Os homicídios em 2018 caíram com
relação a 2017 e a queda foi intensa e generalizada. Dos 27 Estados, 24
apresentaram queda. Em magnitude, a média foi de -13%, uma das mais intensas da
última década. Os números e detalhes de cada estado podem ser consultados no
projeto Monitor da Violência, organizado em conjunto pelo G1, NEV e Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. Com dados disponíveis até metade do ano, a tendência
também pode ser verificada através do Painel de Monitoramento da Mortalidade do
Datasus ou no meu blog, onde compilo as estatísticas estaduais de homicídios e
outros crimes.
Se os dados são unanimes ao
apontarem a melhora significativa dos homicídios em 2018, as interpretações
sobre as razões da queda estão longe da unanimidade. Instados pelo G1 a
interpretar o fenômeno, meus colegas Renato Sergio de Lima e Samira Bueno, do
FBSP, apostam nas políticas de segurança pública colocadas em prática pelos
Estados nos últimos anos, como a cooperação entre diferentes órgãos e instancias
governamentais. Meu amigo Bruno Manso, pelo NEV-USP, interpreta a queda como um
momento de pacificação dos confrontos promovidos pelo crime organizado nos anos
anteriores, que fizeram os homicídios crescer no Norte/Nordeste.
Ambas interpretações
explicam parte da realidade, mas deixam de lado questões importantes: por que
em tantos Estados? Por que simultaneamente? Por que com esta intensidade? Como
explicar a queda também generalizada nos roubos? Como se vinculam os projetos
adotados nos Estados, bastante díspares, com a queda intensa dos homicídios?
Que evidências temos do impacto destes projetos?
Na qualidade de ex-pesquisador do
NEV e de membro fundador do FBSP, gostaria de propor uma teoria unificada sobre
o fenômeno – que reconhece o papel das políticas de segurança pública de
segurança e da dinâmica das facções em alguns estados e momentos – mas que vê a
queda basicamente como um subproduto mais amplo do contexto socioeconômico e
social.
Como escrevi em artigo em janeiro último
sobre os indicadores econômicos, “após cair -5,7 no quarto trimestre de 2015 a
velocidade da queda do PIB começa a desacelerar até que o sinal se torna
ligeiramente positivo no primeiro trimestre de 2017. Os cheques sem fundo –
indicador de inadimplência do consumidor - atingem seu auge no quarto
trimestre de 2015 e a partir daí desaceleram, passando a cair no primeiro
trimestre de 2017. A taxa de desemprego também chega ao máximo no quarto
trimestre de 2015, caindo desde então até tornar-se negativa, no início de
2018. Como consequência, o ICC, que é uma medida subjetiva da crise, inverte de
tendência a partir do 3T de 2015, passando a aumentar desde então, ainda que de
forma um tanto errática, com algumas idas e vindas. Ainda que ténue, o quadro
geral mostra uma melhora dos indicadores econômicos em 2017 e 2018. Isto nos
ajuda a entender em parte a queda de roubos e homicídios na maioria dos estados
em 2018.” https://tuliokahn.blogspot.com/2019/01/economia-nao-e-destino-mas-ajuda-um.html
Conjuntura econômica impacta no
crime? Na tabela abaixo vemos as taxas de roubos e roubos de veículos nos
estados, entre 2001 e 2018. As taxas estão desagregadas pelos trimestres de
recessão (em laranja) e trimestres de expansão da economia(em azul), conforme a
classificação do CODACE/FGV. Dos 27 estados analisados, em 26 as taxas de
roubos são maiores nos trimestres de recessão, como seria esperado. Além disso,
existem evidências extraídas de São Paulo de que a apreensão de armas pela
polícia cai -3,2% nos trimestres em que a economia está em expansão (e os
roubos diminuindo), enquanto crescem cerca de 4% nos trimestres em que a
economia está em recessão (e os roubos aumentando)
O cenário econômico impacta mais
diretamente os crimes patrimoniais, mas indiretamente, através da sensação de
insegurança e das armas em circulação, também os crimes interpessoais.
