segunda-feira, 11 de março de 2019

Estatísticas Criminais e a Lei de Newcomb-Benford



Vamos supor que sou um policial pouco honesto e que o desempenho da minha área – e a minha renumeração - seja medido ou varie em função da quantidade mensal de roubos. Ao invés de registrar a quantidade real de roubos na planilha, digamos, posso ser tentado a inventar os números, tirando-os da minha própria cabeça ou recorrendo a algum sorteio aleatório de números. Não o aconselho a fazer isso, exceto se for um bom conhecedor da lei de Newcomb-Benford. Não adianta consultar o Código Penal. Trata-se de uma “Lei” no sentido matemático do termo.

Na tabela abaixo utilizamos o gerador de números aleatório do Google e ele nos gerou doze quantidades fictícias de “roubos” para minha área, uma para cada mês do ano. Para efeito de demonstração, deixei os números variarem de 100 a 1000 (o que raramente ocorre com crimes, que na verdade são bastante estáveis) e aparentemente, a série gerada pelo computador faz sentido para um observador desatento.

Com um exercício para entender a natureza do problema, separe-se, por exemplo, o primeiro dígito de cada centena gerada: na terceira coluna da tabela vemos estes dígitos em destaque. Note-se que o digito 8 aparece na série três vezes na primeira posição (25%), o número 7 aparece apenas uma vez (8,3%), o número 5 surge duas vezes (16,7%) e assim por diante.

Análise do 1º dígito de números aleatórios
Mês
Roubos
1º digito

Digito
Freq.
%
jan
899
8

1
2 vezes
16,7%
fev
776
7

2
1 vez
8,3%
mar
535
5

3
0 vezes
0,0%
abr
241
2

4
2 vezes
16,7%
mai
149
1

5
2 vezes
16,7%
jun
487
4

6
1 vez
8,3%
jul
547
5

7
1 vez
8,3%
ago
853
8

8
3 vezes
25,0%
set
111
1

9
0 vezes
0,0%
out
420
4


12
100,0%
nov
620
6




dez
890
8




Fonte: gerados de números do Google

Segundo a lei dos grandes números, se a nossa amostra de casos sorteados aleatoriamente aumentasse, a distribuição percentual de cada dígito de 1 a 9 se aproximaria de 11,1%, que é a frequência teórica esperada, supondo que cada dígito tem uma probabilidade equivalente de ocorrência. (se incluíssemos o dígito 0, a porcentagem seria 10%, obviamente)

E é precisamente ai que nosso policial desonesto se estrepa. Ocorre que para diversos tipos de fenômenos, a distribuição do primeiro digito numa coleção de números não é equiprovável. Trata-se de um fenômeno descoberto há cerca de dois séculos e que se aplica à uma série de diferentes listas de números: valor de contas de luz, lista de códigos postais, população municipal, edifícios mais altos do mundo, preços de ações, comprimento de rios,  pesos, moleculares, etc. Infelizmente não há uma regra que diga à priori e quando uma distribuição de frequências segue o formato Newcomb- Benford. É preciso coletar os dados e realizar um teste empírico. 

Para infelicidade do nosso policial pouco versado em estatística, a distribuição da maioria dos crimes também segue uma distribuição de frequência Newcomb-Benford, em homenagem a seus descobridores. 

Benford já notara esta característica nos anos 30 com as taxas de mortalidade e Hikman e Rice observaram o mesmo padrão ao estudarem em 2010 as estatísticas criminais nacional e estaduais norte americanas. (Digital Analysis of Crime Statistics: Does Crime Conform to Benford’s Law? Hickman, M.J. & Rice, S.K. J Quant Criminol (2010) 26: 333. https://doi.org/10.1007/s10940-010-9094-6.)

Numa distribuição deste tipo, quando separamos o primeiro dígito de cada número, o digito 1, por exemplo, aparece 30,1% do tempo e o dígito 9, apenas 4,6% do tempo. A probabilidade de ocorrência de cada dígito não é equiprovável, mas antes decai numa forma que é logarítmica, como no gráfico abaixo.



A tabela seguinte traz exemplos com crimes brasileiros, agregados em nível estadual[1]. Vamos explorá-la um pouco. Nas duas últimas colunas vemos a distribuição teórica dos dígitos segundo a distribuição esperada de Benford e na última coluna a distribuição real encontrada pelo autor nas taxas de mortalidade que estudou em 1938. Nas demais colunas encontramos a distribuição dos primeiros dígitos nas estatísticas criminais reportadas pelos Estados brasileiros entre 2001 e 2019, formando uma coleção de números com 32 mil linhas. Os crimes analisados são Estupro, furto, furto de veículo (FV), homicídio doloso (HD), lesão corporal dolosa (LCD), lesão corporal seguida de morte, roubo (RB), roubo de veículo (RV) e tráfico de drogas.

Como pode ser notado pela tabela, com exceção da lesão corporal dolosa, a maioria dos crimes parece realmente seguir uma distribuição de Newcomb-Benford, quando analisamos a frequência dos primeiros dígitos em cada coleção de crimes. Quando combinamos todos os crimes na coluna Total Geral, observe-se a notável semelhança com a distribuição esperada.




Na parte de baixo da tabela anotamos as diferenças, em cada célula, entre a distribuição esperada e a distribuição encontrada nas estatísticas criminais nacionais. Quando somamos os números absolutos em cada coluna (desconsiderando o sinal), temos uma medida rústica do quanto cada indicador criminal se desvia ou não da distribuição teórica esperada. Note-se que é raro encontrarmos um desvio maior do que + ou – 5%, com exceção da mencionada coluna lesão corporal dolosa.

