Em junho publicamos um artigo
correlacionando a taxa de homicídios coletada pela UNODC com centenas de
indicadores sócio econômicos disponibilizados pelo Banco Mundial, para 217
países em todo o mundo. Nas correlações bivariadas, diversos indicadores se
revelaram significativos para explicar porque alguns países tinham taxas
maiores ou menores de homicídio.
Mas tomar países abstratamente como
unidade de análise pode ser enganoso, uma vez que escondem realidades bastante
diferentes. Se as diferenças de contexto são grandes quando comparamos cidades
ou estados de um mesmo país, são ainda maiores quando comparamos países.
Um é paupérrimo e outro
riquíssimo. Um muçulmano e outro católico. Este tem grande população jovem e
poucos migrantes e o vizinho o contrário. Um é pequeno e gelado a maior parte
do ano e outro enorme e desértico. Num a população se concentra em alguns
pequenos centros urbanos enquanto noutro se espalha pelos campos. A economia de
um é diversificada e equilibrada e a de outro se baseia na exportação de alguns
poucos produtos primários. Em resumo, as diferenças em nível internacional são
muito mais acentuadas do que em nível mais local e estas diferenças afetam os
níveis de criminalidade.
Em tese esta variabilidade é
positiva, pois faz com que nossas variáveis variem!!! Assim, por exemplo, a
relação entre homicídios e concentração de renda fica muito mais nítida quando
incluímos na amostra países com níveis de homicídio altos e baixos e
concentração de renda variada. Por outro lado, como veremos adiante, uma
diferença acentuada de contextos pode ser enganadora: a relação entre homicídio
e a variável X parece forte, mas apenas porque é especialmente forte numa
determinada região, todavia fraca nas demais. Ou a relação entre homicídios e a
variável Y parece inexistente, mas na verdade tem sinal positivo na região A e
negativo na região B, fazendo com que se anulem. Este é um problema de muitas
pesquisas quantitativas: as variáveis devem variar, mas o ideal é que a
distribuição do fenômeno seja mais ou menos aleatória entre as unidades de
análise.
No caso dos crimes e diversos
outros fenômenos sociais, não é sempre o que acontece. Crime tem padrões
universais, mas também diversas características e especificidades locais. Isso
faz com que algumas variáveis sejam relevantes numa região do planeta e
irrelevantes em outras. Importantes para países com grau de desenvolvimento
econômico elevado e desimportante em países pobres.
Na analise a seguir, tomamos
novamente as taxas de homicídios da UNODC como variável a ser explicada e
correlacionamos com as mais de 1500 variáveis sócio econômicas do projeto WDI
(World Development Indicators) do Banco Mundial, mas desta feita desagregamos os
países por região (África, América, Europa, Ásia e Oceania) e grupo de renda
per capita.
Obviamente que internamente estas
regiões também são bastante heterogêneas: dentro da América temos os Estados
Unidos e Honduras. Seria possível trabalhar com sub-regiões mais homogêneas,
mas o problema é que a quantidade de países não é grande suficiente para
suportar subdivisões menores e a regra de etiqueta é que se evite interpretar
estatísticas calculadas com número de casos demasiado baixo (o que explica a
exclusão da Oceania das regiões).
Dividimos também os países em
dois grupos de renda: um primeiro com 64 países com renda per capita mais
elevada e os demais num segundo grupo. Aqui também cabe observar que nível de
renda per capita não é garantia de homogeneidade. Convivem no grupo de renda
elevada países nórdicos igualitários e países árabes exportadores de petróleo,
onde a riqueza se concentra na família real e seus apaniguados. Nos dois casos
– região e grupo de renda – trata-se apenas de garantir uma maior
homogeneidade, quando comparado com a amostra global, mas ainda assim temos
bastante heterogeneidade interna nas regiões e grupos de renda.
A questão relevante é: quando
analisamos as correlações entre as taxas de homicídios e as centenas de
indicadores socioeconômicos do WDI, encontramos variáveis que se mostram
relevantes globalmente para explicar a variação na taxa de homicídio dos países?
Ou seja, algo que seja válido para todos os países, independente da região ou
nível de renda per capita? Por outro lado, que indicadores se revelam
especificamente relevantes dentro de cada região ou grupo de renda?
Um primeiro resultado da análise
é que aparentemente existem poucas variáveis que sejam relevantes universalmente.