As conjecturas sobre o impacto
das políticas públicas adotadas pelos Estados ou sobre a ‘pax criminosa’ são
interpretações ex-post-facto: nenhuma previu antecipadamente a nova fase de
queda da criminalidade em 2017 e 2018. Diferentemente, como temos sugerido
através da “teoria dos contextos” há anos, cenários econômicos negativos
aumentam os roubos e estes fazem aumentar a sensação de insegurança. Este
contexto faz com que as pessoas, que guardaram suas armas em casa, optem por
circular com as armas novamente nas ruas, pois os riscos aumentaram e compensam
os custos de serem pegos pela polícia. E, como é sabido, com mais armas em
circulação, temos mais homicídios, como ilustra o conhecido gráfico abaixo,
mostrando as variações nas apreensões de armas e nos homicídios dolosos em São
Paulo.[1]
Fazendo o caminho inverso para
explicar a queda de 2018, a recuperação da economia a partir de meados de 2016
fez os roubos caírem em quase todos os estados. A tabela abaixo traz a variação
dessazonalizada dos roubos em 14 estados para quais a divulgação de
estatísticas na internet, entre 2015 e 2019. Como é possível notar pela
graduação de cores, com exceção do Rio de Janeiro, onde a melhora foi tardia, e
do Amazonas, onde os roubos cresceram em 2018,
os demais estados apresentam significativa queda nos roubos a partir da
metade de 2017. Este cenário se encaixa adequadamente dentro teoria dos
contextos (que elaborei há muitos anos para explicar o crescimento dos homicídios
no NE e queda no Sudeste) https://tuliokahn.blogspot.com/2018/09/crescimento-dos-homicidios-no-n-e-ne.html.
Mas como explicar esta queda dos
roubos nos estados a partir de 2017 com a matriz da “pax criminosa”? As fações
mandaram não apenas parar com as matanças, mas também com os roubos? Como
explicar a coincidência no timming da queda dos roubos nos Estados? As
diferentes políticas adotadas pelos estados nos diferentes períodos produziram
resultados sobre roubos e homicídios, ao mesmo tempo?
A queda dos homicídios em 2017 e
2018 está em parte associada, como acreditamos, a esta queda dos roubos, que
deixou as pessoas mais seguras e as armas em casa. A correlação entre as
variações nas quedas dos homicídios e variações nas quedas dos roubos é de r.88
no RJ, r.74 em Minas, r. 69 em Goiás, r.65 no RS e acima de r.40 no DF, PR, MS
e MT. A correlação é fraca em SP – onde os homicídios continuam impressionantemente
em queda, independente do contexto econômico – e nos Estados do CE, RO, BA e
AM. Em SP faz sentido pensar em hipóteses como impacto das políticas públicas e
no CE, RO, BA e AM, faz todo sentido pensar na atuação das facções criminosas. Acredito
como meus colegas que políticas públicas bem sucedidas podem fazer diferença e
que em certos períodos e Estados, a atuação das facções pode impactar nas
trajetórias dos homicídios. Mas para a maioria dos Estados, em condições
normais de temperatura e pressão, a regra é a existência de uma correlação
entre os homicídios e os roubos, sensação de insegurança e armas, e destes com
a conjuntura econômica. https://tuliokahn.blogspot.com/2018/11/uma-radiografia-das-series-temporais-de.html
Uma teoria completa deve incorporar todas estas diferentes explicações, mas sem
perder de vista uma hierarquia de pesos.
Nem todas as recessões são
iguais. As de 2003 e 2009 seguiram um formato em “V” invertido, foram curtas e
intensas. Como escrevemos em julho, esta última recessão, cujo pico se deu em
2014, parece antes um “W” invertido : “ A
partir do pico de 2014 note-se, na sequência, um período de 14 meses de
recuperação que vai até agosto de 2015, seguido de um novo crescimento dos
roubos até setembro de 2016. De outubro de 2016 até aproximadamente maio de
2018 presenciamos um novo período de 21 meses de queda nos roubos. Se tomarmos,
portanto, este período de 2014 a 2018, é possível ver no gráfico um W em
formato invertido (alta 2014 / baixa em 2015 / alta em 2016 / baixa em 2017 a
metade de 2018 / nova alta se formando em 2018).” https://tuliokahn.blogspot.com/2018/07/recessao-e-roubos-fomatos-vulw.html
Falamos também na ocasião que a queda parecia estar chegando ao seu
ponto mais baixo e que a partir dali, se a recuperação econômica não ganhasse
folego, começaríamos a ver uma inversão na tendência dos roubos. O gráfico
abaixo traz os dados mais recentes dos roubos em 8 estados. Ele mostra claramente
o “W” invertido. Embora as variações nos roubos ainda sejam negativas (quedas)
ele sugere também que o ponto mais baixo foi alcançado no final de 2018. Em
alguns estados já é possível perceber uma desaceleração da queda. (Ele mostra
também que as variações criminais nos Estados são mais ou menos simultâneas, o
que sugere a existência de um fator comum por traz do fenômeno.)
Se os roubos de fato começarem a
crescer, veremos novamente o aumento da insegurança e um estímulo às pessoas saírem
armadas nas ruas, buscando autoproteção. Se juntarmos a isso a flexibilização
da posse de armas, com o consequente aumento do número de armas em circulação,
e a sensação de que portar armas agora é legítimo, teremos a “tempestade
perfeita” se formando nos próximos anos.
[1]
Note-se no gráfico, de passagem, o crescimento de armas e homicídios em janeiro
de 2019, sugerindo um impacto da mentalidade pró armas de fogo adotada pela
nova gestão federal.
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