Não é o caso de discutir no escopo deste artigo por que a maioria dos crimes segue a distribuição de Benford ou por que as estatísticas nacionais de lesão corporal dolosa se afastam aparentemente deste padrão. Mais importante aqui é perceber como esta característica desta coleção de números pode ser utilizada como uma ferramenta para detectar tentativas de fraude. De fato, desde os anos 70, contadores e outros profissionais de auditorias procuram utilizá-las desta manceira.

No setor de estatística criminal que coordenei em São Paulo, adotávamos diversos mecanismos de controle de qualidade: leitura diária de uma amostra aleatória de boletins em busca de inconsistências, comparações entre as séries históricas de homicídios com as mortes por agressão compiladas pelo ministério da saúde, controle estatístico de qualidade “3 sigmas”, e, esporadicamente, também a técnica ilustrada acima, de distribuição de frequência do primeiro dígito. Com exceção de um ou outro episódio excepcional – greve na polícia, ataques de maio de 2006, mudança no código penal, criação da denúncia on-line, etc. – assinale-se que jamais identificamos em oito anos de SSP, tentativas “dolosas” de fraude nas estatísticas criminais, embora certamente tenham ocorrido erros de digitação e outras inconsistências.

Para o bem ou para o mal, o fato é que crimes são fenômenos sociais extremamente regulares e previsíveis: existem padrões sazonais, cíclicos, perfis conhecidos de horários, dias da semana, vítimas, autores, etc. Eles seguem também as leis de concentração espacial. Em resumo, para falsificar uma ocorrência ou um grupo de ocorrências que seja coerente, é preciso conhecer muito bem este perfil, para que os dados não fujam muito dos padrões.

Nestes tempos de políticas “compliance” adotados por empresas e governos, é sempre bom lembrar que as estatísticas são ferramentas importantes para a detecção de fraudes e erros. Lembrando sempre que estatísticas são de natureza probabilística.

Recentemente, um jornal de grande circulação nacional calculou a razão entre gastos eleitorais e votos e identificou indícios de candidaturas “laranjas”, pois diversos candidatos(as) tinham obtido poucos votos, mesmo gastando milhares de reais (este mesmo jornal esqueceu de averiguar o desvio inverso, muitos votos com poucos recursos). Como sempre, as estatísticas fornecem indícios probabilísticos das fraudes, jamais certezas e é sempre complicado expor publicamente pessoas com base em probabilidades estatísticas. Como diz o ditado, a estatística deve ser utilizada como um bêbado usa um poste: mais como ponto de apoio do que como fonte de luz! De todo modo, pode ser um passo inicial importante para o aprofundamento das investigações. As estatísticas criminais nacionais, em sua maioria, parecem passar neste teste de integridade.

Fontes adicionais





[1] Observe-se que a distribuição de Newcomb-Benford, depende em parte da unidade de análise utilizada. Estatísticas agregadas por municípios ou por Distritos policiais não seguem necessariamente esta distribuição, uma vez que a quantidade absoluta de crimes cai. No caso de crimes raros, teríamos uma grande porcentagem de primeiros dígitos concentrados entre os dígitos 1 e 2. Quando usamos taxas ao invés de números absolutos, a distribuição também se afasta da esperada, uma vez que alteramos a escala dos dados.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Queda dos homicídios em 2018 não deve se repetir em 2019



Os homicídios em 2018 caíram com relação a 2017 e a queda foi intensa e generalizada. Dos 27 Estados, 24 apresentaram queda. Em magnitude, a média foi de -13%, uma das mais intensas da última década. Os números e detalhes de cada estado podem ser consultados no projeto Monitor da Violência, organizado em conjunto pelo G1, NEV e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Com dados disponíveis até metade do ano, a tendência também pode ser verificada através do Painel de Monitoramento da Mortalidade do Datasus ou no meu blog, onde compilo as estatísticas estaduais de homicídios e outros crimes.

Se os dados são unanimes ao apontarem a melhora significativa dos homicídios em 2018, as interpretações sobre as razões da queda estão longe da unanimidade. Instados pelo G1 a interpretar o fenômeno, meus colegas Renato Sergio de Lima e Samira Bueno, do FBSP, apostam nas políticas de segurança pública colocadas em prática pelos Estados nos últimos anos, como a cooperação entre diferentes órgãos e instancias governamentais. Meu amigo Bruno Manso, pelo NEV-USP, interpreta a queda como um momento de pacificação dos confrontos promovidos pelo crime organizado nos anos anteriores, que fizeram os homicídios crescer no Norte/Nordeste. 

Ambas interpretações explicam parte da realidade, mas deixam de lado questões importantes: por que em tantos Estados? Por que simultaneamente? Por que com esta intensidade? Como explicar a queda também generalizada nos roubos? Como se vinculam os projetos adotados nos Estados, bastante díspares, com a queda intensa dos homicídios? Que evidências temos do impacto destes projetos?

Na qualidade de ex-pesquisador do NEV e de membro fundador do FBSP, gostaria de propor uma teoria unificada sobre o fenômeno – que reconhece o papel das políticas de segurança pública de segurança e da dinâmica das facções em alguns estados e momentos – mas que vê a queda basicamente como um subproduto mais amplo do contexto socioeconômico e social.