A maioria delas se revelou válida apenas para algumas regiões ou apenas para um
grupo de renda. Em parte, este pode ser o resultado da redução do tamanho da
amostra, quando dividimos os países por região ou em dois grupos de renda. Mas
pode significar também que o homicídio tem padrões que são regionais ou
características específicas, dependendo do nível de renda nacional.
Assim, por exemplo, quando
dividimos os países entre renda per capita alta e baixa, observamos que para os
países de renda elevada são importantes para “explicar” as variações nas taxas
de homicídios as variáveis relacionadas a educação, inflação e tarifas sobre os
produtos, enquanto para os países de renda mais baixa, são mais relevantes as
variáveis relacionadas a concentração de renda, trabalho infantil e pobreza. Ou
seja, são variáveis diferentes que parecem explicar as taxas de homicídios nos
países de renda per capita alta e baixa. Isso sugere que podem coexistir
diferentes dinâmicas por trás do fenômeno que denominamos genericamente por
“homicídio”. E que o que importa num determinado patamar de renda não se aplica
necessariamente ao outro.
A tabela abaixo traz o coeficiente
t significativos e resume os tipos de indicadores que são mais relevantes para
cada grupo de países. Exceto por um indicador, todos os demais são não
coincidentes.
Tabela 1 – Associações
significativas (t) entre taxas de homicídios e indicadores socioeconômicos,
segundo grupo de renda do país
Fonte: taxas de homicídio (UNODC)
/ indicadores socioeconômicos World Bank, projeto WDI
O mesmo acontece quando dividimos
os países por regiões: na África, explicam melhor as variações nas taxas de
homicídio os indicadores de concentração de renda, o peso da dívida externa e
os indicadores de desemprego. Na América, parecem mais relevantes as variáveis
ligadas à educação. Na Ásia os indicadores demográficos, educacionais, de
qualidade logística do país e de renda são os que mais fortemente se vinculam
aos homicídios. Na Europa, finalmente, vemos um “mix” amplo de indicadores
relacionados à demografia, educação, inflação, logística, emissão de poluentes,
variáveis ligadas à saúde e porcentagem de tarifas sobre os produtos. Mais uma
vez aqui, percebe-se que indicadores diferentes são relevantes em diferentes
regiões (embora Ásia e Europa compartilhem muitos indicadores)
Estamos diante de artifícios
estatísticos ou de fenômenos reais? Como discutimos no primeiro artigo, estas
são apenas correlação bivariadas simples e são necessários modelos mais
robustos para testar estas hipóteses. É possível que variáveis do tipo
“tarifas”, “logística”, “emissão de poluentes”, etc. – que vimos estarem
relacionadas aos homicídios nos países de maior renda - sejam apenas medidas
indiretas do “grau de pobreza” e “concentração de renda” e que apenas por acaso
apresentem coeficientes mais fortes do que “pobreza urbana” ou “participação na
renda”, que se relevaram significativas nos países mais pobres.
De todo modo, nosso objetivo não
é aprofundar modelos mas antes o de resumir cerca de 6 mil equações (por ex,
correlação entre os 1500 indicadores X 4 regiões). E não deixa de ser
interessante observar nesta análise exploratória que, quando dividimos os países
em grupos, as taxas de homicídio parecem ser explicadas por conjuntos
diferentes de indicadores, sugerindo a existência de diferentes dinâmicas de
homicídios. A literatura criminológica já revelou que existem diversas
dinâmicas sociais por traz dos homicídios: em alguns locais apresentam natureza
mais passional e em outro estão mais ligados a dinâmica propriamente criminal.
Num contexto temos influencia do crime organizado e das organizações policiais
ou paramilitares e num outro os efeitos da disponibilidade de álcool, drogas e
outros fatores crimogenicos. Sabemos, portanto, que o fenômeno “homicídio” pode
ser bastante heterogêneo em si.
É importante levarmos em conta
estas especificidades na formulação de políticas públicas. Não existem fórmulas
universais, embora saibamos já que alguns conjuntos de variáveis e políticas
públicas tendem a diminuir os homicídios e outros a aumentá-los. Mas o que
funcionou num contexto pode não funcionar, ou ter um impacto menor, num
contexto diverso. O caso do Estatuto do Desarmamento no Brasil e seu impacto desigual
nas regiões é um claro exemplo desta diferença de contextos, como já tratamos
em outra ocasião.
Novamente aqui fica o alerta para
a necessidade de aprofundarmos o estudo do fenômeno antes de intervirmos
através de políticas públicas. Há muito mais entre o céu e a terra do que podemos
supor observando apenas as taxas de homicídio.
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