quinta-feira, 12 de julho de 2018

Homicídio ou homicídios? diferentes explicações para diferentes contextos nacionais




Em junho publicamos um artigo correlacionando a taxa de homicídios coletada pela UNODC com centenas de indicadores sócio econômicos disponibilizados pelo Banco Mundial, para 217 países em todo o mundo. Nas correlações bivariadas, diversos indicadores se revelaram significativos para explicar porque alguns países tinham taxas maiores ou menores de homicídio.

Mas tomar países abstratamente como unidade de análise pode ser enganoso, uma vez que escondem realidades bastante diferentes. Se as diferenças de contexto são grandes quando comparamos cidades ou estados de um mesmo país, são ainda maiores quando comparamos países.

Um é paupérrimo e outro riquíssimo. Um muçulmano e outro católico. Este tem grande população jovem e poucos migrantes e o vizinho o contrário. Um é pequeno e gelado a maior parte do ano e outro enorme e desértico. Num a população se concentra em alguns pequenos centros urbanos enquanto noutro se espalha pelos campos. A economia de um é diversificada e equilibrada e a de outro se baseia na exportação de alguns poucos produtos primários. Em resumo, as diferenças em nível internacional são muito mais acentuadas do que em nível mais local e estas diferenças afetam os níveis de criminalidade.

Em tese esta variabilidade é positiva, pois faz com que nossas variáveis variem!!! Assim, por exemplo, a relação entre homicídios e concentração de renda fica muito mais nítida quando incluímos na amostra países com níveis de homicídio altos e baixos e concentração de renda variada. Por outro lado, como veremos adiante, uma diferença acentuada de contextos pode ser enganadora: a relação entre homicídio e a variável X parece forte, mas apenas porque é especialmente forte numa determinada região, todavia fraca nas demais. Ou a relação entre homicídios e a variável Y parece inexistente, mas na verdade tem sinal positivo na região A e negativo na região B, fazendo com que se anulem. Este é um problema de muitas pesquisas quantitativas: as variáveis devem variar, mas o ideal é que a distribuição do fenômeno seja mais ou menos aleatória entre as unidades de análise.

No caso dos crimes e diversos outros fenômenos sociais, não é sempre o que acontece. Crime tem padrões universais, mas também diversas características e especificidades locais. Isso faz com que algumas variáveis sejam relevantes numa região do planeta e irrelevantes em outras. Importantes para países com grau de desenvolvimento econômico elevado e desimportante em países pobres.

Na analise a seguir, tomamos novamente as taxas de homicídios da UNODC como variável a ser explicada e correlacionamos com as mais de 1500 variáveis sócio econômicas do projeto WDI (World Development Indicators) do Banco Mundial, mas desta feita desagregamos os países por região (África, América, Europa, Ásia e Oceania) e grupo de renda per capita.

Obviamente que internamente estas regiões também são bastante heterogêneas: dentro da América temos os Estados Unidos e Honduras. Seria possível trabalhar com sub-regiões mais homogêneas, mas o problema é que a quantidade de países não é grande suficiente para suportar subdivisões menores e a regra de etiqueta é que se evite interpretar estatísticas calculadas com número de casos demasiado baixo (o que explica a exclusão da Oceania das regiões).

Dividimos também os países em dois grupos de renda: um primeiro com 64 países com renda per capita mais elevada e os demais num segundo grupo. Aqui também cabe observar que nível de renda per capita não é garantia de homogeneidade. Convivem no grupo de renda elevada países nórdicos igualitários e países árabes exportadores de petróleo, onde a riqueza se concentra na família real e seus apaniguados. Nos dois casos – região e grupo de renda – trata-se apenas de garantir uma maior homogeneidade, quando comparado com a amostra global, mas ainda assim temos bastante heterogeneidade interna nas regiões e grupos de renda.

A questão relevante é: quando analisamos as correlações entre as taxas de homicídios e as centenas de indicadores socioeconômicos do WDI, encontramos variáveis que se mostram relevantes globalmente para explicar a variação na taxa de homicídio dos países? Ou seja, algo que seja válido para todos os países, independente da região ou nível de renda per capita? Por outro lado, que indicadores se revelam especificamente relevantes dentro de cada região ou grupo de renda?