Como escrevi em artigo em janeiro último sobre os indicadores econômicos, “após cair -5,7 no quarto trimestre de 2015 a velocidade da queda do PIB começa a desacelerar até que o sinal se torna ligeiramente positivo no primeiro trimestre de 2017. Os cheques sem fundo – indicador de inadimplência do consumidor - atingem seu auge no quarto trimestre de 2015 e a partir daí desaceleram, passando a cair no primeiro trimestre de 2017. A taxa de desemprego também chega ao máximo no quarto trimestre de 2015, caindo desde então até tornar-se negativa, no início de 2018. Como consequência, o ICC, que é uma medida subjetiva da crise, inverte de tendência a partir do 3T de 2015, passando a aumentar desde então, ainda que de forma um tanto errática, com algumas idas e vindas. Ainda que ténue, o quadro geral mostra uma melhora dos indicadores econômicos em 2017 e 2018. Isto nos ajuda a entender em parte a queda de roubos e homicídios na maioria dos estados em 2018.” https://tuliokahn.blogspot.com/2019/01/economia-nao-e-destino-mas-ajuda-um.html

Conjuntura econômica impacta no crime? Na tabela abaixo vemos as taxas de roubos e roubos de veículos nos estados, entre 2001 e 2018. As taxas estão desagregadas pelos trimestres de recessão (em laranja) e trimestres de expansão da economia(em azul), conforme a classificação do CODACE/FGV. Dos 27 estados analisados, em 26 as taxas de roubos são maiores nos trimestres de recessão, como seria esperado. Além disso, existem evidências extraídas de São Paulo de que a apreensão de armas pela polícia cai -3,2% nos trimestres em que a economia está em expansão (e os roubos diminuindo), enquanto crescem cerca de 4% nos trimestres em que a economia está em recessão (e os roubos aumentando)


O cenário econômico impacta mais diretamente os crimes patrimoniais, mas indiretamente, através da sensação de insegurança e das armas em circulação, também os crimes interpessoais.

As conjecturas sobre o impacto das políticas públicas adotadas pelos Estados ou sobre a ‘pax criminosa’ são interpretações ex-post-facto: nenhuma previu antecipadamente a nova fase de queda da criminalidade em 2017 e 2018. Diferentemente, como temos sugerido através da “teoria dos contextos” há anos, cenários econômicos negativos aumentam os roubos e estes fazem aumentar a sensação de insegurança. Este contexto faz com que as pessoas, que guardaram suas armas em casa, optem por circular com as armas novamente nas ruas, pois os riscos aumentaram e compensam os custos de serem pegos pela polícia. E, como é sabido, com mais armas em circulação, temos mais homicídios, como ilustra o conhecido gráfico abaixo, mostrando as variações nas apreensões de armas e nos homicídios dolosos em São Paulo.[1]



Fazendo o caminho inverso para explicar a queda de 2018, a recuperação da economia a partir de meados de 2016 fez os roubos caírem em quase todos os estados. A tabela abaixo traz a variação dessazonalizada dos roubos em 14 estados para quais a divulgação de estatísticas na internet, entre 2015 e 2019. Como é possível notar pela graduação de cores, com exceção do Rio de Janeiro, onde a melhora foi tardia, e do Amazonas, onde os roubos cresceram em 2018,  os demais estados apresentam significativa queda nos roubos a partir da metade de 2017. Este cenário se encaixa adequadamente dentro teoria dos contextos (que elaborei há muitos anos para explicar o crescimento dos homicídios no NE e queda no Sudeste) https://tuliokahn.blogspot.com/2018/09/crescimento-dos-homicidios-no-n-e-ne.html.

Mas como explicar esta queda dos roubos nos estados a partir de 2017 com a matriz da “pax criminosa”? As fações mandaram não apenas parar com as matanças, mas também com os roubos? Como explicar a coincidência no timming da queda dos roubos nos Estados? As diferentes políticas adotadas pelos estados nos diferentes períodos produziram resultados sobre roubos e homicídios, ao mesmo tempo?




A queda dos homicídios em 2017 e 2018 está em parte associada, como acreditamos, a esta queda dos roubos, que deixou as pessoas mais seguras e as armas em casa. A correlação entre as variações nas quedas dos homicídios e variações nas quedas dos roubos é de r.88 no RJ, r.74 em Minas, r. 69 em Goiás, r.65 no RS e acima de r.40 no DF, PR, MS e MT. A correlação é fraca em SP – onde os homicídios continuam impressionantemente em queda, independente do contexto econômico – e nos Estados do CE, RO, BA e AM. Em SP faz sentido pensar em hipóteses como impacto das políticas públicas e no CE, RO, BA e AM, faz todo sentido pensar na atuação das facções criminosas. Acredito como meus colegas que políticas públicas bem sucedidas podem fazer diferença e que em certos períodos e Estados, a atuação das facções pode impactar nas trajetórias dos homicídios. Mas para a maioria dos Estados, em condições normais de temperatura e pressão, a regra é a existência de uma correlação entre os homicídios e os roubos, sensação de insegurança e armas, e destes com a conjuntura econômica. https://tuliokahn.blogspot.com/2018/11/uma-radiografia-das-series-temporais-de.html Uma teoria completa deve incorporar todas estas diferentes explicações, mas sem perder de vista uma hierarquia de pesos.

Nem todas as recessões são iguais. As de 2003 e 2009 seguiram um formato em “V” invertido, foram curtas e intensas. Como escrevemos em julho, esta última recessão, cujo pico se deu em 2014, parece antes um “W” invertido : “ A partir do pico de 2014 note-se, na sequência, um período de 14 meses de recuperação que vai até agosto de 2015, seguido de um novo crescimento dos roubos até setembro de 2016. De outubro de 2016 até aproximadamente maio de 2018 presenciamos um novo período de 21 meses de queda nos roubos. Se tomarmos, portanto, este período de 2014 a 2018, é possível ver no gráfico um W em formato invertido (alta 2014 / baixa em 2015 / alta em 2016 / baixa em 2017 a metade de 2018 / nova alta se formando em 2018).https://tuliokahn.blogspot.com/2018/07/recessao-e-roubos-fomatos-vulw.html

Falamos também na ocasião que a queda parecia estar chegando ao seu ponto mais baixo e que a partir dali, se a recuperação econômica não ganhasse folego, começaríamos a ver uma inversão na tendência dos roubos. O gráfico abaixo traz os dados mais recentes dos roubos em 8 estados. Ele mostra claramente o “W” invertido. Embora as variações nos roubos ainda sejam negativas (quedas) ele sugere também que o ponto mais baixo foi alcançado no final de 2018. Em alguns estados já é possível perceber uma desaceleração da queda. (Ele mostra também que as variações criminais nos Estados são mais ou menos simultâneas, o que sugere a existência de um fator comum por traz do fenômeno.)



