no ano seguinte publicamos o primeiro Anuário Brasileiro de Segurança, trazendo para a sociedade de civil – com o apoio do governo – a tarefa de coletar, sistematizar e analisar alguns dados nacionais, no que tange à macrotendências estaduais e anuais. Em 2011, através do módulo web do Sinespjc, o governo federal disponibilizou para consulta on-line alguns indicadores criminais, novamente por ano e agregados em nível estadual. Em ambos os casos – anuário e Sinespjc - estamos falando em dados anuais, agregados por estado e nem sempre atualizados com a periodicidade necessária para o planejamento de políticas de segurança pública. Pouco adequados também para uma análise mais minuciosa da criminalidade pelo mundo acadêmico, que se valeu frequentemente dos dados do Datasus ou dos governos estaduais mais transparentes para a realização de pesquisas.
Todo este preâmbulo é para destacar a novidade na forma atual de disponibilização dos dados coletados pelo Sinespjc, que poucos se deram conta ou utilizaram. Vinte e um anos após a criação da Senasp , através do portal de Dados Abertos do governo federal, desde 2018 já é possível acessar a série histórica mensal de dados criminais coletadas pelo governo federal (de 2004 ao primeiro semestre de 2017), para todos os municípios, para as naturezas homicídio doloso, roubo de veículo, furto de veículo, roubo seguido de morte, estupro e lesão corporal seguida de morte. (Dados aqui para os interessados: https://public.tableau.com/views/Sinespnovo/variaotaxalinha?:embed=y&:display_count=yes)
Sim, são poucos os indicadores disponibilizados e a base não está atualizada. Tem lacunas e problemas de qualidade. Mas o ótimo é inimigo do bom e nada como a luz do sol sanear as deficiências. É um avanço enorme com relação aos últimos anos. Não é preciso pedir as informações para ninguém e os dados estão num nível de granularidade e desagregação que não tínhamos até agora, exceto do que tange as mortes, contabilizadas pelo Datasus e seguindo a definição do setor de saúde.
Não vamos aqui explorar a base em detalhes, mas apenas ilustrar o seu potencial. Nos parágrafos abaixo, tomamos os seis indicadores criminais disponibilizados pelo Sinespjc, para os anos 2014 a 2016 e correlacionamos com a renda per capita do município, coletada pelo IBGE em 2010. Como se sabe, renda tem um impacto ambíguo sobre criminalidade e seu crescimento, segundo a literatura criminológica: tende a diminuir os crimes contra a pessoa (que são poverty driven) mas aumentar os crimes patrimoniais, que são opportunity driven. Rouba-se nos locais onde há algo para ser roubado. (mostramos isso com os dados dos estados em 2002. https://super.abril.com.br/comportamento/o-mapa-da-violencia/)
Os dados subnacionais parecem corroborar este padrão. Para todos os anos, a correlação é positiva entre renda per capita, por um lado, e a taxa de furto e roubo de veículos por 100 mil habitantes nos municípios. E negativa com as taxas de homicídios dolosos e de lesão corporal seguida de morte. Como esperado, os municípios mais ricos têm taxas elevadas de roubo e furto de veículos e taxas baixas de homicídios e lesões. As correlações bivariadas são estatisticamente significativas e particularmente fortes no caso dos furtos de veículos.
Por outro lado, os dados sugerem uma relação positiva entre renda per capita do município e taxa de estupros e negativa com latrocínio (roubo seguido de morte), contrariando o esperado. É possível que seja um “artifício” estatístico pois estupros sofrem bastante com o problema da subnotificação pelas vítimas e o número de casos absolutos de latrocínios é pequeno, provocando flutuações bruscas.
Mas é possível também que os dados estejam mostrando algo sobre o fenômeno em si: a notificação de estupros varia com a renda da vítima (quanto mais rica e escolarizada, maior a propensão a notificar o crime às autoridades). Assim, talvez a taxa de estupros seja maior nos municípios de maior renda porque a notificação dos casos é maior nestes municípios, provocando um sinal “positivo” quando deveria ser “negativo”.
No caso dos latrocínios, sempre pensamos o crime como um roubo que não deu certo, cuja motivação é basicamente patrimonial. Assim, esperaríamos uma tendência parecida com os demais crimes patrimoniais: maior a renda, mais objetos a serem roubados, maior a taxa de latrocínio. Mas encontramos, como visto, uma relação inversa com a renda, tal como nos crimes contra a pessoa. A relação inversa se manifesta claramente em todos os anos (inclusive 2013 e 2017, não mostrados no gráfico) e as amostras incluem mais de 600 municípios. Ou seja, é possível que não seja um artifício estatístico e que o latrocínio expresse algo além da motivação econômica. Haveria nele alguma coisa de ódio social ou raiva, mesmo que a vítima seja desconhecida? Algo a mais do que um acidente de percurso ou descuido durante um roubo?
Não é o caso de esmiuçar estas associações neste espaço uma vez que o intuito era apenas ilustrar o potencial da base Sinespjc municipal e mensal para a análise. Com este nível de desagregação espacial e frequência temporal novas pesquisas são viáveis e os resultados tornam-se mais robustos. Podemos testar o efeito de práticas e políticas que foram implementadas em apenas alguns municípios (por exemplo, efeito da existência de secretarias municipais de segurança sobre os crimes). Ou que vigoraram durante um período específico de tempo (por exemplo, impacto dos meses de recessão econômica sobre os crimes). Pesquisas que as bases de dados estaduais e anuais não permitiam.
Esperamos que a disponibilização de dados seja mantida pelo próximo governo federal, incluindo cada vez mais indicadores criminais e dados cada vez mais completos e atualizados. Sem bons dados não existe política eficaz de segurança. É importante produzi-los e divulga-los, mesmo quando eles não mostram aquilo que o poder público gostaria. Já vi governos estaduais que divulgam dados criminais quando estão bons e voltam a omiti-los quando estão ruins. A falta de transparência só ajuda a agravar o problema, quebrando o termômetro para esconder a febre. Mas ela tende a voltar. E se não for bem diagnosticada e a tempo, termina por matar o paciente.
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