Um primeiro resultado da análise é que aparentemente existem poucas variáveis que sejam relevantes universalmente. A maioria delas se revelou válida apenas para algumas regiões ou apenas para um grupo de renda. Em parte, este pode ser o resultado da redução do tamanho da amostra, quando dividimos os países por região ou em dois grupos de renda. Mas pode significar também que o homicídio tem padrões que são regionais ou características específicas, dependendo do nível de renda nacional.

Assim, por exemplo, quando dividimos os países entre renda per capita alta e baixa, observamos que para os países de renda elevada são importantes para “explicar” as variações nas taxas de homicídios as variáveis relacionadas a educação, inflação e tarifas sobre os produtos, enquanto para os países de renda mais baixa, são mais relevantes as variáveis relacionadas a concentração de renda, trabalho infantil e pobreza. Ou seja, são variáveis diferentes que parecem explicar as taxas de homicídios nos países de renda per capita alta e baixa. Isso sugere que podem coexistir diferentes dinâmicas por trás do fenômeno que denominamos genericamente por “homicídio”. E que o que importa num determinado patamar de renda não se aplica necessariamente ao outro. 

A tabela abaixo traz o coeficiente t significativos e resume os tipos de indicadores que são mais relevantes para cada grupo de países. Exceto por um indicador, todos os demais são não coincidentes.
   

Tabela 1 – Associações significativas (t) entre taxas de homicídios e indicadores socioeconômicos, segundo grupo de renda do país


Fonte: taxas de homicídio (UNODC) / indicadores socioeconômicos World Bank, projeto WDI

O mesmo acontece quando dividimos os países por regiões: na África, explicam melhor as variações nas taxas de homicídio os indicadores de concentração de renda, o peso da dívida externa e os indicadores de desemprego. Na América, parecem mais relevantes as variáveis ligadas à educação. Na Ásia os indicadores demográficos, educacionais, de qualidade logística do país e de renda são os que mais fortemente se vinculam aos homicídios. Na Europa, finalmente, vemos um “mix” amplo de indicadores relacionados à demografia, educação, inflação, logística, emissão de poluentes, variáveis ligadas à saúde e porcentagem de tarifas sobre os produtos. Mais uma vez aqui, percebe-se que indicadores diferentes são relevantes em diferentes regiões (embora Ásia e Europa compartilhem muitos indicadores)

Estamos diante de artifícios estatísticos ou de fenômenos reais? Como discutimos no primeiro artigo, estas são apenas correlação bivariadas simples e são necessários modelos mais robustos para testar estas hipóteses. É possível que variáveis do tipo “tarifas”, “logística”, “emissão de poluentes”, etc. – que vimos estarem relacionadas aos homicídios nos países de maior renda - sejam apenas medidas indiretas do “grau de pobreza” e “concentração de renda” e que apenas por acaso apresentem coeficientes mais fortes do que “pobreza urbana” ou “participação na renda”, que se relevaram significativas nos países mais pobres.

De todo modo, nosso objetivo não é aprofundar modelos mas antes o de resumir cerca de 6 mil equações (por ex, correlação entre os 1500 indicadores X 4 regiões). E não deixa de ser interessante observar nesta análise exploratória que, quando dividimos os países em grupos, as taxas de homicídio parecem ser explicadas por conjuntos diferentes de indicadores, sugerindo a existência de diferentes dinâmicas de homicídios. A literatura criminológica já revelou que existem diversas dinâmicas sociais por traz dos homicídios: em alguns locais apresentam natureza mais passional e em outro estão mais ligados a dinâmica propriamente criminal. Num contexto temos influencia do crime organizado e das organizações policiais ou paramilitares e num outro os efeitos da disponibilidade de álcool, drogas e outros fatores crimogenicos. Sabemos, portanto, que o fenômeno “homicídio” pode ser bastante heterogêneo em si.

É importante levarmos em conta estas especificidades na formulação de políticas públicas. Não existem fórmulas universais, embora saibamos já que alguns conjuntos de variáveis e políticas públicas tendem a diminuir os homicídios e outros a aumentá-los. Mas o que funcionou num contexto pode não funcionar, ou ter um impacto menor, num contexto diverso. O caso do Estatuto do Desarmamento no Brasil e seu impacto desigual nas regiões é um claro exemplo desta diferença de contextos, como já tratamos em outra ocasião.

Novamente aqui fica o alerta para a necessidade de aprofundarmos o estudo do fenômeno antes de intervirmos através de políticas públicas. Há muito mais entre o céu e a terra do que podemos supor observando apenas as taxas de homicídio.




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