Se os roubos de fato começarem a crescer, veremos novamente o aumento da insegurança e um estímulo às pessoas saírem armadas nas ruas, buscando autoproteção. Se juntarmos a isso a flexibilização da posse de armas, com o consequente aumento do número de armas em circulação, e a sensação de que portar armas agora é legítimo, teremos a “tempestade perfeita” se formando nos próximos anos.










[1] Note-se no gráfico, de passagem, o crescimento de armas e homicídios em janeiro de 2019, sugerindo um impacto da mentalidade pró armas de fogo adotada pela nova gestão federal.



terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Palavras tem consequências

Palavras não podem ser jogadas ao vento inpunimente. No gráfico abaixo vemos o aumento do número de armas apreendidas pela polícia em janeiro em SP em azul e o aumento de homicídios dolosos em vermelho. O que chama a atenção não é a magnitude do aumento, mas a inversão de tendência. Ambas crescem pela primeira vez após longos períodos de queda acentuadas.


O dado sugere que o discursos da flexibilização das armas de fogo já está fazendo suas primeiras vítimas em São Paulo e as pessoas se sentindo mais a vontade para andar armadas nas ruas.

Assim como o discurso de estimulo à letalidade está fazendo suas primeiras vítimas no RJ, onde a letalidade policial bateu récorde em janeiro, com 160 mortes.

Mais armas em circulação e atenuantes para a legítima defesa em confrontos: era tudo o que não precisavamos para conter a epidemia de homicídios no pais.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Usos (e abusos) do reconhecimento facial na segurança pública


A imagem abaixo é de uma antiga foto minha, dos tempos de juventude. Nela estão marcados 101 pontos de reconhecimento facial usado pelo sistema betaface, um sistema online simples que permite brincar com as capacidades da tecnologia de reconhecimento. (https://betaface.com/demo.html). Com base nestes pontos e num número índice que resume e individualiza minhas feições, ele consegue ranquear a semelhança com outras imagens contidas num banco de dados ou disponibilizadas na internet. O sistema sugere, por exemplo, que tenho uma similaridade de 72% com o ator Brad Pitt, o que permite ter uma ideia do grau de erro da ferramenta...



A ideia básica é encontrar a probabilidade de que a pessoa na foto seja de fato a pessoa existente no banco de dados, para a qual existe uma identificação positiva, tal como num sistema de identificação de impressões digitais ou da iris. Além da identificação, o sistema faz outros tipos de reconhecimento, como exemplificado na ficha descritiva da imagem.


5oclock shadow : no (31%), age : 45 (60%), arched eyebrows : no, attractive : no (99%), bags under eyes : yes (15%), bald : yes (20%), bangs : no (90%), beard : no (58%), big lips : no, big nose : yes (0%), black hair : no (92%), blond hair : no (65% ), blurry : no (52%), brown hair : no (12%), bushy eyebrows : no (81%), chubby : yes (9%), double chin : yes (3%), expression : neutral, gender : male (99%), glasses : no, goatee : no (88%), gray hair : yes (53%), heavy makeup : no (89%), high cheekbones : no (90%), mouth open : no (39%), mustache : no (64%), narrow eyes : no, oval face : yes (16%), pale skin : no (61%), pitch : -9.42, pointy nose : no (47%), race : white, receding hairline : yes (56%), rosy cheeks : no (77%), sideburns : no (95%), straight hair : yes (40%), wavy hair : no (93%), wearing earrings : no (95%), wearing hat : no, wearing lipstick : no (95%), wearing necklace : no, wearing necktie : yes (67%), yaw : -2.84, young : no (72%), chin size : large, color background : 0c0501 (1%), color clothes middle : a9a59f (11%), color eyes : 674c3e (58%), color hair : 7a5d4a (45%), color skin : b37561, eyebrows corners : low, eyebrows position : extra low, eyebrows size : extra thin, eyes corners : extra low, eyes distance : average, eyes position : extra low, eyes shape : extra round, glasses rim : no, hair beard : none, hair color type : brown light (45%), hair forehead : no, hair length : none, hair mustache : none, hair sides : very thin, hair top : very short, head shape : heart, head width : extra narrow, mouth corners : average, mouth height : average, mouth width : extra small, nose shape : extra straight, nose width : wide, teeth visible : no [collapse]

Com base probabilística, ele também tenta predizer minhas características demográficas (gênero, cor, idade) , que roupas estou vestindo e até minhas emoções na foto. O sistema prediz, por exemplo, que tenho 45 anos (bondoso), sou calvo (maldoso), sou homem, minha expressão facial é neutra, sou branco, não uso bigodes nem batom. Ele não é muito preciso e erra algumas vezes, mas para um algoritmo de teste online até que se sai bem, tanto no que diz respeito à identificação quanto ao reconhecimento das características da foto. Existem atualmente outras tecnologias, como câmeras térmicas, uso de imagens em 3 D, análise de textura da pele e combinações de diferentes métodos, que tornam o reconhecimento bastante preciso, embora sempre probabilístico. Ao invés dos 101 pontos do exemplo, é possível rastrear mais de 30 mil pontos na face. Inteligência artificial, aprendizado de máquina e procedimentos estatísticos sofisticados são utilizados para aperfeiçoar o reconhecimento.

As redes sociais e os mercados privados de segurança já usam a tecnologia de reconhecimento facial para identificar usuários em fotos públicas, levantar perfis demográficos, nos sistemas de verificação de identidade em portarias, acesso a smartfones, monitoramento de horas trabalhadas pelos funcionários, entre outros usos. Uma das vantagens da técnica é que ela é menos invasiva, não exigindo contato físico ou qualquer ação do indivíduo para liberar acesso ao recinto ou ao equipamento. Esta é também uma das fragilidades de segurança: para desbloquear um celular, basta apontar a câmera para o rosto de seu proprietário. No âmbito eleitoral, o reconhecimento facial dos eleitores foi utilizado no México para evitar fraudes e duplicação de votos.

Os usos são variados e desde que os sistemas de reconhecimento facial começaram a ser desenvolvidos nos anos 60, os órgãos de segurança começaram a se perguntar como poderiam ser utilizados para ajudar no trabalho policial. As polícias tradicionalmente armazenam imagens de suspeitos e condenados por crimes, desde que o daguerreotipo foi inventado. E tem acesso a bases fotográficas de bancos de dados públicos, como as existentes nas cédulas de identidade, carteiras de habilitação ou títulos eleitorais. Em resumo, é provável que os bancos de dados governamentais contenham hoje a quase totalidade da população adulta fotografada, ainda que não necessariamente digitalizada.

Assim, é possível transformar estas fotografias num número identificador único para cada face. Estes números identificadores são colocados numa base, que a rigor não precisa conter a imagem original, caso haja questões de privacidade envolvidas. Isto torna o acesso remoto à base bem mais rápido. Com uma câmera em campo – câmera fixa num posto de checagem, fotos tiradas de um celular de um policial, imagens de vídeo capturadas por câmeras num veículo ou drone – é possível verificar em segundos se o padrão numérico do rosto capturado coincide com o padrão existente no banco remoto. Esta verificação pode ser feita sem contato físico com o suspeito e às vezes sem que o suspeito saiba que está sendo checado, à distância. É possível usar o reconhecimento facial tanto como uma ferramenta de investigação quanto para positivação de identificação.

As polícias de fronteiras na Austrália, Nova Zelândia, Panamá e Canadá, já usam para comparar a foto dos visitantes com as fotos do passaporte ou de procurados pela justiça. Neste caso é possível tirar fotografias de boa qualidade e com o consentimento do turista e a comparação é facilitada pela exigência de padronização nas fotos de passaporte. As condições de clima e iluminação são ótimas. O reconhecimento facial parece tem algum sucesso em ambientes mais propícios, como entrada de shows ou outros equipamentos com acesso controlado.

Mas como sempre, existem diversas questões envolvendo o uso da ferramenta. Quão precisa ela é em fornecer uma identificação positiva, comparando com as impressões digitais ou análise da íris? É possível fazer uma checagem em massa, usando imagens capturadas por dispositivos de menor qualidade e em contextos que dificultam a captura? É moralmente aceitável o monitoramento de indivíduos, mesmo sem registros policiais, nas ruas, sem consentimento e conhecimento?

Aparentemente, o reconhecimento facial ainda não é seguro o bastante para ser usado na identificação de suspeitos, comparado com outros métodos. Fatores como iluminação, expressões faciais, posição, ângulo e ruídos na imagem devido à baixa resolução podem reduzir bastante a capacidade de identificação do sistema. Em outras palavras, o método produz uma elevada porcentagem de falsos positivos, o que pode ter implicações graves no sistema de justiça criminal. O sistema chegou a ser testado e descontinuado em alguns departamentos de polícia na década passada, devido à baixa precisão. (Meek, James (13 June 2002). "Robo cop". London: UK Guardian newspaper. "Birmingham City Centre CCTV Installs Visionics' FaceIt". Business Wire. 2 June 2008. Willing, Richard (2 September 2003). "Airport anti-terror systems flub tests; Face-recognition technology fails to flag 'suspects'" (Abstract). USA Today. Retrieved 2007-09-17. Dodd, Vikram (2018-05-14). "UK police use of facial recognition technology a failure, says report". the Guardian. Retrieved 2018-05-29. White, David; Dunn, James D.; Schmid, Alexandra C.; Kemp, Richard I. (14 October 2015). "Error Rates in Users of Automatic Face Recognition Software". PLOS ONE. 10 (10): e0139827. doi:10.1371/journal.pone.0139827. PMC 4605725. PMID 26465631 – via PLoS Journals.

O reconhecimento facial vem sendo utilizado mais como uma ferramenta adicional de investigação para o policial do que como uma ferramenta de identificação em massa segura. Ainda não é possível colocar câmeras de vídeo no teto de uma Van e sair fazendo prisões de foragidos em tempo real. Mas a precisão da tecnologia tem melhorado bastante desde os anos 60 e é só uma questão de tempo para que possa ser empregada com segurança pelas polícias. Por outro lado, a questão sobre a desejabilidade de seu uso deve ficar em aberto por muito tempo ainda. Até que ponto devemos abrir mão de nossa privacidade em nome da segurança? Esse é um conflito de interesses que cada sociedade e época deve decidir.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

O pacote anticrime e o princípio da individualização da pena


Maria é dona de casa e sofreu durante anos abusos físicos e psicológicos por parte de seu companheiro, até que num momento de desespero matou-o a facadas. João é motorista e sempre fora um cidadão de bem, mas teve seu carro amassado num acidente de trânsito e depois de um rápido bate-boca, afetado pelo álcool, deu dois tiros no outro motorista. José largou a escola cedo para andar com a turma do bairro e desde logo se envolveu em pequenos crimes, é usuário habitual de drogas, passou pela Febem e, ameaçado por um conhecido das quebradas, planejou seu assassinato no bar que ambos frequentavam. Pedro é egresso do sistema, filiado a uma facção criminosa, trafica drogas na comunidade onde cresceu, planejou e executou a morte dos traficantes rivais para tomar sua boca de fumo.

Maria, João, José e Pedro cumprem todos pena por homicídio doloso. Mas as razões que os levaram ao cometimento do crime são bastante diferentes, assim como seus históricos de vida, inclinações psicológicas e contextos sociais e familiares. Se tivesse que atribuir uma pena a cada um ou conceder a eles uma progressão de regime, saída temporária ou outro benefício qualquer, meu palpite é que Maria seria a menos perigosa de todos e Pedro o que representa maior risco.

Conhecer apenas o crime que cometeram genericamente – homicídio – não é suficiente para determinar o grau de periculosidade de cada um. É justo que todos recebam a mesma condenação e tenham os mesmos benefícios legais na execução da pena ou seria mais justo que os benefícios fossem concedidos em função da periculosidade e do comportamento de cada um, analisados individualmente?

A doutrina consagrada na Constituição e na Lei de Execuções Penais acredita que a segunda situação é a mais justa e consagrou esta concepção no princípio da individualização da pena. Assim, o legislador, ao criar novos crimes e penas e o juiz, tanto no momento da condenação quanto durante a fase de execução, devem levar em conta este princípio, que implica em dar a cada um o castigo que merece, segundo sua culpabilidade.



Existem diversos projetos de lei propondo a retirada de direitos de certas categorias genéricas de presos, como por exemplo os que cometeram crimes hediondos. O Supremo tem rechaçado estas propostas com base no princípio da individualização da pena pois o fato é que existem indivíduos mais ou menos “hediondos” e é preciso determinar em cada caso quem poderia ou não usufruir dos benefícios da lei. Recentemente, o pacote anticrime divulgado pelo Ministro da Justiça, propôs o regime fechado como regime inicial para cumprimento da pena por certos crimes, como corrupção, e proibiu a progressão de regime se o condenado for vinculado a organização criminosa. Estas propostas provavelmente serão barradas no Supremo, que já editou súmula vinculante a respeito, pois as medidas ferem o princípio constitucional da individualização da pena.

Note-se que a ideia da individualização da pena não se presta apenas a evitar que direitos de criminosos sejam limitados. Não é coisa “dos direitos humanos”. Na prática, um laudo criminológico individualizado e bem feito pode evitar que um criminoso perigoso e reincidente seja posto em liberdade, em regime mais suave de cumprimento da pena ou tenha direito a sair do presídio. A individualização da pena poderia, no agregado, diminuir as taxas de reincidência no sistema prisional e evitar a contaminação de presos menos perigosos pelos mais perigosos. Poderia contribuir para que o Estado retomasse o controle das unidades prisionais.

Ocorre que, por problemas de gestão do sistema prisional e de política criminal, na prática esta individualização da pena raramente é feita. E como o poder público não consegue na prática determinar o grau de periculosidade de cada um, temendo evitar injustiças, simplesmente (principalmente depois de 2003), optou por conceder de forma quase automática, todos os benefícios a todos os condenados, indiscriminadamente! Vamos esclarecer este ponto.

Se a LEP fosse seguida à risca, não seria necessário ao operador do direito palpitar sobre qual dos nossos homicidas é o mais perigoso. Felizmente existem outras ciências que podem aferir este grau de periculosidade com base em evidências, testes psicológicos, entrevistas, informações disciplinares e diversos outros elementos para a confecção dos laudos. Este trabalho deveria ser feito logo na entrada do sistema prisional, nos Centros de Observação Criminológicos, e durante a execução da pena, pela Equipe Técnica de Classificação, composta por funcionários do presídio, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras. Esta equipe é que teria a responsabilidade de operacionalizar o principio da individualização da pena e dar subsídios, em cada caso, para que a justiça determine quem tem direito aos benefícios. Ao contrário do que os presos imaginam, estes benefícios não são automáticos, bastando o cumprimento de determinados prazos legais: é preciso fazer jus a eles. (particularmente, acho que as comissões técnicas de classificação deveriam existir dentro do judiciário e atuar desde a etapa de cominação das penas).

Desconheço se os Centros de Observação Criminológicos e as Comissões Técnicas de Classificação funcionaram a contento algum dia. Talvez há algumas décadas atrás, quando o tamanho do sistema prisional ainda possibilitava algum acompanhamento individualizado do apenado. O fato é que a população prisional cresceu de maneira acelerada nas últimas décadas e chegou a um ponto em que as deficiências operacionais das CTCs se tornaram em empecilhos, na visão dos gestores prisionais. Milhares de presos reivindicavam seus “direitos” e as CTCs simplesmente não davam mais conta de produzir laudos com a qualidade e celeridade exigidas.

O que fez o poder público brasileiro? Ao invés de cumprir a Lei de Execução Penal e garantir o funcionamento adequado dos centros de observação criminológicos e das CTCs, optou por alterar a legislação em 2003 (pressionados pela situação prisional de São Paulo), retirando a necessidade do laudo individualizado para a concessão de benefícios. A partir dali, bastava a adequação aos prazos legais e uma cartinha do diretor do presídio atestando bom comportamento...Este é o Estado brasileiro, que ao invés de investir na boa gestão do sistema, prefere mudar as leis numa canetada e assim “resolver” o problema. As favas com a individualização da pena.

O resultado está aí. Hoje são as facções que determinam para onde vão os novos condenados. Não existe separação com base na periculosidade. São as facções que determinam quem ocupa que cela, quem tem direito a trabalho ou estudo. Os presos provisórios são 40% da massa carcerária e jamais passaram por qualquer triagem. A gestão do sistema de justiça criminal é tão sofrível que não temos sequer como avaliar se depois de 2003 aumentaram as taxas de reincidência ou as taxas de não retorno após as saídas temporárias. Mas é muito provável que tenha ocorrido uma piora, já que progressões e saídas são concedidas mesmo a quem não tem a mínima condição de recebe-las. Hoje, a taxa de não retorno dos presos após as saidinhas é de cerca de 5% em São Paulo. Poderia ser menor, se a permissão fosse dada com subsídios de atestados produzidos pelas equipes técnicas de classificação ou pelo menos em pesquisas criminológicas, que podem ser aplicadas em massa e dar subsídios probabilísticos.

Se o Estado quer “endurecer” com a bandidagem, poderia fazê-lo simplesmente gerindo adequadamente o cumprimento das penas. Investindo, como exige a LEP, nas equipes multidisciplinares para determinar, com base em evidências, o grau de periculosidade de cada um e o tratamento penal a ser dados em cada caso, incluindo laborterapia, estudos ou tratamento psiquiátrico. Respeitando assim o princípio constitucional de individualização da pena. Maria não é João, que não é José, que não é Pedro. Nenhum deles, provavelmente, passou por qualquer programa de ressocialização durante o cumprimento da pena. Mas todos tiveram autorização para sair da prisão no Natal (quando Pedro aproveitou a oportunidade para cometer novos homicídios, antes de voltar para a prisão).

Mas gerir dá muito trabalho. É preciso investir milhões em instalações, concursos, treinamentos, salários, políticas de ressocialização, políticas de assistência ao egresso. Administrar de modo eficiente a máquina pública. Para isso o Ministério da Justiça conta, por exemplo, com o Depen e o Fundo Penitenciário. Mas resolver na base da canetada é muita mais “simples e objetivo”.

Era o que imaginavam os autores da Lei dos Crimes Hediondos, da Lei 10.792 de 2003, que praticamente acabou com o papel das Comissões Técnicas de Classificação e da Lei de Drogas de 2006, que lotou o sistema prisional de pequenos traficantes de baixa periculosidade. Leis que só postergaram a agravaram os problemas que visavam solucionar. É claro que o aparato legislativo pode ser sempre aperfeiçoado e que o Poder Executivo pode contribuir para isso. Mas não é esse seu papel primordial. Esperamos do governo mais empenho na gestão e menos legislação. De boas intenções e legislações, as prisões brasileiras, sucursais do inferno, estão cheias.






terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Abracadabra, hocus pocus e embargos infringentes: que o crime caia a partir de agora, um, dois, três


A crítica pela ausência é a mais fácil que existe. Dito isso, às vezes ela é necessária, porque reveladora. O pacote anticrimes apresentado pelo Ministro da Justiça não é um plano de segurança pública. Não contém um diagnóstico, exceto uma fala genérica sobre a interconexão entre crime organizado, corrupção e crimes violentos. Foi o máximo de elaboração criminológica sugerida na apresentação oral do projeto pelo Ministro Moro. Tampouco tem princípios norteadores. Nem metas e detalhamento sobre como atingi-las. Em resumo, não é um plano e creio que não pretendeu sê-lo (assim espero).

Na verdade é um conjunto de propostas de modificações legais em diversas legislações. A análise das propostas cabe, portanto antes aos advogados e constitucionalistas. Criminólogos tem pouco a opinar sobre embargos infringentes. De modo que vamos nos restringir aqui ao meta-plano, ao contexto de sua divulgação e a alguns comentários gerais sobre os conceitos e pressupostos intrínsecos ao pacote.

Todo jurista que chega ao Ministério da Justiça faz sua própria proposta de reforma do código penal. São homens da lei e é sobre leis que sabem e gostam de falar, assim como os promotores públicos nas secretarias estaduais de segurança. Em geral, formam uma comissão de juristas notáveis para elaborar o anteprojeto. Moro teve pressa em mostrar trabalho nos primeiros dias e dispensou a comissão de notáveis: preferiu ele mesmo redigir a proposta com seus auxiliares, após algumas consultas. Incluiu nela aquilo que já percebia como obstáculo na sua vida pregressa como juiz, demandas populares por leis mais duras, novidades extraídas de filmes de bandido e mocinho americano e algumas idiossincrasias do presidente, como a proteção aos policiais envolvidos em confrontos com morte. Teve ao menos o bom senso de deixar de fora a questão do porte de armas.

Temos assim uma coisa que já sabíamos e esperávamos e outra que não sabíamos ainda. Como jurista que nunca passou pela administração pública, já era esperado que passasse de longe pelas questões relativas à gestão: recursos financeiros, reforma das polícias, novo pacto federativo, papel da Força Nacional de Segurança, sistema de inteligência, novas tecnologias, etc. tudo isso é desconhecido por quem passou a vida aplicando o código penal. E o que não está nos autos não está no mundo. Ocorre que nesta área gestão é tão ou mais importante que legislação: São Paulo, como sempre lembro, reduziu em 70% os homicídios sem alterar uma alínea do Código Penal (embora o Estatuto tenha sido aqui de grande auxílio).

O que ainda não sabíamos é até que ponto o ministro encamparia ou seria um anteparo às tendências “manu dura” e ao populismo penal do governo federal e dos novos congressistas. Equivocaram-se os que esperavam um legalista intransigente, defensor das garantias e direitos individuais: aparentemente, na visão dos juristas que o analisaram, o pacote atropela diversas jurisprudências estabelecidas e princípios constitucionais. Esperávamos que pelo menos de direito o Ministro entendesse.


Num pais com 63 mil mortos por homicídio, em seu primeiro mês o governo flexibiliza por decreto a posse de armas e propõe agora a flexibilização da legítima defesa para policiais envolvidos em confrontos. (causa de um quarto das mortes no Estado de São Paulo). Como secretário executivo da extinta Comissão de Letalidade da SSP, sei que é assunto onde não se pode ter falas ambíguas: qualquer mínimo sinal da cúpula de tolerância com relação aos confrontos termina na ponta como sinal verde para atirar, com resultados desastrosos para a polícia como um todo. E o sinal aqui não foi mínimo, vindo do próprio Ministro da Justiça e da Presidência. Polícias profissionais nos Estados e o poder judiciário, esperamos neste caso, deverão ser o anteparo aos excessos do governo federal.

Nem tudo no pacote é ruim e algumas iniciativas podem melhorar concretamente o desempenho dos órgãos policiais: o uso dos bens apreendidos pelos órgãos de segurança, os interrogatórios por videoconferência, diminuindo os deslocamentos de presos com escoltas, a obrigatoriedade de identificação por perfil genético dos condenados por crimes dolosos, o banco nacional de perfis balísticos e a criação do banco nacional multibiométrico, entre outras propostas. Na área da investigação criminal, merecem detalhamento também as propostas do informante do bem, e da admissão da escuta ambiental como prova, desde que íntegra. A aceleração do processo de perdimento dos bens pode ser útil no caso de aeronaves, embarcações e veículos, uma vez que a demora no processo é tamanha que os bens ficam inutilizados ao final do processo, perdendo valor de mercado. Também me parece acertada o aumento para três anos de permanência, renovável, para criminosos em presídios federais, embora o pacote peque desnecessariamente ao tentar criar uma lista de organizações criminosas, mencionando algumas explicitamente.

Há também as novidades inspiradas no tio Sam: as soluções negociadas, onde o suspeito assume de saída sua culpa e barganha o tipo e tamanho da condenação, evitando que o processo prossiga. Conhecendo a demora e precariedade da justiça brasileira e a falta de condições dos mais pobres para se defender, é possível que muitos inocentes simplesmente aceitem a barganha para evitar danos maiores e processos prolongados. Louvável, como intenção de desafogar o judiciário, mas só praticável nos países que assegurem que todos são minimamente iguais perante a lei, sem falar no aumento da discricionariedade do Ministério Público que a medida implica.

O pacote traz ainda a proposta do agente encoberto, para os casos de tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou venda de armas. Significa que o policial pode postergar um flagrante, mesmo presenciando um crime, em nome de uma futura prisão, que envolva criminosos de maior calibre e provas mais incriminadoras. Às vezes esta presença disfarçada pode implicar em que o policial seja cúmplice em algumas atividades ilegais. E que criminosos sejam induzidos a praticar crimes, no que se convencionou chamar de flagrantes preparados. Numa polícia com elevado grau de ética e integridade, esse expediente já seria arriscado. Não creio que seja admissível em nosso sistema jurídico nem recomendável no país das milícias.

No geral, grande parte das propostas aponta para o endurecimento do cumprimento das penas: execução provisória da condenação após 2º instancia, regime inicial fechado para certos crimes, aumento do tempo de cumprimento de pena antes da progressão, fim das saídas temporárias, criminalização do caixa dois, etc. O pressuposto básico aqui é de que a pena de prisão tem caráter intimidatório sobre o criminoso, o que é apenas parcialmente verdadeiro quando a probabilidade da prisão, como no Brasil, é diminuta. Leis baseadas nos mesmos pressupostos como a lei dos crimes hediondos, parecem ter tipo pouco efeito sobre a criminalidade no país. Será que desta vez o endurecimento penal trará os efeitos desejados, apesar das poucas evidências em favor? O resultado poderá ser o crescimento ainda maior da população prisional. Visando combater o crime organizado, o pacote pode ter o efeito contrário, piorando as condições de cumprimento de pena e aumentando a massa prisional à disposição das facções.

As medidas serão agora discutidas pela sociedade mais ampla e ainda devem ser analisadas tanto pelo Congresso – em tese favorável ao espírito do pacote – quanto pelo judiciário. Muita coisa ainda será arredondada antes de ser aprovada. Mas ele dá o tom de como será a gestão da segurança no governo federal, que começou mal reunificando os ministérios da justiça e segurança e com a edição do decreto flexibilizando a posse de armas.
O pacote tem algumas boas iniciativas, apesar de limitado e no geral revela uma falta de entendimento sobre o problema criminal do país. Como dizia Oliveira Viana, você pode ler todo um capítulo sobre filosofia do movimento diante de uma pedra, que ela não se moverá um milímetro. O crime, igualmente, é pouco afetado pela cominação de penas maiores no código penal. A regulação dos embargos infringentes não vai intimidar ninguém. Melhor começar a pensar com base nos paradigmas da prevenção e da gestão. Pensar em como utilizar melhor os imensos recursos que o superministério tem a sua disposição, e que independem da aprovação do Congresso. Criminólogos não entendem de embargos infringentes. Mas sabem que o controle da criminalidade é um trabalho arduo, de longo prazo, custoso, coletivo. Não existem fórmulas mágicas. Os bachareis, no congresso ou empossados em seus ministérios e secretarias, precisam parar de acreditar no poder mágico das leis.


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